Um acerto de contas com o judiciário argentino
Carlos Artur Gallo1
1Professor-adjunto do Departamento de Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: galloadv@gmail.com.
BOHOSLAVSKY, Juan Pablo. ¿Usted también, Doctor? Complicidad de jueces, fiscales y abogados durante la dictadura. Buenos Aires: Siglo XXI, 2015. 448p.
A agenda de pesquisas sobre as ditaduras de Segurança Nacional1 no Cone Sul tem ganhado, sobretudo na última década, grande fôlego, sendo facilmente identificadas não só maior quantidade de boas análises que tratam do tema, mas também uma visível ampliação dos recortes temáticos que estão sendo realizados por pesquisadores das ciências humanas, em geral, na região.2 Algo que talvez ajude a explicar o aumento do interesse acadêmico da história, sociologia, e ciência política, entre outras áreas, pelo tema, pode ser a quantidade de novidades referentes ao contexto das ditaduras que foram surgindo a partir dos anos 2000, por exemplo: as novas condenações de agentes de repressão na Argentina, no Chile e, em menor grau, no Uruguai; o julgamento, em abril de 2010, da ADPF n. 153 pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro (que tratava da interpretação da Lei da Anistia que beneficiava agentes da repressão); as frequentes notícias sobre o encontro de crianças roubadas por agentes da repressão na Argentina; além, é claro, e pensando-se especificamente no caso do Brasil, da criação da Comissão Nacional da Verdade, que funcionou entre 2012 e 2014.
Se é fato que há mais estudos sendo elaborados e publicados recentemente sobre a temática, é perceptível, igualmente, que a referida agenda de pesquisas focada na análise do impacto das ditaduras não se desenvolveu da mesma maneira em cada um dos países que passou por regimes autoritários comprometidos com a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), no contexto da Guerra Fria. Assim, ao comparar as análises elaboradas no Brasil com as que foram e vêm sendo feitas pelos argentinos, por exemplo, pode-se verificar que, talvez devido ao modo como a memória da ditadura foi sendo construída em cada caso, alguns recortes temáticos que ganham profundidade no país vizinho ainda não chegaram a ser explorados com igual ênfase por acadêmicos brasileiros.
Demonstrando isso, encontra-se a coletânea ¿Usted también, Doctor? Complicidad de jueces, fiscales y abogados durante la dictadura (em tradução livre: “Você também, doutor? Cumplicidade de juízes, promotores e advogados durante a ditadura”), organizada por Juan Pablo Bohoslavsky.
Estruturada em sete seções, e contando com mais de vinte capítulos, a obra analisa, com variações de foco interessantes, um conjunto de questões específicas relacionadas ao aprofundamento da busca por justiça na Argentina, tais como: Qual o papel do Poder Judiciário e seus agentes durante a ditadura? Quem e como colaborou com o regime civil-militar a partir das instituições judiciais? O que aconteceu com essas pessoas após o fim da ditadura? É possível identificá-las e, eventualmente, puni-las na atualidade? Como fazer para levá-las ao banco dos réus?
Entre os capítulos que compõem a obra, uma primeira referência que merece destaque é o texto “El derecho durante el ‘Proceso’: una relación ambígua”, escrito por Enrique I. Groisman. Abrindo a seção intitulada “Direito e ideias jurídicas”, o estudo de Groisman observa as formas como a ditadura argentina tentou se apropriar do campo jurídico, visando legitimar alguns dos seus atos. Estabelecendo uma relação ambígua com o Direito, contudo, a coalizão civil-militar que comandou o país a partir de 1976 não se preocupou, de fato, com o cumprimento das normas de exceção editadas com base na DSN. Assim, e lembrando aqui da análise de Anthony W. Pereira (2010) sobre a legalidade autoritária argentina, Groisman converge com o autor mencionado ao observar que o Direito e as instituições judiciais foram apropriadas pela ditadura, como costuma ocorrer na vigência de regimes autoritários, mas gerando um padrão de “comportamento jurídico” com igual ou maior disposição para transgredir as próprias regras criadas pelo regime do que para aplicá-las.
Com foco na conexão entre Corte Suprema e ditadura, entre os capítulos que têm por objetivo analisar esse aspecto específico, vale mencionar tanto o texto escrito em coautoria por Juan Pablo Bohoslavsky e Roberto Gargarella, como o estudo de Juan Francisco González Bertomeu. Mas, enquanto Bohoslavsky e Gargarella se detêm no resultado mais evidente da Corte Suprema enquanto instituição que irá respaldar os atos de exceção do regime autoritário, González Bertomeu foca nos agentes designados para compô-la em nome da “segurança nacional”. Assim, ao focar na composição da Corte a partir de 1976, González Bertomeu chama a atenção para o fato de que a Junta Militar, que governou o país, destituiu, nos primeiros dias após tomar o poder, todos os membros que a compunham antes do golpe, estabelecendo critérios altamente discricionários para a escolha dos novos ministros, de modo que todos os seus integrantes seriam escolhidos por serem, no mínimo, conservadores. Há nuances nos comportamentos que os ministros teriam ao longo da ditadura, é claro, e, em alguns casos, houve decisões que tornaram visível o fato de que a coesão interna era relativa. Em geral, entretanto, a composição da Corte foi pouco ou nada protagônica no período, sendo altamente submissa e colaborativa, respaldando atos de exceção da Junta Militar.
