JORNAIS: UMA AMPLA JANELA ABERTA SOBRE O SÉCULO XIX
Isabel Lustosa
Resenha de: Press, power and culture in imperial Brazil; organizado por Kraay, Hendrik; Castilho, Celso Thomas; Cribelli, Teresa. .University of New Mexico Press, Albuquerque, 2021. 306 p.
De forma bem-humorada, os organizadores deste livro incluíram no prefácio o comentário de um historiador-blogueiro ironizando o título que deram ao painel que deu origem à obra. O título era, em tradução livre para o português: “A hemeroteca digital brasileira e a pesquisa histórica: contexto, conteúdo e pesquisa em arquivos digitais”. Disse o maldoso comentarista que seria difícil até mesmo para um historiador ficar excitado diante da expectativa de assistir a três ou quatro apresentações sob esse título.
Talvez para o expectador de um país em que os recursos digitais estão avançadíssimos, a existência de uma hemeroteca como a da Biblioteca Nacional não seja um fato notável. Mas, quem, como a autora destas linhas, trabalhou com os periódicos da Independência usando aquelas carroças que são as máquinas de ler microfilme, sacrificando a vista diante das idas e vindas dos olhos da tela negra do filme para o papel branco em que fazia suas anotações, ergue a todo momento graças e louvores à hemeroteca da Biblioteca Nacional, cuja pane que a deixou fora do ar há poucos meses, apavorou o meio acadêmico.
Os caminhos para a pesquisa que esse acesso aos jornais do século XIX possibilitou estão perfeitamente demonstrados nos estudos aqui reunidos. Eles revelam muito sobre a história do Brasil, mas também sobre o papel que a imprensa jogou nessa história. Mais do que a história dos jornais ou até do o uso dos jornais como fonte, esses trabalhos demonstram na prática o papel da imprensa na história do Brasil do século XIX e o fazem também contando a história daquela imprensa.
O grande tema a assombrar a historiografia sobre aquele período, a escravidão, emerge aqui realçado pela revelação do quanto foi daninha a atividade da imprensa e como o suposto silêncio sobre esse tema fundamental esteve submerso por opção, fruto do grande arranjo político firmado ainda na Regência entre os Regressistas e os maiores e mais importantes jornais. Como revela o capítulo assinado por Alain El Youssef, foram esses os responsáveis por permitir que a lei de 7 de novembro de 1831 que proibiu o tráfico negreiro se tornasse uma lei para inglês ver. Pode-se acompanhar através da imprensa, o processo de ruptura entre os líderes dos moderados, Evaristo e Bernardo Pereira de Vasconcelos, e das forças políticas que lideravam. Evaristo manteve-se o fiel aos ideais liberais que orientaram toda sua trajetória, apoiando a eleição e a regência única de Feijó. Vasconcelos rejeitou o liberalismo que até 1834 defendera e criou o Regresso, movimento que daria origem ao partido conservador.
A imprensa foi o palco em que antigos liberais se tornaram defensores intransigentes do tráfico negreiro e, quando assumiram o governo, usaram-na para sabotar a lei de 1831 de todas as formas. Um jornalista que crescera sob as bençãos de Evaristo, Justiniano José da Rocha, vai ser a grande inteligência por trás dos sofismas utilizados pelos conservadores para justificar a vista grossa que a sociedade brasileira fez ao aumento do tráfico clandestino que, de 18.000 africanos traficados entre 1831 e 1834, saltaria para 230.000 entre 1834 e 40. Como conclui o autor: “Essa coalizão entre políticos, fazendeiros e a impressa foi diretamente responsável por um dos maiores crimes da história do Brasil. A política, a economia e a sociedade que emergiram da Regência foram fortemente baseadas na exploração de africanos ilegalmente contrabandeados. Sem a atuação da imprensa, a sociedade brasileira talvez tivesse sido consolidada de outra forma”.
De mesmo espírito é a revelação da imprensa como fonte fundamental para entender os esforços empreendidos ainda durante a Regência no sentido de promover a substituição do trabalho escravo pelo livre através do estímulo à imigração. Em seu capítulo, José Meléndez apresenta as ações empreendidas neste sentido por instituições como a “Sociedade promotora da colonização”, do Rio de Janeiro e suas congêneres em Salvador e em Santos. Lançadas entre 1835-1836, apesar da adesão de grandes personalidades da vida pública e da intensa atividade que desenvolveram através da imprensa, tiveram vida curta, não sobrevivendo à Regência.
