Davi Arrigucci Jr.
(continuação)
E o que é ainda mais importante, do ângulo que aqui interessa: destaca o que se poderia chamar de técnica de deslocamento empregada tanto por Swift quanto por Flaubert. Para falar dos desejos da humanidade e da história universal, o primeiro os atribui a pigmeus ou a símios; o segundo, a dois sujeitos grotescos. O procedimento equivale, em certa medida, à técnica do "dépaysement"- a utilização de um personagem transplantado no estrangeiro, num meio estranho ou exótico-, largamente empregada por Voltaire, de que o autor de "Ficciones" tiraria igualmente enorme proveito.
Na época do conto voltairiano, já se está, é claro, muito distante dos modelos primitivos da sátira, e a fórmula moderna do conto, apoiada decerto no chão histórico da necessidade de esclarecimento, se converte, não num instrumento de difusão de verdades filosóficas assentadas, mas num meio novo de busca pela fantasia combinada à reflexão. Como se sabe, Voltaire tardou a chegar ao conto filosófico -o termo só aparece no tomo 13 de suas obras, em 1768-, sucedendo a um longo período de desconfiança com relação à prosa de ficção, a que seu espírito filosófico parecia rebelde, persa que era do gosto clássico (13). De início, tratava o gênero como fábula, conto de velhas, romances das Mil e uma noites, devaneios, extravagâncias, parecendo-lhe algo inverossímil, uma absurda mitologia cujos erros e crendices deveriam ser corrigidos pela razão: "Au commencenment était la fable, à la fin viendra la raison" (14).
Ao espírito extrovertido do filósofo, avesso às confissões à maneira de Rousseau, o caminho do conto filosófico, que se tornará o espaço de eleição de suas interrogações, dúvidas e angústias mais profundas, é também o itinerário de uma longa aprendizagem. Van Den Heuvel, que lhe estudou o percurso, assinala o espaço ficcional dos contos como o lugar de uma projeção simbólica. Nele, a experiência vivida do escritor ganha a dimensão universal através dos jogos da fantasia e do humor que encontram exatamente sua fórmula de expressão no conto filosófico.
O ponto essencial dessa fórmula, que, segundo aquele estudioso, nasceria com o exílio de Voltaire na Inglaterra, é exatamente a transplantação dos personagens para uma realidade outra. Nisto fará eco às famosas "Cartas Persas" de Montesquieu, tornando o deslocamento espacial uma condição da liberdade intelectual: uma libertação do espírito para a crítica, situado num quadro novo em que pode se mover com facilidade, completamente aberto às "luzes".
A experiência histórica, conforme a lição de Heuvel, estava na base das invenções ficcionais de Voltaire, mas sua imaginação pode ter-se acendido com o modelo literário próximo de Montesquieu, a quem parecia, no entanto, desprezar. E também a fórmula de Montesquieu tinha antecedentes bem conhecidos, sendo produto provável de uma tradição histórica já consolidada, de que se podem citar os exemplos de Marana, Dufresny, etc (15). Como em Borges, os espelhamentos são múltiplos, e a face original, inapreensível, perdida no labirinto infindável dos reflexos sucessivos.
O contista e a história
Essa vertente de Borges aqui exposta talvez tenha ajudado a formar, ao longo dos anos, a figura um tanto equívoca de um escritor intelectualista e cosmopolita, à margem da História. Imagem desgarrada, que só cresceu com o renome internacional do autor, a partir de "Ficciones". Assim cresceram também os equívocos a respeito de sua obra.
Tornou-se um lugar-comum da crítica vê-lo como o autor de uma visão alucinada do universo, artista da linguagem centrado sobre si mesmo e sempre isolado do real, posto além das circunstâncias imediatas, pairando num universalismo abstrato, meio fantasmal. Buscando o fundamento interpretativo na autoridade do próprio autor, comentarista de si próprio, a maioria dos críticos tendeu a fazer dos ditos de Borges sobre a literatura os ditos da crítica sobre Borges. Por uma espécie de petição de princípio, transformou o que deveria interpretar em fundamento da interpretação.
