segunda-feira, 24 de março de 2014

Infância em perspectiva


Infância em perspectiva: políticas, pesquisas e instituições Müller, Fernanda (org.) São Paulo: cortez, 2010. 256 p.

Marina Fernandes
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília - PPGE/FE/UnB. E-mail: marinafernandes@unb.br

A análise da infância contemporânea ocidental tem incorporado críticas do senso comum, sobretudo por seus novos hábitos: horas a fio em frente a videogames, desenvolvimento psicomotor dito tardio pela frequência com que são utilizadas determinadas tecnologias limitadoras do movimento das crianças, falta de brincadeiras de rua. A sociedade apresenta respostas para esses novos hábitos optando cada vez mais por equipar a casa para o divertimento dos filhos, pois faltam espaços públicos seguros nas cidades. Todas essas críticas, verdadeiras ou não, refletem uma análise baseada na nostalgia dos adultos em relação às suas infâncias, como já escrevia Bachelard.1 Ou seja, ao pensar no ideal de infância, é comum recorrermos às próprias experiências de infância e, partir dessa referência, é provável que encontremos respostas equivocadas às noções de infância.

Se olhar para a infância com nostalgia não é algo novo na humanidade, mais antigo ainda é deixar de olhar para as crianças. No Brasil, o primeiro estudo sobre o comportamento coletivo de crianças data dos anos 1940.2 Segundo Trent,3 esses estudos não são tão recentes assim no meio internacional, mas os problemas de pesquisa estiveram mais voltados a questões de saúde e desenvolvimento individual das crianças. Aqui, o tema de repercussão foi a criança em situação de vulnerabilidade social. Mais recentemente, a criança ganha visibilidade como sujeito sociológico quando é considerada competente para dar respostas sobre sua própria vida. Apenas a partir dos anos 1980, estudos europeus e estadunidenses sobre a infância começam a considerá-la como uma construção social, e não mais como uma fase natural da vida humana que necessita de socialização adulta.4

Nesse contexto, é perceptível que limitar o estudo da infância a um único campo de conhecimento, uma única lente, tende a se tornar incompleto, insatisfatório. A infância é uma categoria geracional e social e, portanto, precisa ser estudada a partir de vários olhares. É com essa necessidade que emerge o livro Infância em perspectiva: políticas, pesquisas e instituições. A capa já sugere reflexões importantes, ao apresentar a imagem de uma criança em diversos ângulos, com diferentes recortes, o que reflete a intenção e defesa da obra: o esforço interdisciplinar necessário ao estudo da infância.

O livro concatena dez artigos de diferentes áreas do conhecimento, a saber: antropologia, educação, enfermagem, filosofia e sociologia. Os autores são oriundos de instituições do Brasil, Estados Unidos e Reino Unido. É nessa multidisciplinaridade que o livro se apresenta com o intuito de investigar a infância a partir das categorias políticas, pesquisas e instituições. Na primeira categoria, são contempladas as diversas legislações e a sua aplicabilidade a todas as crianças nos mais diversos contextos culturais. Sobre a segunda, o livro mostra um conjunto de estudos que foram realizados diretamente com crianças, inovando no campo acadêmico ao considerá-las como sujeitos de pesquisa e construtores de dados em conjunto com os pesquisadores. Na terceira, são apresentados estudos sobre as crianças e a infância nas instituições, mais especificamente na cidade, família e instituições de educação infantil. Nessa categoria, às crianças é perguntado como percebem essas instituições que são planejadas e consideradas importantes para elas.

O livro é organizado em duas grandes partes, além do importante prefácio de Alma Gottlieb e da introdução da própria organizadora da obra: 1. Infância e crianças nas políticas e pesquisas; e 2. Infância e crianças nas instituições. A primeira parte, representada pelos cinco artigos de Alan Prout, Nick Lee, Alexandre Filordi de Carvalho e Fernanda Müller, Rita de Cássia Marchi e Ethel Volfzon Kosminsky, versa sobre a necessidade de escuta às crianças a partir de referenciais não centrados nos adultos e a produção de estudos da infância nas ciências sociais, especialmente na sociologia. A segunda parte, representada pelos outros cincos artigos, quais sejam de Pia Christensen, Berry Mayall, Samantha Punch, Cynthia Andersen Sarti e Damaris Gomes Maranhão e Marita Martins Redin, focaliza as questões que relacionam a infância às instituições sociais, sobretudo a cidade, a família e o contexto das instituições de educação infantil. Nesta parte, é importante ressaltar que, embora a criança tenha sido estudada nas ciências sociais a partir das instituições socializadoras e, por sua vez, tratadas de forma secundária, esses artigos mostram o caminho contrário: como as crianças percebem e se relacionam com essas instituições a partir dos seus próprios pontos de vista.

Ainda que exista uma linha condutora entre as pesquisas da coletânea, além de diversas convergências de ideias e achados, são expostas a seguir características intrínsecas aos campos teóricos e empíricos explorados em cada capítulo.

