domingo, 8 de dezembro de 2013

Confissões de um jovem romancista

Umberto Eco

Em "Confissões de um jovem romancista", autor escreve sobre a construção de seus próprios romances


 
MAURÍCIO SANTANA DIAS

Que não se esperem grandes novidades do novo livro de Umberto Eco. A despeito do título sugestivo, Confissões de um jovem romancista não é uma autobiografia do “bruxo de Bolonha” nem uma reescritura paródica de Agostinho, Rousseau, Musset ou De Quincey – muito menos de Joyce. De fato, o pequeno volume reúne quatro conferências proferidas na Universidade Harvard em 2009, nas quais o autor comenta a própria obra – sobretudo a de ficção – e em parte retoma o que seus leitores já conheciam de livros como Seis passeios pelos bosques da ficção, Pós-escrito a  “O nome da rosa” ou Sobre a literatura.
Raramente um escritor é um bom analista da própria obra. Quase sempre há uma espécie de miopia ou de névoa que se interpõe entre o criador e a criatura, precisamente porque o autor quer fazer seu objeto coincidir com sua própria imagem. Felizmente não é este o caso de Umberto Eco, que a todo o momento faz questão de afirmar que ele, como “autor empírico”, tem pouco a dizer sobre sua obra: “os chamados escritores ‘criativos’ [...] nunca devem oferecer interpretações à própria obra”, diz numa de suas formulações categóricas. Isso porque, da perspectiva do semiólogo Eco, é sobretudo ao leitor – não o “leitor empírico” (eu, você, os clientes de uma livraria), mas o “leitor modelo”, capaz de decodificar a “intenção do texto” – que cabe a palavra final sobre uma obra literária. Mas há o reverso da medalha: Eco não se faz ilusões sobre seus textos porque está convencido de que eles são apenas “um mecanismo concebido para suscitar interpretações”, ou melhor, um “mecanismo concebido a fim de produzir seu leitor-modelo”.
Pode parecer complicado, mas no fim das contas essas afirmações podem ser resumidas numa palavra: truísmo, também conhecido por tautologia. Isso quer dizer que a leitura de Confissões é enfadonha ou pouco proveitosa? Longe disso. O gosto de Eco pelos jogos de raciocínio e pela enciclopédia infinita é capaz de levar seus leitores a vertigens ilimitadas – e, a propósito, o livro se encerra com uma brilhante reflexão sobre a vertigem das listas.

Pesquisador e romancista
Mas comecemos, ou continuemos, pelo início. Logo nas primeiras páginas da apresentação, Eco relata um episódio que remete a meados dos anos 1950, quando defendeu sua tese sobre a estética de Tomás de Aquino (1957). Um dos arguidores o recriminou em tom amistoso de que sua tese se apresentava como uma espécie de “romance policial”. Eco não nos diz qual foi sua resposta naquela ocasião, mas o senhor de hoje sentencia: “Toda obra científica deve ser uma espécie de thriller – o relato de uma busca por algum Santo Graal”.
A partir de então, ele rememora como escreveu ou construiu seu primeiro e mais famoso romance, O nome da rosa: “Quando decidi escrever o romance, foi como se abrisse um grande armário no qual, durante décadas, vinha depositando meus arquivos medievais. Todo aquele material estava ali aos meus pés e eu só tive de selecionar o que precisava”. Alguém poderia objetar que essa metáfora seria mais adequada para definir o “instinto de almoxarife”, como já o acusou um de seus críticos mais contumazes, do que o bom romancista, cujo trabalho costuma implicar procedimentos mais criativos. Mas o fato é que Umberto Eco, autor empírico, não vê tanta distinção – pelo menos no plano do método – entre o trabalho do pesquisador acadêmico (que, como já vimos, deve sempre compor um thriller) e o do romancista, que antes de escrever sempre faz pesquisas minuciosas, a fim de ter o maior controle possível sobre seu objeto. Afinal “a genialidade é composta de 10% de inspiração e 90% de transpiração”, diz Eco citando Thomas Edison (no caso de Edison, a proporção era de 1% para 99%).
Não sem deixar transparecer um certo orgulho, Eco confessa que, para cada um de seus romances – com O cemitério de Praga já são seis, escritos em média a cada seis anos –, ele se prepara longamente: “Coleciono documentos, visito lugares e desenho mapas; tomo nota de plantas de edifícios, ou às vezes de um navio [...] e esboço o rosto dos personagens” etc. Estaria Eco reeditando os procedimentos experimentais defendidos por Zola há quase um século e meio? Consciente dessa possível associação, ele se antecipa e retruca antes que o acusem de naturalista plagiário: “Fiz o que fiz não porque queria imitar o realismo de Émile Zola, mas (conforme afirmei) porque, ao narrar, gosto de ter em minha frente a cena sobre a qual escrevo”.
Pensando bem, talvez essa paixão pelo excesso descritivo, pela minúcia, pela enumeração e, ao mesmo tempo, a necessidade de manter sob controle permanente uma massa gigantesca de informações sejam a principal marca de Umberto Eco, para o bem e para o mal. Nele há sempre o flerte com o absoluto, uma tensão para o infinito, mas a partir de uma perspectiva cética – e não há nada mais pós-moderno que isso.
A propósito do “pós-moderno”, em Confissões o autor de Baudolino aproveita para mais uma vez acertar contas com esse já desgastado conceito. Admite ser um praticante do “duplo código”, ou seja, escrever ao mesmo tempo para o mais sofisticado e o mais naïf dos leitores com igual proveito (os “leitores ingênuos”, no máximo, “perderam uma piscadela adicional”), recorrendo abundantemente à “ironia intertextual” e à “metanarratividade”. Mas alto lá, diz Eco: “Não sou o que certos departamentos acadêmicos americanos depreciativamente denominam um ‘textualista’ – alguém que acredita (como alguns desconstrutivistas) que não há fatos, apenas interpretações, isto é, textos”. E, neste ponto, não há o que objetar. Um de seus cavalos de batalha desde A obra aberta (1962) sempre foi explorar a tensão dialética entre os direitos do texto e os direitos do leitor. Daí as recorrentes postulações de que “a coerência interna de um texto controla os incontroláveis impulsos do leitor”, ou que “entre a história misteriosa de uma criação textual e a deriva incontrolável de suas leituras futuras, o texto enquanto tal ainda representa uma presença reconfortante, um ponto ao qual podemos nos agarrar”.
No entanto a capacidade de distinguir entre fato e ficção, entre “OFEs” (Objetos Fisicamente Existentes) e construtos puramente ficcionais, já dá sinais de vacilar. “Recentemente li que, segundo uma pesquisa, um quinto dos adolescentes britânicos crê que Winston Churchill, Gandhi e Dickens são personagens de ficção, enquanto Sherlock Holmes e Eleanor Rigby seriam reais”, diz Eco perplexo e quase resignado.