Desse modo, Borges desrealiza-se cada vez mais, à medida que passa o tempo, tendo colaborado bravamente para isto. "Será preciso explicar que sou o menos histórico dos homens?", pergunta ele pouco antes da morte, em 1986, no prefácio às obras completas da edição da Pléiade (16). No entanto, linhas abaixo, acrescenta: "Para fruir convenientemente de qualquer obra é preciso situá-la no contexto de seu momento histórico". A colocação contraditória e irônica repercute, porém, menos do que era de se esperar, e a caracterização ilusória é o que predomina na consideração crítica do escritor. Que a natureza de seu conto, fundindo arte e pensamento, tenha contribuído para isso não é das menores ironias do escritor.
Num ensaio sobre Hawthorne, de "Otras Inquisiciones", em que traça a história de uma metáfora -a de literatura como sonho- Borges distingue, sem fazer juízo de valor, entre escritores que pensam por imagens, como Donne ou Shakespeare, e outros, como Benda ou Bertrand Russel, que pensam por abstrações (e os que, como o próprio Hawthorne, insinuam conceitos mediante imagens alegóricas). O paralelismo me faz sempre pensar naquilo que o separa, a ele, Borges, enquanto autor de famosas abstrações que soube fundir em não menos notáveis imagens, de outro grande escritor de seu tempo que pensava fundamentalmente por imagens, por intuições, Guimarães Rosa. Em ambos a questão da História parece ter sido descartada -a literatura sempre lembrando um sonho desgarrado-, sendo, no entanto, decisiva, para sua compreensão.
Comparado com o nosso Guimarães Rosa logo se nota de fato que, por assim dizer, fingem ao contrário um do outro. O primeiro trabalha com figuras do pensamento, saídas sobretudo dos livros; o outro, com imagens concretas, aparentemente extraídas da experiência direta da realidade. Na verdade, porém, quando se observa melhor e mais a fundo, é notável o peso da realidade imediata em Borges, e muitas as mediações culturais em Rosa. A funda e complexa oposição entre ambos, sugere, entretanto, que se pense na dificuldade específica com que cada um desafia a crítica.
A dificuldade crítica no caso de Rosa é compreender como nele se universaliza a visão de um mundo particular -o sertão; como sua penetração nessa região específica é capaz de dar a ver, travestida nas imagens das estórias de capiaus mineiros, uma verdade humana geral e um mundo tão vasto e complexo quanto o nosso. Dante, Shakespeare, Goethe, Plotino ou Platão, se presentes (como tantas vezes, também em Borges), vêm reencarnados mediante traços físicos ou anímicos, atos, modos de vida, pormenores materiais ou espirituais de seres viventes que existem com toda a verossimilhança realista, em sua total complexidade humana. São caracteres do Sertão Mundo, criações artísticas de um regionalismo cósmico com as quais pode se identificar o homem de qualquer latitude, posto diante de personagens consistentemente problemáticos e concretos pela força da arte. Embora as marcas do tempo histórico sejam tênues no interior do sertão rosiano, elas existem, e este vem sempre referido ao mundo urbano, submetendo-se ao processo histórico, m mudanças constantes, supondo níveis distintos de realidade histórica em mistura sui generis, que não tem cara muito diferente daquela do país a que remete.
Em Borges, ao contrário, a dificuldade é compreender criticamente o lastro particular do universalismo ostensivo. Ele se acha já na própria matéria tratada, feita da generalidade do pensamento ou da universalidade do conceito, do saber erudito e livresco, alimentado pela leitura incessante, pelas citações inumeráveis da literatura universal. Um universo ficcional cujas amarras concretas existem, mas vêm ocultas ou descarnadas em situações imaginárias e posições específicas na obra, diagramáticas e abstratas (17). É essa a forma que toma o pensamento feito arte. Em Borges, é como se tudo se tivesse desgarrado de todo contexto histórico, para existir em absoluta autonomia com relação à realidade, sempre avessa, na sua opinião, a toda espécie de transcrição artística.