Ao abordar o tema infância, é quase que inevitável o pesquisador se deparar com dicotomias. É sobre uma delas que o primeiro artigo discorre. Trata-se da ideia de que a infância é entendida a partir de duas imagens sobre as crianças: criança em perigo e crianças perigosas. Criança em perigo sugere imaturidade, vulnerabilidade, inocência e dependência. Criança perigosa nos remete à ideia de necessidade de socialização contínua, sob pena de ela vir a se tornar um perigo à sociedade. Em ambas as noções, não é possível vê-la como autônoma, racional ou capaz de entender sua própria vida, ora precisando dos adultos para proteção, ora precisando das instituições para socialização. Para desconstruir essa ideia, é necessário, portanto, associar as concepções de cultura e lideranças no entendimento da infância.

O segundo artigo apresenta uma hipótese e uma sugestão, tendo como referência a Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança adotada em 1989. A hipótese é que palavras e categorias bem delimitadas podem facilitar a tomada de decisão de instituições, as ambiguidades, no entanto, permanecem a perturbar sua organização. A sugestão do autor é entender essas ambiguidades a fim de possibilitar mudanças não no âmbito da ausência ou abundância de voz das crianças, mas sim da sua ambiguidade enquanto falantes. Embora a Convenção seja criticada pelo autor em alguns momentos, principalmente no que se refere à sua ambiguidade, é perceptível que há a garantia da escuta à voz das crianças como direito delas (mesmo que a forma como é colocada não permita sua aplicabilidade).

Ainda sobre a voz da criança, as perspectivas metodológicas na pesquisa com crianças apresentam formas de garantir esse direito a elas no estudo da infância. É nesse contexto que se insere o terceiro artigo. Mesmo que o pesquisador se disponha a levar em consideração a fala da criança, é necessário atentar para as relações hierárquicas de poder e à desigualdade que sempre existirão entre adultos e crianças. Também é preciso investir em diferentes linguagens para se aproximar da maneira como as crianças se expressam, sem se limitar à fala e à escrita. Desenhos e fotografias são bons recursos metodológicos para se aproximar dessas representações das crianças. Perceber que existe uma relação hierárquica na pesquisa, na chegada ao seu objeto e na escolha de seus instrumentos é essencial, já que a construção da pesquisa não é necessariamente a preocupação da criança.

O entendimento da criança como protagonista de sua realidade social sugere que alguns temas de pesquisa somente possam ser estudados a partir do ponto de vista dela. O quarto artigo, além de ir ao encontro dos outros ao discorrer sobre a emergência da sociologia da infância, aponta para a questão de ordem essencialmente política em que a concepção de infância se enquadra, ainda que não seja reconhecida como tal na sociologia. Segundo a autora, sociólogos da infância têm alertado para o caráter político da construção social da infância. Ela aborda ainda a relação existente entre o processo de individualização e a construção social da infância.

Para finalizar a primeira parte da coletânea, o quinto artigo trata das lacunas do conhecimento sobre a infância que se transformam em pesquisas com crianças. É importante ressaltar que a autora também explora o tema da juventude, não focando apenas a criança. Para isso, apresenta o Núcleo de Estudos da Infância e da Adolescência - Neia - , grupo de pesquisa e discussão do qual a autora faz parte. Nesse contexto, as categorias infância e juventude são apresentadas a partir de uma análise histórica e categorial que a autora propõe. Para concluir, é ressaltada a opção pela abordagem interdisciplinar por ser, na visão da autora, a mais adequada e rica para o entendimento da infância.

Na segunda parte, ao apresentar pesquisas com crianças sobre as instituições sociais que regram e influenciam suas vidas, as autoras mostram a necessidade de reconhecer e compreender as ressignificações das crianças sobre essas instituições, considerando-as protagonistas de suas vidas. Os espaços destinados a elas são planejados e elaborados por adultos que dizem entender o que é ideal para as crianças sem, muitas vezes, tê-las consultado. Sendo assim, essa parte corrobora a ideia que já fora apresentada na introdução de que "o espaço só faz sentido quando articulado às relações sociais; isso é óbvio, mas a visão do adulto, muitas vezes, perde essas pistas, principalmente ao pensar e executar políticas voltadas para as crianças" (p. 16).

Explorar os espaços, suas texturas, suas estruturas a partir da lembrança dos adultos sobre sua infância é importante, e é o que tem sido feito por uma abordagem tradicional. O sexto artigo propõe um estudo inovador. Ao investigar lugares e espaços, a autora busca o conhecimento das crianças sobre sua localidade, identidade e vida cotidiana. A autora chega à conclusão de que essa compreensão é necessária para a mudança do ambiente físico em que vivem, ou seja, é preciso promover a participação das crianças na tomada de decisão sobre alterações na localidade em que vivem. Além disso, a autora ainda explora a relação existente entre a biografia das crianças, o movimento e o conhecimento do espaço e do lugar.