Avançando para a análise de outros atores do campo jurídico e suas eventuais conexões com a ditadura, encontra-se o capítulo escrito por Lucía Castro Feijóo e Sofía I. Lanzilotta, no qual são discutidas as diferentes formas de colaborar com a ditadura a partir do âmbito jurídico, mas também as estratégias de resistência que foram possíveis naquele contexto. Colaborando com a ditadura, Castro Feijóo e Lanzilotta identificam que ações e omissões cometidas por juízes, promotores e outros funcionários públicos foram constantes, seja acobertando torturas, simulando a legalidade de atos e facilitando a adoção de crianças roubadas, bem como dificultando o acesso à justiça de vítimas da repressão. No plano da resistência, as autoras comentam casos como o do juiz da Província de Córdoba, que foi perseguido por decretar a prisão de policiais envolvidos com a morte de cinco funcionários de uma associação de cooperativas.
Outra abordagem centrada nos operadores do Direito recai, justamente, na complexa relação entre os advogados e a ditadura. Além de análises sobre os advogados que resistiram contribuindo com o incremento da luta pelos direitos humanos na Argentina (caso dos capítulos escritos por Laura Saldivia Menajovsky e Claudia Bacci et al.), uma leitura interessante pode ser feita no capítulo de Virginia Vecchioli, que apresenta dados sobre o papel desempenhado por associações profissionais durante o “Proceso de Reorganización Nacional” implementado pela ditadura. Em seu texto, Vecchioli observa e evidencia as conexões entre associações de advogados e o regime, demonstrando as formas como esses grupos buscaram, ao reforçar os “valores” que seriam a base de uma “comunidade moral” de profissionais do Direito, legitimar a intervenção civil-militar de março de 1976. Compartilhando elementos de um discurso religioso (católico) com uma visão política conservadora e anticomunista, o Colegio de Abogados de la Ciudad de Buenos Aires, a Corporación de Abogados Católicos San Alfonso María de Ligorio e o Foro de Estudios sobre la Administración de Justicia se empenharam em fortalecer o Estado de exceção e garantir, com o fortalecimento da Junta Militar, seu próprio fortalecimento moral na luta contra a subversão.
Pensando nas possibilidades de ruptura bem como na continuidade de práticas, regras e pessoas comprometidas com o autoritarismo após o retorno à democracia, nos capítulos de María José Sarrabayrouse Oliveira e Leticia Barrera encontram-se dados e reflexões interessantes, que contribuem para a formulação de hipóteses que ajudem a explicar as razões pelas quais o Judiciário argentino estabeleceu uma trajetória de avanços e recuos no tocante à realização da justiça. Sarrabayrouse Oliveira e Barrera convergem em suas interpretações, observando a permanência, após a saída das Forças Armadas do poder em 1983, de estruturas e pessoas comprometidas com a ditadura na arena judicial como uma das causas para que a luta por justiça no país fosse limitada em diversas oportunidades ao longo das décadas de 1980 e 1990. Embora, como analisa Barrera, nenhum dos integrantes da Corte Suprema nomeados durante a ditadura tenha permanecido no cargo com o retorno à democracia, a falta de um amplo debate público em torno do tema pode ser considerada problemática, visto que o interesse pela nova composição da instituição ficou restrito a políticos e membros do campo jurídico.
Por fim, parece interessante destacar, ainda, dois capítulos que abordam o tema da apuração de responsabilidades dos envolvidos com os crimes cometidos pela ditadura. Nesse sentido, tanto o estudo de Pablo Gabriel Salinas como o de autoria de Leonardo Filippini e Agustín Cavana aportam interpretações importantes sobre limites e possibilidades relacionadas à realização das demandas por justiça no país. Enquanto Salinas foca nos julgamentos nos quais foram condenados, em 2014, juízes e procuradores de justiça da província de Mendoza, mostrando as contínuas tentativas de processar e punir essas pessoas desde a década de 1980, Filippini e Cavana apresentam um panorama sobre as possibilidades, na atualidade, de levar a julgamento civis que, vinculados ao Judiciário argentino, colaboraram com a ditadura e/ou, com o retorno à democracia, dificultavam ou bloqueavam o acesso à justiça por parte das vítimas do terrorismo de Estado.