Umberto Eco e sua preciosa biblioteca: “coleciono documentos, visito lugares e desenho mapas”
Enumeração caótica
Em meio a tanta vertigem, não se pode negar que há nele essa obsessão pelo ponto fixo (o “pêndulo”), o ponto arquimediano. Por isso o “texto” não subsiste no ar ou nas nuvens, mas está solidamente enraizado no mundo, submetido a leis internas de verossimilhança, balizado por “restrições” (contraintes, diriam os teóricos do Oulipo) que tanto o autor quanto o leitor devem respeitar, a menos que se trate de uma peça deliberada e absolutamente nonsense. Mesmo que um romance nasça de duas imagens incongruentes – como o “pêndulo” e a “trombeta” –, o trabalho do escritor deverá se concentrar na construção de uma ponte que leve de um para o outro: e o resultado dessa complicada operação é O pêndulo de Foucault, diz o escritor.
Defendendo com agudeza e engenho seus pontos de vista, polemizando com bom humor, revelando alguns segredos (como o de que Cesare Pavese foi uma espécie de modelo para o personagem Jacopo Belbo), ao final do livro Umberto Eco chega finalmente a questionar os limites de sua própria criatividade, ao evocar dois autores para ele paradigmáticos: Borges e Calvino. A confissão se dá quando ele aborda um dos procedimentos centrais da poesia moderna, a “enumeração caótica”. Após ter distinguido o que para ele seriam as diferenças fundamentais entre o poeta e o romancista, Eco diz: “Pergunto-me se já elaborei uma lista verdadeiramente caótica. Como resposta, devo dizer que só os poetas criam listas caóticas genuínas. Romancistas são obrigados a representar algo que ocorre num determinado espaço e tempo, e, quando fazem isso, sempre projetam um tipo de moldura dentro da qual qualquer elemento incongruente é de certa forma ‘colado’ a todos os outros”.
Em outras palavras, é como se o romancista, ao contrário do poeta, estivesse submetido a uma racionalidade que de algum modo limitasse sua capacidade criativa. Aí está um ponto polêmico e questionável, que mereceria novos desdobramentos.
Surpreendentemente, nas últimas páginas do livro, Eco faz algumas digressões que recuperam Marx e indiretamente o associam à WWW, tingindo sua fala de um certo pessimismo. Ele lembra que, no início do Capital, Marx afirma que “a riqueza das sociedades em que prevalece o modo de produção capitalista se apresenta como um imenso acúmulo de mercadorias”; e, na outra ponta, chega à conclusão de que “a WWW é de fato a mãe de todas as listas [...] o único empecilho é que não sabemos que elementos se referem a dados do mundo real e quais, não. Não há mais distinção entre verdade e erro” (grifo meu).
E assim voltamos aos adolescentes britânicos.
Maurício Santana Dias
é professor de Literatura Italiana na Universidade de São Paulo, tradutor e ensaísta

Revista Cult

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