RELAÇÕES INTERCULTURAIS NAS ROTAS DAS MONÇÕES
Maria Aparecida de Menezes Borrego
Jean Gomes de Souza
Resenha de: CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. . Entre rios e impérios: a navegação fluvial na América do Sul. São Paulo: Editora Unifesp, 2019.
Eruto da dissertação de mestrado de Francismar Alex Lopes de Carvalho, defendida na Universidade Estadual de Maringá em 2006, Entre rios e impérios analisa, com abordagem renovada, as relações interculturais entre as populações envolvidas nas rotas das monções. Confrontada com o texto que lhe deu origem, a redação do livro, publicado em 2019 pela Editora Unifesp, apresenta a incorporação de reflexões, documentos e referências bibliográficas acumulados ao longo dos anos.
A obra está dividida em 3 partes e 10 capítulos. Na primeira, Itinerários do Extremo Oeste, Carvalho, hoje professor de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), focaliza os caminhos fluviais e terrestres que levavam à fronteira oeste da América portuguesa desde o século XVII, com destaque para as ações dos grupos nativos no controle das rotas. Na segunda, Os práticos da navegação fluvial, ressalta o protagonismo dos mareantes mamelucos no movimento monçoeiro. Na última, Os senhores dos rios, problematiza as guerras e alianças entre as populações indígenas e os adventícios na disputa pelo domínio do rio Paraguai, sobretudo durante a primeira metade do Setecentos, encerrando com a discussão sobre a nova correlação de forças estabelecida a partir da instalação dos fortes fronteiriços no contexto dos tratados de limites.
Concentradas entre as décadas de 1720 e 1830, as expedições fluviais se realizaram entre Araritaguaba (atual Porto Feliz, São Paulo) e Cuiabá (Mato Grosso) percorrendo variados caminhos para o abastecimento das populações, fundação de vilas, povoamento do território, busca de metais preciosos, demarcação de fronteiras e explorações científicas. Após descobertas auríferas nos barrancos do rio Coxipó, em 1718, a via fluvial de acesso regular ao extremo oeste se desenvolvia pelos rios Tietê, Paraná, Pardo, varadouro de Camapuã, Coxim, Taquari, Paraguai, Porrudos e Cuiabá.
Embora as monções se configurem como um tema tradicional da historiografia colonial, elas não deixaram de ser revisitadas ao longo do século XX e inícios do XXI. Inicialmente alvo das pesquisas de Cesário Motta Júnior, Afonso d’Escragnolle Taunay, e Sérgio Buarque de Holanda,5 desde meados dos anos 1990, estudos com perspectivas renovadas se têm dedicado à temática monçoeira com enfoques e objetos diferentes. Assumindo a especificidade das expedições frente às bandeiras e focando nos motivos que levaram as populações para as minas do Cuiabá e do Mato Grosso, autores como Maria de Fátima Gomes Costa, Glória Kok, Silvana Godoy e Tiago Kramer de Oliveira chamaram a atenção para o protagonismo de distintos atores sociais na navegação fluvial e na ocupação territorial por mais de um século.6
Mobilizando os conceitos de territorialidade e territorialização da Antropologia contatualista, de cultura, trabalhado por Fredrick Barth e Edward P. Thompson, e de hibridação cultural, desenvolvido por Néstor Canclini, Francismar Carvalho avança no conhecimento sobre as monções. Por meio da ampliação do universo documental consultado em arquivos brasileiros, sul-americanos e europeus e pela disponibilidade de fontes digitalizadas online, lança novos olhares sobre as dinâmicas da navegação fluvial na América do sul ao longo do século XVIII.
No que diz respeito aos caminhos terrestres e fluviais para as minas de Cuiabá, Carvalho demonstra que a rota ordinária das monções, ao contrário de ter sido escolhida por ter a fazenda de Camapuã como pouso no meio da jornada, como aludira Sérgio Buarque de Holanda, foi o único itinerário que restara aos adventícios, já que os demais estavam controlados pelos nativos. Por esse viés, a ocupação territorial é vista não só como resultado da ação do colonizador, mas também como produto das concessões dos Guaykuru e Kayapó, que impuseram trajetos determinados aos colonos e provocaram a militarização dos comboios monçoeiros e das sesmarias ao longo dos caminhos.
Reiterando as análises de Silvana Godoy sobre o papel fundamental dos mamelucos para o sucesso das viagens fluviais, o historiador reforça que eram eles a força de trabalho permanente na mareagem, mesmo em face do afluxo de africanos escravizados, contrariando as colocações de Glória Kok sobre a participação efetiva dos últimos como remeiros. Também diverge da autora quanto ao grau de dependência dos conhecimentos indígenas na condução das embarcações.
Segundo o autor, as longas distâncias a serem percorridas, os acidentes geográficos a serem transpostos, as embarcações maiores, os volumes avultados das cargas e a quantidade de viajantes embarcados em direção a Cuiabá correspondiam a uma nova realidade vivenciada pelas populações ao longo do século XVIII. Para enfrentá-la, pilotos, proeiros, remeiros e guias aprimoraram as técnicas utilizadas primitivamente pelos indígenas. Para ele foi o surgimento de novas práticas de navegação, frutos do intercâmbio cultural com os nativos - e não simplesmente sua continuidade - que viabilizaram o projeto colonizador.
