Idle No More: sobre a mobilização indígena no Canadá
Leonardo Barros Soares1
1Doutorando em ciência política na linha de participação, movimentos sociais e inovação democrática, e membro do Projeto Democracia Participativa da Universidade Federal de Minas Gerais (Prodep/UFMG). E-mail: .
COATES, Ken. #IdleNoMore and the remaking of Canada. Canadá: University of Regina Press, 2015. 231p.
Há uma evidente lacuna empírica na ciência política brasileira: a ausência de estudos utilizando conceitos, métodos e teorias próprias deste campo disciplinar para abordar questões relativas aos povos indígenas brasileiros. Uma pesquisa por artigos nas sete principais revistas da área,1 entre 1996 e 2017, confirma essa observação: dentre 2.621 artigos publicados no período, apenas dois se debruçaram sobre algum tema relacionado aos povos originários brasileiros (Codato, Lobato e Castro, 2017; Fernandes, 2015).
Mais ainda, há um notável desinteresse por pesquisas acerca dos movimentos sociais indígenas, que vêm se organizando desde a década de 1970 e têm tido crescente destaque no cenário nacional. Isso não quer dizer, evidentemente, que os povos indígenas e suas organizações políticas não tenham sido investigados por pesquisadores de outros campos disciplinares, a exemplo da antropologia. Estudos como o recente trabalho de João Pacheco de Oliveira (2016) sobre a sociogênese do movimento indígena brasileiro, para ficarmos em apenas um exemplo, atestam essa afirmação. Nesse sentido, trazer um tema de investigação tradicionalmente abordado por um campo disciplinar para outro representa um desafio teórico-metodológico de primeira ordem para os cientistas políticos brasileiros.2
Essa não é a realidade no cenário internacional, que produziu trabalhos interessantes nos últimos anos sobre o tema na América do Norte (Belanger e Lackenbauer, 2015) e na América Latina (Warren e Jackson, 2002). O Canadá, talvez o caso mais comparável com o Brasil em termos de política indigenista e populações indígenas, também tem se dedicado a produzir monografias sobre os movimentos sociais do país. No entanto, essa produção ainda é largamente ignorada na academia brasileira, e a presente resenha se apresenta como um convite à leitura de uma das obras recentes sobre o fenômeno naquele país.
No fim de 2012, no congelante inverno canadense, algo que parecia improvável aconteceu. O que começara como uma pequena movimentação de quatro mulheres – três pertencentes a comunidades indígenas locais e uma aliada não indígena – ao lado de uma estação de metrô de Saskatoon, a capital da província de Saskatchewan, se espalhou pelos quatro cantos do país, mobilizando centenas de milhares de pessoas, sob uma poderosa palavra de ordem: Idle No More! (“Não mais apatia!”, em tradução livre). É a história desse movimento “sem líderes” que é contada em detalhes no livro do professor Ken Coates, intitulado #IdleNoMore and the remaking of Canada, objeto da presente resenha.
Para compreendermos o contexto em que o movimento analisado pela obra ocorreu, faz-se necessário ter em mente alguns dados importantes. Primeiramente, que os chamados povos aborígenes canadenses são divididos em três categorias: as chamadas First Nations, correspondente aos povos indígenas no Brasil; os chamados Métis(do francês para “mestiço” ou “misturado”), grupo de indivíduos descendentes das relações entre colonizadores europeus e povos originários e que dispõem de uma matriz cultural própria e, finalmente; os Inuit, conhecido entre nós pela palavra – já em desuso – “esquimós”, povos que habitam o ártico há milênios. São uma porção minoritária da população daquele país que enfrenta as piores condições de habitação, saneamento, desemprego, violência e abuso de drogas, além de estarem sobrerrepresentados no sistema prisional. Foram, e ainda são, objeto de políticas públicas racistas e assimilacionistas, desprezo e abandono governamental, além de contarem com pouco reconhecimento por parte da sociedade canadense. Em resumo, em que pesem as lentas e graduais modificações em sua qualidade de vida nos últimos quarenta anos, eles ainda são, certamente, o grupo de maior vulnerabilidade social num dos países com melhor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do planeta.