A oposição funda que separa dois dos maiores narradores que conheceram nossas letras exige, portanto, para sua exata compreensão, o reconhecimento histórico de seu verdadeiro modo de ser, onde talvez se encontrem para além das diferenças. Esta vasta e difícil empresa é, no entanto, matéria para outra história. Como no conto de Voltaire, a verdade histórica também faz parte do sonho da ficção.
Neste livro singular e extraordinário, o leitor encontrará reunidos os contos que deram fama internacional a Jorge Luis Borges. Os adjetivos que o acompanham mal exprimem a complexidade de suas múltiplas faces. Primeiro, a estranha marca de originalidade desses escritos inovadores, que renovaram o conto moderno. Depois, o caráter fora do comum de seus temas, abertos para o fantástico e a inesperada dimensão filosófica do tratamento. Por fim, a qualidade ímpar de sua prosa: na tradição hispânica, nenhuma brilhou tanto, desde o Século de Ouro de Cervantes e Quevedo.
Na carreira literária de Borges, o conto veio por tateios tímidos, depois de poemas e ensaios, aos quais por vezes já se mesclava. Quando por fim despontou, no final da década de 30, revelou, para assombro do leitor, um outro leitor mais tenebroso e singular que os bons autores que pudesse conhecer. Com efeito, grande parte da novidade da narrativa dependia de um narrador que era sobretudo um leitor inquieto e filosofante, sempre pronto a tirar da leitura, real ou fantasiada, o móvel da escrita. Esse comentador de todos e de si mesmo, era o deus de múltiplos labirintos que os enredos desses contos imitam num jogo infindável de espelhos, especulações e conjeturas, às vezes com a perícia das intrigas policiais e o rigoroso gosto da aventura, para quase sempre desembocar na perplexidade metafísica.
Pode-se imaginar a felicidade daquele que pela primeira vez se deparará com o universo fantástico de Tlõn, a memória de Funes ou com o duelo de arrabalde em que de novo joga a vida Martín Fierro. Aos demais, aos iniciados no inefável segredo, as recorrentes, inesgotáveis, inesquecíveis linhas e entrelinhas de Borges -o autor que, à semelhança de Shakespeare, quis ser todos e nenhum.
(continua)
Folha de São Paulo
E o que é ainda mais importante, do ângulo que aqui interessa: destaca o que se poderia chamar de técnica de deslocamento empregada tanto por Swift quanto por Flaubert. Para falar dos desejos da humanidade e da história universal, o primeiro os atribui a pigmeus ou a símios; o segundo, a dois sujeitos grotescos. O procedimento equivale, em certa medida, à técnica do "dépaysement"- a utilização de um personagem transplantado no estrangeiro, num meio estranho ou exótico-, largamente empregada por Voltaire, de que o autor de "Ficciones" tiraria igualmente enorme proveito.
Na época do conto voltairiano, já se está, é claro, muito distante dos modelos primitivos da sátira, e a fórmula moderna do conto, apoiada decerto no chão histórico da necessidade de esclarecimento, se converte, não num instrumento de difusão de verdades filosóficas assentadas, mas num meio novo de busca pela fantasia combinada à reflexão. Como se sabe, Voltaire tardou a chegar ao conto filosófico -o termo só aparece no tomo 13 de suas obras, em 1768-, sucedendo a um longo período de desconfiança com relação à prosa de ficção, a que seu espírito filosófico parecia rebelde, persa que era do gosto clássico (13). De início, tratava o gênero como fábula, conto de velhas, romances das Mil e uma noites, devaneios, extravagâncias, parecendo-lhe algo inverossímil, uma absurda mitologia cujos erros e crendices deveriam ser corrigidos pela razão: "Au commencenment était la fable, à la fin viendra la raison" (14).
Ao espírito extrovertido do filósofo, avesso às confissões à maneira de Rousseau, o caminho do conto filosófico, que se tornará o espaço de eleição de suas interrogações, dúvidas e angústias mais profundas, é também o itinerário de uma longa aprendizagem. Van Den Heuvel, que lhe estudou o percurso, assinala o espaço ficcional dos contos como o lugar de uma projeção simbólica. Nele, a experiência vivida do escritor ganha a dimensão universal através dos jogos da fantasia e do humor que encontram exatamente sua fórmula de expressão no conto filosófico.
