AS VÁRIAS DIMENSÕES DO PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
Raissa Gabrielle Vieira CirinoKelly Eleutério Machado OliveiraAmanda Both
Resenha de: PIMENTA, João Paulo. (ed.). Y dejó de ser colonia. Una historia de la independencia de Brasil. Madrid: Sílex Ultramar, 2021.
A obra Y dejó de ser colónia. Una historia de la Independencia de Brasil foi recentemente publicada pela editora espanhola Sílex Ultramar. Organizado por João Paulo Garrido Pimenta, o livro se destina a um público europeu não necessariamente familiarizado com o tema da independência, o que explica a escolha de alguns autores em apresentar textos informativos, abrangentes e mesmo factuais.
No Brasil, a obra poderá ser recebida como parte de um esforço da comunidade acadêmica por discutir criticamente o “7 de Setembro” como marco decisivo da independência do país. Destacam-se, nesse sentido, as ações realizadas pela ANPUH (Associação Nacional de História), os fóruns da Revista Almanack, a programação do Portal do Bicentenário e, finalmente, a agenda da SEO (Sociedade Brasileira de Estudos do Oitocentos). Em todas elas estão presentes a compreensão de que se tratou de um processo plural, diverso e violento, afinal não foi tarefa fácil transformar as “várias independências”5 na “mesma independência”6.
A principal contribuição do livro é propor uma discussão que conecta o Brasil a outros espaços, notadamente à África, ao Rio da Prata, à América e à Europa. Ao mesmo tempo que se dedica a uma dimensão macro, que poderíamos chamar de global, não ignora os processos internos que marcaram a própria construção do Estado nacional brasileiro, aquilo que Ilmar Mattos chamou de “expansão para dentro”7. Em um “movimento de olhares cruzados”8, os autores vão além da independência experienciada no Rio de Janeiro ou mesmo da “outra independência”9: apresentam-nos as muitas independências nas quais lutaram homens e mulheres livres e pobres, indígenas e escravizados.
Não obstante a interlocução com as premissas da nova história política, Y dejó de ser colónia apresenta limites inerentes à sua proposta de divulgação. Alguns capítulos optam por uma exposição abrangente sem eleger uma questão norteadora, o que acaba por obliterar um processo complexo. Ainda assim, trata-se, sem dúvida, de importante obra sobre o tema das independências, uma coletânea que se soma a uma vasta produção historiográfica que nos últimos anos vem buscando refletir criticamente sobre os primeiros anos da década de 1820.
O capítulo introdutório de João Paulo Pimenta, “Espacios, dimensiones y tiempos de la independencia de Brasil”, discute os quadrantes da realidade e das temporalidades que caracterizaram o processo de emancipação política do Brasil. O balanço histórico e metodológico propõe uma reflexão acerca do caráter multifacetado da independência, o qual comporta e demanda diferentes perspectivas analíticas. Desse modo, as reflexões conferem inteligibilidade à obra, ao passo que ratificam a sua atualidade.
De autoria de Ana Cloclet da Silva, “Brasil y la crisis Del Antiguo Régimen 1750-1808” analisa a independência como um processo revolucionário de caráter moderno, derivado de projetos que emergiram no bojo da crise do Antigo Regime. Na esteira das reflexões da já mencionada nova história política, a autora analisa eventos e concepções de estadistas e intelectuais com o objetivo de demonstrar que possuíam um significado mais profundo que permitiu redimensionar o papel do Brasil dentro do Império português.
Em “La Corte en Brasil y el gobierno de Juan VI de Portugal (1808-1820)”, Juliana Meirelles estabelece um quadro das muitas e profundas transformações que ocorreram na América portuguesa a partir da chegada da Corte no Rio de Janeiro, a fim de adaptar a cidade ao posto de nova sede do Império português. Passando por diferentes momentos e aspectos sociais e políticos, a autora demonstra as consequências da permanência da Corte no Brasil, após a derrota dos exércitos napoleônicos na Europa, nos dois lados do Atlântico.