O primeiro capítulo, “Mobilizing an awakening”, dá conta exatamente de buscar entender a fagulha que incendiou o “material inflamável” já existente entre os grupos aborígenes. O ano de 2012 findava com a proposição, por parte do governo do Primeiro-ministro conservador Stephen Harper, de uma nova peça orçamentária, a chamada Bill C-45. Entre as mais de 400 páginas da árida legislação estavam uma série de proposições de desregulamentação econômica com vistas à facilitação de empreendimentos. Entre elas, a desregulamentação da proteção de rotas fluviais utilizadas pelos povos aborígenes em suas atividades tradicionais e a facilitação do uso da terra para investimentos de capital oriundo de indivíduos não pertencentes às comunidades.
Nesse contexto, quatro mulheres naturais de Saskatchewan decidiram promover um evento de debate e conscientização dos desafios relativos à legislação proposta. Utilizando sobretudo as redes sociais – fundamentais em todo o processo, como a hashtag constante do título do livro permite entrever –, elas chamaram o encontro de Idle No More. Nascia aí, portanto, a centelha de uma explosão que tomaria proporções inauditas nos meses vindouros. No entanto, ainda em seus passos iniciais e com líderes que se mantiveram fora do foco midiático durante todo o seu decorrer, Idle No More significava pouco para a audiência canadense naquele início de novembro. Mesmo assim, os pequenos eventos de discussão da Bill C-45 foram se multiplicando, sempre tendo as redes sociais como plataforma privilegiada de articulação e mobilização dos e das participantes.
Em seu segundo capítulo, “The roots of aboriginal anger and hope”, o autor dá um passo atrás em busca dos elementos que explicam a emergência da mobilização de massa dos povos aborígenes ao fim de 2012. Como ele explica, o movimento não surge “do nada” (out of thin air), mas tem raízes na organização histórica dos povos aborígenes que se estende desde o início do século XX – foi de lá que partiu uma das primeiras petições internacionais realizadas por um povo indígena para a obtenção de garantias internacionais aos tratados celebrados no âmbito doméstico – e que se fortaleceu a partir da década de 1960, no esteio das mobilizações para a garantia dos direitos civis. Nesse sentido, afirma Coates, os povos aborígenes canadenses estão, hoje, mais organizados do que nunca, dispondo de organizações de âmbito nacional e, de igual modo, com forte atuação local nas próprias comunidades.
Ao mesmo tempo, as condições de vida dos povos aborígenes canadenses têm evoluído lentamente ao logo das décadas. A progressiva obtenção de tratados de reconhecimento territorial, que garantem certa autonomia política e administrativa e indenizações, por vezes milionárias, certamente trazem algum alento para os grupos mais organizados. No entanto, a experiência cotidiana da maioria dos grupos indígenas daquele país é a de desemprego, baixos salários, habitações insalubres e lotadas, parco saneamento básico e escolas degradadas. O índice de suicídios entre os jovens aborígenes é oito vezes maior do que entre os não aborígenes, configurando-se como uma epidemia de proporções alarmantes e que tem desencadeado respostas governamentais pouco efetivas. Em síntese, há fontes de esperança nas comunidades cada vez mais organizadas e com líderes cada vez mais escolarizados e aptos a jogar o jogo da economia capitalista, mas também há permanentes fontes de amargura, raiva e frustração.
O terceiro capítulo, “The round dance revolution”, chama a atenção para uma das principais atividades realizadas pelos participantes dos encontros, a saber, as danças circulares, utilizadas pela primeira vez num dos encontros em Halifax em dezembro de 2012. A utilização de danças, rituais e performances com forte caráter artístico e celebratório em detrimento de ações diretas disruptivas seriam, no entender do autor, uma das marcas do movimento e de seu sucesso junto à opinião pública. Em contraste com movimentos como Occupy e a Primavera Árabe, Idle No More seria muito mais uma afirmação dos valores comunitários e do orgulho de ser aborígene do que um movimento de contestação política violenta. As pautas políticas, evidentemente, estavam na ordem do dia, mas sob uma perspectiva que privilegiava os processos de tomada de consciência e não confrontação violenta, como a chamada Crise de Oka dos anos de 1990 dá testemunho.