O ponto essencial dessa fórmula, que, segundo aquele estudioso, nasceria com o exílio de Voltaire na Inglaterra, é exatamente a transplantação dos personagens para uma realidade outra. Nisto fará eco às famosas "Cartas Persas" de Montesquieu, tornando o deslocamento espacial uma condição da liberdade intelectual: uma libertação do espírito para a crítica, situado num quadro novo em que pode se mover com facilidade, completamente aberto às "luzes".
A experiência histórica, conforme a lição de Heuvel, estava na base das invenções ficcionais de Voltaire, mas sua imaginação pode ter-se acendido com o modelo literário próximo de Montesquieu, a quem parecia, no entanto, desprezar. E também a fórmula de Montesquieu tinha antecedentes bem conhecidos, sendo produto provável de uma tradição histórica já consolidada, de que se podem citar os exemplos de Marana, Dufresny, etc (15). Como em Borges, os espelhamentos são múltiplos, e a face original, inapreensível, perdida no labirinto infindável dos reflexos sucessivos.
O contista e a história
Essa vertente de Borges aqui exposta talvez tenha ajudado a formar, ao longo dos anos, a figura um tanto equívoca de um escritor intelectualista e cosmopolita, à margem da História. Imagem desgarrada, que só cresceu com o renome internacional do autor, a partir de "Ficciones". Assim cresceram também os equívocos a respeito de sua obra.
Tornou-se um lugar-comum da crítica vê-lo como o autor de uma visão alucinada do universo, artista da linguagem centrado sobre si mesmo e sempre isolado do real, posto além das circunstâncias imediatas, pairando num universalismo abstrato, meio fantasmal. Buscando o fundamento interpretativo na autoridade do próprio autor, comentarista de si próprio, a maioria dos críticos tendeu a fazer dos ditos de Borges sobre a literatura os ditos da crítica sobre Borges. Por uma espécie de petição de princípio, transformou o que deveria interpretar em fundamento da interpretação.
Desse modo, Borges desrealiza-se cada vez mais, à medida que passa o tempo, tendo colaborado bravamente para isto. "Será preciso explicar que sou o menos histórico dos homens?", pergunta ele pouco antes da morte, em 1986, no prefácio às obras completas da edição da Pléiade (16). No entanto, linhas abaixo, acrescenta: "Para fruir convenientemente de qualquer obra é preciso situá-la no contexto de seu momento histórico". A colocação contraditória e irônica repercute, porém, menos do que era de se esperar, e a caracterização ilusória é o que predomina na consideração crítica do escritor. Que a natureza de seu conto, fundindo arte e pensamento, tenha contribuído para isso não é das menores ironias do escritor.
Num ensaio sobre Hawthorne, de "Otras Inquisiciones", em que traça a história de uma metáfora -a de literatura como sonho- Borges distingue, sem fazer juízo de valor, entre escritores que pensam por imagens, como Donne ou Shakespeare, e outros, como Benda ou Bertrand Russel, que pensam por abstrações (e os que, como o próprio Hawthorne, insinuam conceitos mediante imagens alegóricas). O paralelismo me faz sempre pensar naquilo que o separa, a ele, Borges, enquanto autor de famosas abstrações que soube fundir em não menos notáveis imagens, de outro grande escritor de seu tempo que pensava fundamentalmente por imagens, por intuições, Guimarães Rosa. Em ambos a questão da História parece ter sido descartada -a literatura sempre lembrando um sonho desgarrado-, sendo, no entanto, decisiva, para sua compreensão.
Comparado com o nosso Guimarães Rosa logo se nota de fato que, por assim dizer, fingem ao contrário um do outro. O primeiro trabalha com figuras do pensamento, saídas sobretudo dos livros; o outro, com imagens concretas, aparentemente extraídas da experiência direta da realidade. Na verdade, porém, quando se observa melhor e mais a fundo, é notável o peso da realidade imediata em Borges, e muitas as mediações culturais em Rosa. A funda e complexa oposição entre ambos, sugere, entretanto, que se pense na dificuldade específica com que cada um desafia a crítica.