No capítulo “La Independencia de Brasil: constitucionalismo y derechos, 1820-1824” Andréa Slemian debate a convivência entre “tradição e novidade” na Constituição brasileira outorgada em 1824. Não obstante o seu caráter liberal moderado, a Assembleia Constituinte revela como o momento foi permeado por posições mais radicais. Slemian destaca a centralidade atribuída à Constituição neste momento - não apenas no Brasil - como garantidora dos direitos dos cidadãos e como principal instrumento contra o despotismo dos governos. Essa noção sintetizada pela autora na definição do constitucionalismo como “uma cultura de direitos” que, em que pese algumas manifestações contrárias, foi amplamente defendido pelos deputados constituintes. Esse clima geral em favor dos direitos, adverte Slemian, não deve desconsiderar a ausência de propostas referentes à inclusão social ou alteração do status quo.
O quinto capítulo da obra, intitulado “El Imperio de Brasil y el Primer Reinado 1822-1831”, expressa as reflexões de Marisa Saenz Leme sobre o processo de construção do Estado nacional brasileiro durante o reinado de Pedro I. A autora apresenta os principais temas que marcaram o período: o processo de independência, a abertura e o fechamento da Constituinte, a outorga da Constituição e a criação de instâncias de poder intermediário, a exemplo dos Conselhos Gerais de província e, por fim, a crise política que levou à abdicação do primeiro Imperador. Esse é um exemplo do que afirmamos no início desta resenha: um capítulo bastante abrangente capaz de apresentar aos leitores o quadro que marcou a construção do Estado brasileiro em seus inícios.
Outra dimensão do processo de independência foi discutida no capítulo “Los pueblos indígenas en la independencia”, de Fernanda Sposito. Dialogando com pesquisas como as de Mariana Albuquerque Dantas10 e João Paulo Peixoto Costa11, para o quais a narrativa do extermínio apagou a participação indígena não apenas no processo de independência do Brasil como em vários outros momentos da história do Império, Sposito apresenta a luta de indígenas pelo direito à terra e à liberdade. Foi para defender esses direitos que muitos deles participaram das lutas de independência: foram recrutados para reprimir revoltas nas províncias de Pernambuco e Alagoas, participaram de revoltas no Grão-Pará e foram reforço decisivo para a vitória do governo de d. Pedro I na batalha do Jenipapo (PI). A maior contribuição da autora é discutir o processo de independência pelo viés social, dando mais atenção à participação indígena e menos à política indigenista levada a cabo pelo Estado brasileiro.
Em “La esclavitud y el tráfico negrero en la independencia”, Alain El Youssef discute um tema clássico da historiografia brasileira, a escravidão, mas o faz a partir da dimensão diplomática: procura refletir sobre a relação entre Brasil, Portugal e Inglaterra, os tratados antitráfico e o processo de ruptura política da ex-colônia portuguesa da América. Para o autor, consumada a independência, longe de adquirir uma posição antiescravista, o Estado brasileiro se constituiu como uma variável histórica fundamental para a refundação do cativeiro a partir da herança colonial portuguesa.
O capítulo “Prensa y cultura política durante la independencia”, de Marcelo Cheche Galves, aborda o desenvolvimento da palavra impressa na América luso-brasileira e seu debate acerca de projetos políticos entre 1821 e 1823. Ancorado na perspectiva de uma história social dos livros e da leitura, Galves aponta que a circulação de diferentes obras no espaço colonial, mesmo sob a tutela da Real Mesa Censória, marcou presença ao longo do século XVIII. Em um momento de efusão política, como o biênio de 1820-1821, a imprensa conectou os dois lados do Atlântico, de modo que redatores, políticos, leitores e eleitores criaram e compartilharam novas linguagens políticas.