Segundo o autor, por falta de documentação concernente, essas sociedades, costumam ser mencionadas apenas en passant, em trabalhos acadêmicos. Diante do volume de material que obteve nas pesquisas que fez sobre o tema na Hemeroteca Digital, Meléndez conclui que: “é na imprensa e não no parlamento, nem nas assembleias provinciais e nem em reuniões do Gabinete” que se devem realizar as pesquisas que dão acesso à dimensão mais completa do fenômeno. Os jornais abrem ao pesquisador janelas que revelam um sofisticado sistema desenvolvido para identificar, transportar e receber migrantes estrangeiros nos portos brasileiros entre 1834 e 1841. Por meio de artigos de opinião; de traduções de textos sobre o tema; de anúncios publicados e de informações logísticas relativas à colonização, a imprensa revelou-se ao autor como a primeira plataforma para conhecer a articulação que possibilitou a entrada dessa leva de imigrantes durante o período regencial.
Aspecto inédito nos estudos sobre imprensa, a ação de correspondentes nacionais nos jornais da corte do Rio de Janeiro, apresentada aqui por Hendrik Kraay, demonstra o vínculo estreito que havia entre as províncias e o poder central. Na visão do autor tais cartas teriam contribuído “para forjar a comunidade imaginada da nação brasileira”. Kraay analisou 128 cartas vindas da Bahia e publicadas em 1868 nos principais jornais do Rio que revelaram a interação que aquele tipo de correspondência pública promovia entre a província e a capital. Revelam ainda a forma como as disputas políticas da corte se reproduziam no resto do país, espelhando a divisão que marcaria as três últimas décadas do Segundo Reinado entre liberais e conservadores. No Jornal do Comércio, o mais importante do período, a seção tinha um caráter imparcial e abrigava correspondentes liberais e conservadores. Mas todos os grandes jornais mantinham esse tipo de seção que costumava ocupar um espaço generoso na página impressa. Sinal de que atendia às expectativas do público leitor da capital.
Boa contribuição à história do ofício de jornalista é a apresentação que Kraay faz do perfil do correspondente regional e de seu cotidiano: a espera do paquete com as notícias e a pressa em escrever a coluna antes que o próximo partisse. Também chama a atenção para o caráter peculiar daquele tipo de trabalho jornalístico, mais próximo da reportagem do que da crônica, levando o autor a um exercício de objetividade pela obrigação de descrever e interpretar os eventos para os leitores nacionais.
A atuação de José Carlos Rodrigues na imprensa brasileira é um tema que tem interessado aos historiadores, tanto pelo seu papel como editor do Jornal do Comércio que adquiriu dos irmãos Villeneuve na virada do século XIX para o XX, como pela publicação, na década de 1870, nos Estados Unidos, do jornal Novo Mundo. No capítulo assinado por Roberto Saba, Rodrigues se revela não só como o grande agente da difusão no Brasil de uma imagem de progresso e modernidade do que se tornaram os EUA, depois da Guerra Civil, como, intermediário fundamental para a inserção de herdeiros da elite cafeeira paulistana no meio acadêmico norte-americano. E as consequências desse investimento se fizeram sentir no processo de modernização agrícola experimentado pelos cafeicultores do oeste de São Paulo a partir do trabalho de seus rebentos instruídos nos States.
Esse trabalho de difusão das ideias apreendidas na América do Norte foi feito pelo Novo Mundo mas também por jornais publicados pelos estudantes brasileiros que se formaram em Cornell, universidade a que Rodrigues estava ligado por laços de amizade com os dirigentes. Em seus escritos, Rodrigues e seus pupilos, divulgavam as novidades tecnológicas implementadas nos EUA, ao mesmo tempo em que analisavam e discutiam causas e tendencias do progresso daquela nação. Para os jovens estudantes paulistas e seu mentor, José Carlos Rodrigues, o importante era demonstrar que, nos EUA, a dificuldade causada pela falta de braços depois da Abolição, fez a agricultura mais intensa e científica, pela adoção de modernizações tecnológicas que foram impulsionadas pelas novas circunstâncias.
O jornal de Rodrigues e o dos estudantes, Aurora Brasileira, depois, sugestivamente renomeada de Aurora Brazileira, tinham por objetivo promover o avanço científico da agricultura e das artes mecânicas e pregavam a superioridade do trabalho livre sobre a mão de obra escrava. O discurso que difundiam baseava-se em argumentos bem distantes dos discursos humanitários dos abolicionistas brasileiros e, como diz o autor, possibilitou que Rodrigues obtivesse o apoio dos mais cafeicultores brasileiros. A ponto de as mesmas ideias serem defendidas por um rico fazendeiro, o futuro presidente do Brasil, Campos Sales em artigo publicado na Gazeta de Campinas.