A dificuldade crítica no caso de Rosa é compreender como nele se universaliza a visão de um mundo particular -o sertão; como sua penetração nessa região específica é capaz de dar a ver, travestida nas imagens das estórias de capiaus mineiros, uma verdade humana geral e um mundo tão vasto e complexo quanto o nosso. Dante, Shakespeare, Goethe, Plotino ou Platão, se presentes (como tantas vezes, também em Borges), vêm reencarnados mediante traços físicos ou anímicos, atos, modos de vida, pormenores materiais ou espirituais de seres viventes que existem com toda a verossimilhança realista, em sua total complexidade humana. São caracteres do Sertão Mundo, criações artísticas de um regionalismo cósmico com as quais pode se identificar o homem de qualquer latitude, posto diante de personagens consistentemente problemáticos e concretos pela força da arte. Embora as marcas do tempo histórico sejam tênues no interior do sertão rosiano, elas existem, e este vem sempre referido ao mundo urbano, submetendo-se ao processo histórico, m mudanças constantes, supondo níveis distintos de realidade histórica em mistura sui generis, que não tem cara muito diferente daquela do país a que remete.
Em Borges, ao contrário, a dificuldade é compreender criticamente o lastro particular do universalismo ostensivo. Ele se acha já na própria matéria tratada, feita da generalidade do pensamento ou da universalidade do conceito, do saber erudito e livresco, alimentado pela leitura incessante, pelas citações inumeráveis da literatura universal. Um universo ficcional cujas amarras concretas existem, mas vêm ocultas ou descarnadas em situações imaginárias e posições específicas na obra, diagramáticas e abstratas (17). É essa a forma que toma o pensamento feito arte. Em Borges, é como se tudo se tivesse desgarrado de todo contexto histórico, para existir em absoluta autonomia com relação à realidade, sempre avessa, na sua opinião, a toda espécie de transcrição artística.
A oposição funda que separa dois dos maiores narradores que conheceram nossas letras exige, portanto, para sua exata compreensão, o reconhecimento histórico de seu verdadeiro modo de ser, onde talvez se encontrem para além das diferenças. Esta vasta e difícil empresa é, no entanto, matéria para outra história. Como no conto de Voltaire, a verdade histórica também faz parte do sonho da ficção.
Neste livro singular e extraordinário, o leitor encontrará reunidos os contos que deram fama internacional a Jorge Luis Borges. Os adjetivos que o acompanham mal exprimem a complexidade de suas múltiplas faces. Primeiro, a estranha marca de originalidade desses escritos inovadores, que renovaram o conto moderno. Depois, o caráter fora do comum de seus temas, abertos para o fantástico e a inesperada dimensão filosófica do tratamento. Por fim, a qualidade ímpar de sua prosa: na tradição hispânica, nenhuma brilhou tanto, desde o Século de Ouro de Cervantes e Quevedo.
Na carreira literária de Borges, o conto veio por tateios tímidos, depois de poemas e ensaios, aos quais por vezes já se mesclava. Quando por fim despontou, no final da década de 30, revelou, para assombro do leitor, um outro leitor mais tenebroso e singular que os bons autores que pudesse conhecer. Com efeito, grande parte da novidade da narrativa dependia de um narrador que era sobretudo um leitor inquieto e filosofante, sempre pronto a tirar da leitura, real ou fantasiada, o móvel da escrita. Esse comentador de todos e de si mesmo, era o deus de múltiplos labirintos que os enredos desses contos imitam num jogo infindável de espelhos, especulações e conjeturas, às vezes com a perícia das intrigas policiais e o rigoroso gosto da aventura, para quase sempre desembocar na perplexidade metafísica.
Pode-se imaginar a felicidade daquele que pela primeira vez se deparará com o universo fantástico de Tlõn, a memória de Funes ou com o duelo de arrabalde em que de novo joga a vida Martín Fierro. Aos demais, aos iniciados no inefável segredo, as recorrentes, inesgotáveis, inesquecíveis linhas e entrelinhas de Borges -o autor que, à semelhança de Shakespeare, quis ser todos e nenhum.
(continua)
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