Em linhas gerais, pode-se observar que o aprofundamento das análises realizadas na coletânea é possível, de algum modo, devido à própria expansão da realização das demandas por justiça ocorrida na Argentina após a chegada de Néstor Kirchner à presidência, em 2003, e, sobretudo, a partir de 2005 (Calado, 2014). Quando ocorreu, em 2005, o julgamento do “Caso Simón” pela Corte Suprema de Justicia de la Nación, foram declaradas nulas as “leis de impunidade” (Norris, 1992) editadas ao longo da década de 1980, para barrar a continuidade dos julgamentos dos envolvidos com as violações aos direitos humanos praticadas durante a ditadura, podendo ser iniciados novos processos e serem apuradas outras responsabilidades além das pessoas vinculadas às Forças Armadas.3
São interpretações que aprofundam perspectivas surgidas e, de certo modo, até mesmo negligenciadas no rastro dos estudos sobre as transições à democracia ocorridas no âmbito daquela que, conforme o estudo de Samuel P. Huntington (1994), seria a terceira onda de democratizações. Não respondem a todos os problemas levantados pelos autores que fazem parte do projeto, mas apresentam análises, dados e hipóteses a serem exploradas, visto que lançam luz nas conexões entre direito e justiça antes, durante e depois de períodos de exceção. Dessa forma, ao fazê-lo, abrem possibilidades analíticas interessantes, talvez necessárias, para a comparação com contextos como o brasileiro, no qual agentes da repressão, mesmo passadas mais de três décadas desde o fim da ditadura, sequer sentaram no banco dos réus. Reforçam, por um lado, a necessidade de que sejam verificadas, além das novidades estabelecidas pelos novos arranjos institucionais democráticos, rupturas e continuidades de comportamentos e instituições criadas ou fortalecidas durante períodos de exceção. Por outro, contribuem para a comparação do caso argentino com outros países, sugerindo caminhos para o estabelecimento de semelhanças e diferenças que ajudem a explicar, a partir do estudo do impacto da ditadura no campo jurídico, seus agentes e sua estrutura organizacional, os principais avanços, recuos e desafios na trajetória das demandas por memória, verdade e justiça na região.
BIBLIOGRAFIA
CALADO, Rui. (2014), “Políticas de memória na Argentina (1983-2010). Transição política, justiça e democracia”. História – Revista da FLUP, IV (4): 51-64.
HUNTINGTON, Samuel P. (1994), A terceira onda: democratização no final do século XX. São Paulo, Ática.
NORRIS, Robert E. (1992), “Leyes de impunidad y los derechos humanos en las Américas: una respuesta legal”. Revista del Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 8 (15): 47-121.
PADRÓS, Enrique Serra. (2009), “História do tempo presente, ditaduras de Segurança Nacional e arquivos repressivos”. Tempo & Argumento, 1 (1): 30-45.
PEREIRA, Anthony W. (2010), Ditadura e repressão: o autoritarismo e o Estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
PINTO, António Costa & MARTINHO, Francisco Carlos P. (orgs.) (2013), O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
1 Seguindo o exemplo de historiadores como Enrique Serra Padrós (2009), utiliza-se a denominação “ditaduras de Segurança Nacional” para fazer referência aos regimes autoritários que, iniciados nos países do Cone Sul a partir da década de 1960 e finalizados até o ano 1990, estiveram ideologicamente alinhados aos preceitos básicos da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), tais como: (a) o combate ao suposto avanço do comunismo na região; (b) o deslocamento da lógica de combate aos “inimigos externos” para o de identificação e combate dos “inimigos internos” do Estado, que poderiam ser qualquer pessoa que fosse considerada subversiva pelo aparato repressivo; e (c) o endurecimento das políticas estatais com vistas ao realinhamento da economia a novos padrões de desenvolvimento.
2 Exemplos de estudos recentes sobre legados autoritários na região são: a coletânea O passado que não passa..., organizada por António Costa Pinto e Francisco Carlos P. Martinho (2013), e o livro Ditadura e repressão..., no qual Anthony W. Pereira (2010) analisa o modo como o campo jurídico foi apropriado pelas ditaduras argentina, brasileira e chilena.
3 A nulidade das leis de “Obediencia Debida” e “Punto Final”, declarada pela CSJN em 2005, permitiu a reabertura e a proposição de ações buscando o julgamento e a punição de um conjunto significativo e variado de pessoas vinculadas à repressão. Conforme dados atualizados pelo Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), entre 2005 e 2017 foram proferidas 176 sentenças, nas quais 695 pessoas foram condenadas por violações aos direitos humanos (entre as quais: militares, civis, funcionários do Judiciário, advogados, empresários, sacerdotes, entre outros). Os dados compilados pelo CELS podem ser consultados em: <http://www.cels.org.ar/web/estadisticas-delitos-de-lesa-humanidad>.
Revista Brasileira de Ciências Sociais
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