No mesmo dia da realização da primeira dança circular em um dos eventos Idle No More – que viria a ser uma de suas marcas registradas –, a legislação que motivara o primeiro dos encontros do movimento foi aprovada no Senado. No entanto, esse fato não levou ao fim da mobilização. Ao contrário, o movimento cresceu em escala e complexidade, atingindo milhares de pessoas em todo o país e obtendo solidariedade internacional. No capítulo subsequente, “The Ottawa distraction and the complicated evolution of Idle No More”, Coates descreve o complexo cenário político de dezembro de 2012. É no fim deste mês que Theresa Spence, chefe de uma comunidade Cree em Attawapiskat, decide entrar formalmente em uma greve de fome. Ela reivindica um encontro com o primeiro-ministro e com o governador-geral do Canadá, este último apontado pela rainha da Inglaterra. Coates entende que, ao fim e ao cabo, essa ação direta, ainda que bem-intencionada, teve como consequência indesejada a personalização do movimento em apenas um indivíduo e, portanto, desviou o foco midiático das centenas de atividades surgindo em todo o país para sua capital. Além disso, para adicionar complexidade ao processo, a Assembly of First Nations, entidade nacional de representação dos povos indígenas, se viu no difícil papel de dar suporte ao protesto de Spence, ao mesmo tempo que buscava costurar uma solução em colaboração com o governo.
O descontentamento aborígene com o governo canadense continuou ao longo do inverno, chamado por Coates em seu quinto capítulo de “The winter of the discontented”. Nesse período, as ações continuaram com vigor mesmo após o fim da greve de fome de Theresa Spence. Destaca-se aí a chamada Journey of Nishiyuu, uma longa marcha realizada por jovens indígenas do norte de Québec até a capital canadense, levando mais de dois meses para completar sua missão. O autor relembra que, desta feita, a marcha era empoderadora e orgulhava seus participantes, ao contrário da chamada Trail of Tears dos anos 1830, quando o governo dos Estados Unidos realocou a força e a pé milhares de indígenas para reservas federais em Oklahoma, ocasionando grande mortandade e deixando uma marca permanente na história dos povos tradicionais da América do Norte.
Na tentativa de revitalizar a onda de ações do movimento, seus principais organizadores regionais tentaram impulsionar uma série de atividades no verão que, no entanto, não foram bem-sucedidas. Em “What happened to sovereignty summer?”, Coates apresenta o declínio progressivo das atividades de Idle No More, cada vez mais esparsas e com menos participantes ao longo do ano. O autor, no entanto, se recusa a ver nesse declínio um suposto “fracasso” do movimento, pois, a seu ver, o mesmo, desde o começo, tinha muito mais um caráter pedagógico e de revitalização da cultura aborígene do que qualquer outra coisa. O fato de não ter conseguido avançar de forma consolidada e institucional sua agenda não significa que o movimento não tenha sido exitoso em criar um evento inspirador e mobilizador, em especial para os jovens aborígenes canadenses.
Por fim, no último capítulo, “Idle No More and the technologies of mass mobilization”, Coates exibe uma série de dados obtidos em redes sociais, como o Twitter e Facebook, para demonstrar a intrínseca relação entre o movimento e essas plataformas, que agiram como um intenso catalizador de demandas de indivíduos que se criam atomizados e sem esperança. O autor demonstra em gráficos a extensão planetária do movimento, cujo alcance seria inimaginável numa era pré-internet. Não seria exagero afirmar, portanto, que o movimento Idle No More não alcançaria dimensões nacionais e internacionais se não viesse acompanhada de uma hashtag, que serviu para conectar diferentes atores em distintos lugares do país e do mundo.
#IdleNoMore and the remaking of Canada é um livro cujo mérito reside, sobretudo, no fato de prover uma visão ampla sobre o período em que o movimento se apresentou com maior pujança, fazendo uma descrição minuciosa de todos os seus passos e apresentando seus principais atores. A obra, no entanto, peca por seu caráter frequentemente celebratório do movimento, sem mencionar, de forma adequada, seus pontos críticos. Além disso, do ponto de vista teórico, o livro não dialoga com nenhum dos conceitos oriundos do campo dos estudos de movimentos sociais, o que empobrece, certamente, a análise empreendida por Coates. Enquadrar a discussão a partir de conceitos clássicos do campo como “repertório de ação” e “ciclos de protestos”, por exemplo, poderia ter conferido maior substância analítica ao conjunto de fatos narrado pelo autor (Soares, 2016).