A partir da narração de inúmeras situações de encontros e confrontos, Carvalho elege indígenas e mamelucos como os personagens cruciais para a navegação fluvial da bacia platina, com quem os colonizadores tiveram que negociar pautas culturais díspares ao longo do Setecentos. Ter o domínio dos rios visava não só à ocupação do território luso-brasileiro e ao abastecimento das populações no extremo oeste, mas também às trocas mercantis entre a capitania de São Paulo, que abarcava as minas de Cuiabá, do Mato Grosso e de Goiás até 1748, e as colônias espanholas, sobretudo as regiões de Assunção e do Chaco. Imprecisos na legislação, os limites das fronteiras entre as Américas ibéricas também eram permeáveis nas práticas cotidianas em razão das relações interétnicas.
Quanto às diferenças em relação à dissertação de mestrado que originou a obra, o pesquisador incorporou documentos consultados e análises empreendidas na tese de doutorado defendida em 2012 e publicada após dois anos sob o título de Lealdades negociadas,7 principalmente na terceira parte do livro, na qual avança para a segunda metade do século XVIII. Ainda que a estrutura do trabalho se mantenha, o autor atualizou a bibliografia e conceitos e reescreveu o texto, modernizando a grafia dos documentos e traduzindo-os. Substituiu, por exemplo, “monções” por “navegação fluvial”, “práticos do sertão” por “práticos da navegação fluvial” e reduziu a discussão sobre a desclassificação social originalmente proposta por Caio Prado Júnior para determinados segmentos sociais alheios à plantation escravista.8
Se na monografia de mestrado os mamelucos da navegação fluvial foram tomados como desclassificados, no livro a estigmatização é minimizada em favor das ações de resistência cultural dos mareantes, mesmo em face da desintegração do movimento das monções. Esses personagens passam então a ser caracterizados de forma afirmativa como práticos da navegação. No contexto abarcado pela obra, entende-se como “práticos”, homens experimentados, versados, peritos em algo. Era, pois, o contato direto que esses indivíduos tinham com determinada realidade que os caracterizava assim. Durante a colonização ibérica das Américas, essas pessoas atuaram como mediadores entre o Novo e o Velho Mundo. Longe da figura do intelectual enclausurado em seu gabinete, comunicavam aquilo que haviam apreendido com a experiência.
Malgrado a incorporação de novos estudos desenvolvidos entre 2006 e 2019, Carvalho pouco se valeu de pesquisas que lhe teriam fornecido subsídios para o aprofundamento das investigações acerca dos segmentos sociais envolvidos com as monções, sobretudo os práticos da navegação e os agentes mercantis. Silvana Godoy, por exemplo, mobilizara inventários e testamentos, processos cíveis, listas nominativas e ordenanças dos habitantes de vilas da capitania de São Paulo guardados no Arquivo Público do Estado de São Paulo e no Arquivo do Museu Republicano Convenção de Itu. Tais tipologias documentais teriam oferecido informações acerca do perfil socioprofissional dos mareantes e dos comerciantes estabelecidos em Itu e Araritaguaba. O autor poderia, igualmente, ter lançado mão dos trabalhos de André Ferrand de Almeida, Mário Clemente Ferreira e Tiago Kramer de Oliveira, para perscrutar a atuação de comerciantes nas minas de Cuiabá e do Mato Grosso. 9
Apesar de ter tido acesso a arquivos portugueses, como a Biblioteca Pública de Évora, o autor optou por citar algumas fontes documentais ali depositadas a partir da edição realizada por terceiros. Ao iniciar o seu trabalho mencionando a letra miúda do padre Diogo Soares presente no códice onde se encontram registradas as Notícias Práticas das minas de Cuiabá e Goiás na capitania de São Paulo, revela o contato direto que teve com esse conjunto documental. Entretanto, para o desenvolvimento de suas análises, se fiou na edição proposta por Afonso Taunay para Relatos monçoeiros, reproduzida em História das bandeiras paulistas a partir de sua segunda edição. O problema é que, quando comparadas aos manuscritos, as narrativas publicadas contam com adições, omissões e substituições de palavras.10
As críticas, entretanto, em nada maculam as refinadas e inovadoras análises do historiador. A grande contribuição da obra de Francismar Carvalho é dar protagonismo às ações de indígenas e de mareantes mamelucos nas monções. Os primeiros com relação às resistências, aos condicionamentos das viagens, ao comércio e às alianças. Os segundos, com relação ao domínio das técnicas de mareagem, à hierarquia de trabalhos e às estratégias narrativas de resistência que foram preservadas nos relatos monçoeiros. Ao privilegiar as ações dos sujeitos eleitos, o autor acaba por reconhecer a “dignidade das suas práticas culturais, saberes e experiências, malgrado a posição subalterna em que se encontravam”.11
Uma última observação. O título dado à resenha é praticamente idêntico ao subtítulo da dissertação de mestrado, que infelizmente foi eliminado da obra publicada. Por tratar-se de um estudo sobre as relações interculturais nas rotas das monções, o livro certamente interessará aos estudiosos das artes de navegar, da expansão das fronteiras e da ocupação territorial da América portuguesa. Mas não só. Aqueles que prezam as problemáticas atinentes aos intercâmbios interétnicos, à preservação do patrimônio imaterial, à história ambiental e ao protagonismo de grupos subalternos da sociedade nele encontrarão farto material para discussão e reflexão.
Bibliografia
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5
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6
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7
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8
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9
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10
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11
CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. Entre rios e… Op. cit., p. 223, grifo do autor.
Revista Almanack
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