Estudar a infância requer estudar a família na qual a criança está inserida para entender o papel socializador atribuído a ela ao longo do tempo.5 O sétimo artigo aponta a necessidade de considerar as relações intergeracionais sob três categorias: socialização, família em mudança e interdependências. A autora descreve alguns pontos de partida que norteiam o seu trabalho e chega à conclusão de que as crianças são ignoradas conceitualmente até mesmo em outros campos do conhecimento como a economia, ainda que o planejamento familiar confirme a participação da criança nas finanças da casa. Entender a escolarização da infância como molde para a vida das crianças não é suficiente, visto que as percepções que elas têm sobre suas vidas são presentes a partir dos seus próprios pontos de vista.

Ajustada à perspectiva metodológica de considerar a hierarquia entre sujeito de pesquisa (criança) e pesquisador, a hierarquia dentro da família é confirmada pelos privilégios que pais dão aos filhos de acordo com as idades e ordem de nascimento. O oitavo artigo se remete às experiências fraternais vividas por crianças, à luz da sociologia da infância, já que essa temática vinha sendo estudada apenas sob a perspectiva da psicologia. Toda relação humana envolve poder. As crianças organizam brincadeiras com relações hierárquicas. As brincadeiras são complexas, incorporam questões da cultura e outras que são próprias das culturas infantis. Portanto, a hierarquia existente na família também é socialmente construída e a posição na ordem de nascimento sugere limitações e possibilidades às crianças, mostrando que essas duas concepções estão periodicamente sujeitas a negociações.

Ainda ao encontro da ideia de construção social, os papéis exercidos pela família são socialmente construídos antes mesmo de a criança nascer. Essa ideia é importante no momento em que as políticas públicas são elaboradas para a infância. Qual o papel das demais instituições socializadoras quando confrontadas com a família? Essa é uma das perguntas que o nono artigo responde à luz da função da creche. O estudo destaca a importância de construir uma rede social de proteção à infância que possibilite o fortalecimento das instituições que educam as crianças e cuidam delas, assim como a escola e a família, a fim de garantir o atendimento às necessidades e aos direitos da criança.

Alguns apontamentos da prática com crianças na educação infantil têm se mostrado relevantes na defesa da ideia de que profissionais dessa área precisam ter conhecimento específico sobre a infância e a necessidade das crianças. O décimo artigo mostra que as instituições parecem estar formatadas no intuito de enquadrar crianças, produzindo um padrão. Essa inadequação está ligada à ideia da necessidade de socialização das crianças que, se não forem submetidas a esse regime, podem se tornar crianças perigosas, o que também é abordado pelo primeiro artigo desta obra.

Os artigos da coletânea, embora originados em diferentes campos, apresentam pontos-chave em comum no entendimento do objeto infância e do sujeito criança: a infância é um período socialmente construído; é uma forma estrutural, porque permanece ainda que os sujeitos cresçam e não façam mais parte da infância;6 é um conceito culturalmente/socialmente construído; a infância não pode ser confundida com fases do desenvolvimento humano, e muito menos com imaturidade; precisa ser reconhecida como ela própria para não ser entendida como uma preparação para a vida adulta; crianças são agentes ativos; produtores de cultura e contribuem para a produção do mundo adulto.

Se o objetivo da obra era explorar a infância a partir de vários referenciais teóricos e campos empíricos, ela conseguiu contribuir na composição de um mosaico para entender a criança, já presente na capa do livro. Além disso, chama a atenção para o diálogo necessário entre os estudos acadêmicos e as políticas voltadas para a infância. E, por fim, abre horizontes para que os grupos de pesquisa se relacionem a fim de investigar esse fenômeno complexo que é a infância de forma mais colaborativa.

1 BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
2 FERNANDES, Florestan. As "Trocinhas" do bom retiro: contribuição ao estudo folclórico e sociológico da cultura e dos grupos infantis. Pro-posições, Campinas, v. 15, n. 143, p. 229-250, jan./abr. 2004.
3 TRENT, James. A Decade of declining involvement: American sociology in the field of child development, the 1920s. Sociological Studies of Child Development, v. 1, p. 11-38, 1987.
4 Ver: MONTANDON, Cléopâtre. Sociologia da infância: balanços dos trabalhos em língua inglesa. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 112, p. 33-60, mar. 2001. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/cp/n112/16100.pdf>. Acesso em: abr. 2013.
SIROTA, Régine. Emergências de uma sociologia da infância: evolução do objeto e do olhar. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 112, p. 7-31, mar. 2001. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/cp/n112/16099.pdf>. Acesso em: abr. 2013.
5 ARIÈS, Philippe. Centuries of childhood. Harmondsworth: Penguin, 1960.
6 QVORTRUP, Jens. Childhood in Europe: a new field in social research. In: CHISHOLM, Lynne et al. Growing up in Europe: contemporary horizons in childhood and youth studies. New York: W. de Gruyter, 1995. p. 7-19.
CORSARO, William. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.
Revista Cadernos de Pesquisa

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