Um quadro mais amplo sobre a economia política do Império Atlântico português e, em seguida, do Império do Brasil, compõe o tema de Eduardo Silva Ramos. O capítulo “La economía y la política económica em la época de la independencia” indica a abertura dos portos às nações amigas como um marco significativo devido ao seu impacto nas finanças colonial e metropolitana. Os embates antes e durante as reuniões da Assembleia Geral evidenciaram que, assim como em outras temáticas, não houve consenso imediato. A opção por consolidar um sistema tributário baseado em impostos sobre o consumo e a circulação de bens denota a influência dos grandes proprietários rurais e negociantes no processo de construção do Estado imperial brasileiro.
O capítulo “Historiografía y memoria de la independencia”, de Cecília Helena Salles de Oliveira encerra a coletânea. Ao demarcar o objetivo de compreender as diferentes versões da escrita da história da independência, Oliveira dialoga com um tradicional escopo da disciplina: a “invenção” da nação através da formação de uma memória/história nacional. Essa reflexão visa recuperar a independência do Brasil como tema de política, realçando a importância da temática para o tempo presente. Ao longo das décadas, diferentes intérpretes selecionaram, definiriam e atualizaram marcos que permanecem em nossas concepções historiográficas. Retomá-los à luz da historicidade é um exercício relevante não apenas para os historiadores, como para todos em geral, neste momento em que um mundo cada vez mais fragmentado e global solicita reflexão crítica sobre o que entendemos como Estado, nação e identidades coletivas.
Os textos aqui reunidos apresentam uma importante contribuição para a historiografia sobre o tema da independência do Brasil ao reforçar as considerações de Sérgio Buarque de Holanda para quem Estado e nação não nasceram juntos. Tão logo fundado o novo país, o desafio que se impôs foi a construção da identidade “brasileira”12, uma construção que se fez também na violência e exclusão de indígenas, africanos escravizados e homens e mulheres livres e pobres, mas não sem a agência e o protagonismo de muitos deles.
Y dejó de ser colónia desempenha, assim, um importante papel ao descortinar para um público amplo e variado as muitas dimensões do processo de independência do Brasil e suas perspectivas históricas. Vale destacar que, após sua publicação em espanhol, a mesma obra ganhou uma versão em português no Brasil, às vésperas da comemoração do Bicentenário, fato que pode ajudar a difundir debates entre a sociedade brasileira que até então permaneciam circunscritos à academia.
Para um público especializado, a obra demonstra que um tema clássico da historiografia ainda é passível de novos olhares, críticas e releituras. Deixar de ser colônia encerrou muitas variáveis e é preciso dar conta de tamanha complexidade. A obra resenhada foi, sem dúvida, um importante exercício nesse sentido. Além de relevante para compreender os Oitocentos, ela pode abrir novos caminhos historiográficos.
Referências bibliográficas
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5
GONÇALVES, Andréa Lisly. As “várias independências”: a contrarrevolução em Portugal e em Pernambuco e os conflitos antilusitanos no período do constitucionalismo (1821-1824). Clio: revista de pesquisa histórica, Recife, n. 36, p. 4-27, 2018. doi: http://dx.doi.org/10.22264/clio.issn2525-5649.2018.36.1.02
6
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MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e Herdeiros: a trama dos interesses da construção da unidade política. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 1, p. 8-26, 2005. doi: https://doi.org/10.11606/issn.1808-8139.v0i1p8-26
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COSTA, Wilma Peres. Entre tempos e mundos: Chateaubriand e a outra América. Almanack Braziliense, São Paulo, n°11, p. 5-25, 2010. doi: https://doi.org/10.11606/issn.1808-8139.v0i11p05-25
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MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004.
10
DANTAS, Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas (1817-1848). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.
11
COSTA, João Paulo Peixoto. Na lei e na guerra: políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845). Teresina: EDUFPI, 2018.
12
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico: ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira. Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 21, p. 389-440, 2000.
3
Bolsista FAPESP número do processo 2020/04701-7.
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