Noel Rosa: o humor na canção
Filósofo do samba
Morreu aos 26 anos, mas foi um divisor de águas na canção popular
urbana no Brasil. Livro recém-lançado analisa o uso estratégico do humor
e da ironia na obra de Noel Rosa.
Gabriela Reznik
Publicado em 06/08/2012 | Atualizado em 06/08/2012
Livro explora sambas em que Noel Rosa usava humor e ironia para falar
de coisa séria. A obra é temperada por histórias e curiosidades do
universo artístico da época. (imagem: Luiz Fernando Reis/ CC BY 2.0
sobre caricatura de Guilherme Bandeira)
"Vivo escravo do meu samba / muito embora vagabundo".
Se no imaginário popular da década de 1920 o malandro era aquele que
não queria saber de trabalho, vivia do jogo e na orgia, na obra do
cantor e compositor Noel Rosa (1910-1937) – autor dos versos acima –, o
personagem recebe outra roupagem. Em sua música, ele está associado à
imagem do sambista, que usa do humor e da ironia para expor sua condição
marginal na sociedade e criticar os valores dominantes da época.
A
análise é da especialista em educação Mayra Pinto, da Universidade de
São Paulo (USP), autora do livro Noel Rosa: o humor na canção, lançado
em maio deste ano, mês que marcou os 75 anos de morte do compositor.
Para
quem busca uma leitura leve, o livro pode não ser o mais indicado. A
autora faz uma análise aprofundada de canções do poeta da Vila, que
perpassam sua trajetória musical nos sete anos de intensa produção, até
sua morte prematura por tuberculose aos 26.
Por ser uma adaptação da pesquisa de doutorado de Mayra Pinto,
o livro traz resquícios da linguagem e organização acadêmica – com
introdução, desenvolvimento e conclusão –, tornando-se, muitas vezes, um
tanto hermético para os não familiarizados com termos técnicos
empregados na análise musical e literária.
Com base nos
conceitos filosóficos do pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), a
autora foca o papel da ironia na poesia de Noel, explorando os sambas em
que apresenta uma abordagem crítica sobre a condição social do
sambista, seu jeito “falado” de cantar e sua contribuição para uma nova
formatação da canção popular urbana.
A autora foca o papel da
ironia na poesia de Noel, seu jeito “falado” de cantar e sua
contribuição para uma nova formatação da canção popular urbana
A
autora enriquece a leitura com detalhes históricos e curiosidades do
universo artístico no qual Noel viveu ao lado dos sambistas do Estácio,
cujos principais representantes foram os compositores Ismael Silva
(1905-1978) e Nilton Bastos (1899-1931).
Mayra Pinto avalia que o
período foi um divisor de águas na trajetória do samba, cujo legado se
estende aos dias de hoje. Com pé no samba de roda e no carnaval, o grupo
do Estácio revolucionou o estilo da canção, “em que um estribilho fixo
era cantado por todos enquanto um solista fazia os improvisos com letras
variantes”. Antes, nos sambas tradicionais, não havia uma estrutura
única.
No canto, Noel se destaca pelo domínio do discurso
falado, cujo maior exemplo, segundo a pesquisadora, é a interpretação da
canção ‘Gago apaixonado’.
Contrariando o estilo usual da voz impostada, influenciada pelo canto
de ópera, “ele se filia ao tipo de interpretação criada magistralmente
por Mário Reis, que igualmente tinha uma voz não tão potente e primou
por um canto mais ‘falado’”, conta a autora em trecho do livro.
O riso que denuncia
Noel
Rosa trocou o futuro “promissor” de médico – cursou um ano da faculdade
de medicina – pelo de sambista aos 20 anos de idade. A escolha teria
sido determinante para que o samba assumisse um “centro emanente de
positividade” na obra do poeta.
“Noel fundou uma voz que canta,
amargamente, as vicissitudes de se produzir arte num país em que o
reconhecimento do artista pobre não é algo fácil de ser conquistado”
“Noel
fundou uma voz que canta, amargamente, as vicissitudes de se produzir
arte num país em que o reconhecimento do artista pobre não é algo fácil
de ser conquistado”, afirma a pesquisadora. “Mas canta alegremente, e
com o orgulho de produzi-la apesar disso.”
Se os versos de Noel
provocam riso, também deflagram tensões existentes entre o universo de
pobreza e marginalidade do malandro e o mundo do trabalho formal.
Segundo a autora, é nesse sentido que o humor se configura como uma
estratégia de ‘disfarce’ ao permitir que um viés crítico permeasse suas
canções sem deixar margem para censura – que se fazia fortemente
presente naquele período.
Na
cena-estátua que homenageia o poeta, fincada em Vila Isabel, Noel é
servido por um garçom. Apesar da morte precoce aos 26 anos, o compositor
tem obra extensa, que marca a história do samba. (foto: Wikimedia
Commons/ Junius – CC BY-SA 3.0)
No fim das contas, o livro é uma
homenagem ao sambista que, em tão pouco tempo de vida, marcou
significativamente a canção popular. Reconhecimento expresso nos versos
póstumos compostos por Cartola: “Era o rei da filosofia / Fez da musa o
que queria / Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por ele
mesmo cantados / Tinham bela entoação”.
Noel Rosa: o humor na canção
Mayra Pinto
São Paulo, 2012, Ateliê Editorial
216 páginas
REVISTA CIÊNCIA HOJE
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