A ideia central era que a substituição gradativa do homem pela máquina e do escravo pelo trabalhador livre suficientemente instruído para operá-las, levaria a uma considerável economia de tempo e dinheiro. A partir da boa aceitação desse discurso entre o público leitor dessas publicações no Brasil, elas passaram a ter também uma boa carteira de anunciantes que vendiam: locomotivas, fertilizantes, ferramentas, implementos agrícolas, etc. Os estudantes paulistanos formados nas universidades americanas sob a influência de Rodrigues voltaram para o Brasil e foram atores importante no processo de industrialização e modernização do Estado de São Paulo.
Outra fonte de pesquisa bem promissora é a seção conhecida como Apedidos que figurava obrigatoriamente nos jornais entre as três últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX. Tereza Cribelli analisou os apedidos publicados no Jornal do Comercio em janeiro de 1870 e, com essa amostra, abriu uma vereda para estudos bastante abrangentes sobre a sociedade brasileira daquele período. Incluindo uma variedade de vozes, de estilos, de insultos criativos e de humor e cobrindo um amplo leque de assuntos desde queixas contra os serviços públicas, questões entre particulares, mensagens de amor, ofensas, agradecimentos e homenagens, a seção Apedidos oferece, como diz a autora, uma visão única dos sentimentos dos brasileiros naquele contexto. O fato de poderem ser publicadas por quem quer que tivesse os trocados necessários para pagar por algumas linhas impressas no jornal fazia com que ações, pensamentos e experiencias da vida privada das pessoas comuns invadissem a esfera pública. A seção que já era publicada no Jornal do Comercio, nos anos 1850, ocupava, modestamente a segunda página, vindo logo depois dos noticiários nacionais e internacionais. Mas seu sucesso foi tamanho e os ganhos extra que o jornal obtinha com o pagamento dessas mensagens fizeram com que, na década de 1870, passasse a ser publicada na primeira página.
Dois outros capítulos deste livro contemplam a presença do “homem de cor” na sociedade brasileira em perspectivas bem diversas. Rodrigo Camargo de Godoi analisa a inserção de escravos na sociedade letrada a partir da atuação de muitos deles nas gráficas que se multiplicaram no Rio de Janeiro, durante o Segundo Reinado. Apesar das restrições que havia com relação à educação do elemento escravizado, o acesso e a variedade das publicações, além do aprendizado da leitura possibilitado pelo trabalho nas tipografias, influíram também na criação de um público leitor entre os escravizados. O Homem, foi um jornal publicado por um mestiço da elite para denunciar o preconceito racial na sociedade pernambucana. Seu objetivo era claramente demonstrar que, apesar da Constituição garantir direitos iguais para todos, na prática, os homens negros livres eram discriminados nos concursos públicos, proibidos de se reunir em manifestações e até mesmo demitidos de seus empregos por causa da cor. Celso Thomas Castilho que assina esse capítulo, chama a atenção para o fato de que as reações contra o jornal por parte de outros órgãos da imprensa local demonstraram que O Homem incomodava justamente por representar uma quebra no tradicional tabu contra a publicização da discriminação racial.
O caráter panorâmico de alguns textos certamente tornará o livro mais interessante para o leitor anglófono. Marcelo Basile, apresenta a imprensa política brasileira, entre 1822 e 1840, a partir de conclusões obtidas em trabalhos de outros colegas e nos seus próprios. Ludmila de Souza Maia se detém sobre um gênero que chegou aos nossos dias, a Crônica, e seu papel na imprensa do século XIX, como laboratório para a revelação e o desenvolvimento de talentos literário. Em panorama ainda mais abrangente, Mathew Nestler e Zephyr Frank traçam a história da imprensa brasileira do século XIX do ponto de vista de questões associadas a uma perspectiva econômica e publicitária entre 1820 e 1890. Finalmente, mas não menos importante, o capítulo de Arnaldo Lucas Pires Junior, apresenta a imprensa satírica ilustrada que tanta força teve no Brasil da segunda metade do século XIX, comparecendo aos debates centrais em torno da Guerra do Paraguai, da Abolição e da Proclamação da República.
Reunião de trabalhos de autores dedicados à história da imprensa com os de outros autores que até então usaram a imprensa como uma das fontes de seus estudos, este livro representa o merecido reconhecimento à Hemeroteca Digital Brasileira, mas é também um estímulo para a realização de mais estudos que problematizem a imprensa e o ativo papel que sempre exerceu na transformação (ou conservação) da sociedade brasileira.
Bibliografia
Press, power and culture in imperial Brazil; organizado por Hendrik Kraay, Celso Thomas Castilho e Teresa Cribelli. University of New Mexico Press, Albuquerque, 2021. 306 p.
Investigadora integrada ao Centro de Humanidades (CHAM), Universidade Nova de Lisboa.
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