Por fim, do ponto de vista metodológico, o livro se baseia inteiramente em análises de bancos de dados de internet, matérias de jornais e vídeos publicados no YouTube. A análise dos perfis de redes sociais tais como o Facebook e Twitter demonstraram o escopo do alcance da mensagem do Idle no More, inclusive no Brasil. Como nota o autor (p. 177), no entanto, “a análise de estatísticas de redes sociais apenas arranha a superfície” dos eventos e que ela apenas ajuda a “tomar o pulso de um movimento social ou conceito”, falhando na tentativa de capturar suas nuances. Ademais, a ausência de entrevistas e surveys com participantes e organizadores locais indubitavelmente empobrece a descrição, pois perde de vista a voz não filtrada através de entrevistas coletadas em jornais.
Ainda sobre a questão metodológica, vale ressaltar que dados sobre populações indígenas são, em geral, pouco sistemáticos e esparsos em todo o mundo, e a sua produção representa grande desafio para cientistas e tomadores de decisões (Reinie et al., 2017). Além disso, como afirma Scholtz (2006), a proeminência de campos disciplinares, tais como a antropologia e o direito, sobre as questões aborígenes implicou a realização de estudos a partir de dados etnográficos de difícil manejo pelos cientistas políticos. E, não menos importante, cumpre ressaltar que a relação entre povos autóctones e pesquisadores de diversos campos, no Canadá, é marcada por uma relação de desconfiança, que dificulta a realização de entrevistas e a produção de dados primários. Tendo em mente essas ponderações, podemos compreender a sorte de dificuldades enfrentadas pelo autor para a redação do trabalho aqui resenhado, findando por apresentar um caráter fortemente descritivo.
Não obstante esses pontos fracos, vale a pena ler a obra, especialmente quando cotejada com a realidade indígena brasileira, cujo potencial de mobilização cada vez mais se articula através de redes sociais (Pereira, 2012). Além disso, sua leitura pode estimular outros pesquisadores do campo das ciências políticas e afins a investigarem com mais rigor a temática indígena e, especificamente, o movimento indígena brasileiro.
BIBLIOGRAFIA
BELANGER, Y. D. & LACKENBAUER, P. W. (eds.). (2015), Blockades or breakthroughs? Aboriginal peoples confront the Canadian State. Canadá, McGill-Queen’s University Press.
CODATO, A.; LOBATO, T. & CASTRO, A. O. (2017), “‘Vamos lutar, parentes!’ As candidaturas indígenas nas eleições de 2014 no Brasil”. RBCS – Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 32 (93), on-line.
FERNANDES, E. R. (2015), “Ativismo homossexual indígena: uma análise comparativa entre Brasil e América do Norte”. DADOS – Revista de Ciências Sociais, 58 (1), on-line.
PACHECO DE OLIVEIRA, J. (2016), O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro, Contra Capa.
PEREIRA, E. S. (2012), Ciborgues indígen@s.br: a presença nativa no ciberespaço. São Paulo, Annablume.
REINIE, S. C. et al. (2017), “Data as strategic resource: self-determination, governance, and the data challenge for Indigenous nations in the United States”. The International Indigenous Policy Journal, 8 (2), abr.
SCHOLTZ, C. (2006), Negotiating claims: the emergence of Indigenous Land claim negotiation policies in Australia, Canada, New Zealand, and the United States. Londres, Routledge.
SOARES, L. B. (2016), “Ciclos de protesto e repertório de ação do movimento indígena brasileiro entre 2009 e 2016: o caso da PEC 215”. Paper apresentado no II Congreso Internacional los Pueblos Indígenas de América Latina, Santa Rosa, Argentina, 20-24 setembro.
WARREN, K. B. & JACKSON, J. E. (2002), Indigenous movements, self-representation and the State in Latin America. Austin, University of Texas Press.
1 DADOS – Revista de Ciências Sociais, RBCS – Revista Brasileira de Ciências Sociais, RBCP –Revista Brasileira de Ciência Política, Novos Estudos Cebrap, Lua Nova – Revista de Cultura e Política, Opinião Pública e Brazilian Political Science Review.
2 Agradecemos aos pareceristas anônimos por ressaltarem este ponto, que consideramos essencial.
Revista Brasileira de Ciências Sociais
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