segunda-feira, 4 de outubro de 2021

História social e autoritarismo no Brasil: ligações entre passado e presente


 

SCHWARCZ, L. M. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Cia. das Letras, 2019

As transformações sociais e políticas que têm marcado a vida no Brasil desde os movimentos de junho de 2013 têm, paulatinamente, se constituído em objetos de análises no campo científico. Diferentes domínios do conhecimento têm interrogado elementos das novas configurações das lutas sociais a que temos assistido no cenário contemporâneo (Singer, 2013Souza, 2018Gohn, 2019), essa literatura tem proporcionado um movimento de atar as pontas entre passado e presente em uma frente analítica dupla: no âmbito do pensamento social brasileiro e no âmbito da nossa história enquanto “povo” e “nação”. A historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz compõe o rol de intelectuais que têm se debruçado sobre essas questões, dedicando-se a pensar aspectos próprios da “história nacional” que se perpetuam ao longo do tempo e cujos desdobramentos se mostram pertinentes para refletir sobre as nossas relações sociais atuais, tal como a questão racial que atravessa todo seu empreendimento intelectual.

Nesse sentido, a partir do desafio implicado no exercício de pensar o tempo presente - exatamente porque os intelectuais são, ao mesmo tempo, atores e testemunhas desse tempo móvel (Ferreira, 2018) e, em seu ofício, veem-se colocados entre o tempo natural, o tempo social (Rosa, 2015) e, ainda, o tempo de reflexão acadêmico-científica de uma determinada realidade -, Lilia Schwarcz nos apresenta sua mais nova obra: Sobre o autoritarismo brasileiro. O escopo da obra gira em torno de uma correlação poderosa do ponto de vista analítico, trata-se dos vínculos entre a ascensão de um populismo de direita nas eleições de 2018 no Brasil e as formas de autoritarismo que se desenvolveram historicamente no país - este é o livro sobre o qual nos debruçamos na presente resenha.

Vale frisar, antes de adentrarmos propriamente a obra em questão, dois elementos cruciais para se compreender a localização desse escrito na obra e na carreira de Lilia Moritz Schwarcz: a) temas e questões que vêm figurando desde a década de 1980 nos escritos dessa autora são retomados nesse livro e constituem importantes sustentáculos de sua argumentação,1 o que nos aponta que essa obra acaba por figurar, de forma concomitante, como uma continuidade em suas análises já consolidadas e uma mirada para o cenário político no Brasil atual; b) a envergadura da obra pode ser inicialmente atrelada à posição de destaque que Lilia Schwarcz ocupa no campo científico brasileiro - aqui se destacam os prêmios nacionais e internacionais que recebeu, o alcance de seus livros dentro e fora da Academia, e ainda sua posição de intelectual pública por meio da participação como colunista no Nexo Jornal desde 2019 e de um posicionamento ativo nas redes sociais em torno dos debates de relevância nacional, com destaque para seu canal do YouTube que, em atividade desde 2018, abriga quase 70 mil inscritos - e ao diálogo que estabelece com uma outra relevante obra que publicou em parceria com Heloisa Starling, Brasil: uma biografia (Schwarcz; Starling, 2015). Além disso, destaca-se o fato de que Sobre o autoritarismo brasileiro, lançado no Brasil em maio de 2019 pela Companhia das Letras, acaba de ser publicado, em março de 2020, em Portugal pela Objectiva.

Parece-nos importante iniciar a apreciação do livro trazendo aqui a forma como a autora intitulou cada uma das partes da obra, posto que os títulos expressam não somente uma demarcação racional do encadeamento do debate, mas também a posição epistemológica da autora e os elementos que traz para a construção de sua genealogia do autoritarismo brasileiro. O livro é estruturado, para além de uma introdução e um epílogo, em oito capítulos. “História não é bula de remédio” é o nome que recebeu a introdução, espaço no qual o leitor será levado a confrontar o passado colonial do Brasil com as criações das narrativas nacionais - dos órgãos oficiais, das cidades, das famílias, dos indivíduos e até aquelas reconhecidas como “científicas” e reproduzidas até os nossos dias -, que foram cruciais para o estabelecimento do senso comum e para o imaginário coletivo do povo brasileiro em torno de uma suposta superioridade europeia e de uma harmonia racial. Os capítulos, por sua vez, podem ser classificados em dois grupos, a saber: os três primeiros, respectivamente intitulados de “Escravidão e Racismo”, “Mandonismo” e “Patrimonialismo”, trazem as bases sócio-históricas do autoritarismo no Brasil; enquanto os demais são responsáveis por apresentar os desdobramentos de tais bases, e recebem os seguintes nomes “Corrupção”, “Desigualdade social”, “Violência”, “Raça e gênero”, e, “Intolerância”. A seção “Quando o fim é também o começo: Nossos fantasmas do presente” é, por fim, responsável por fechar o livro, trazendo as conclusões de Lilia Schwarcz.

Essas denominações expressam, na verdade, os elos que a autora estabelece entre passado e presente do autoritarismo brasileiro, uma mirada crítica para a nossa história - e Schwarcz ratifica que ela não é linear, estática ou cíclica - é, pois, a marca de sua análise em torno das continuidades e rupturas que nos permite olhar para o nosso tempo. Diante disso, cabe-nos, enfim, frisar que não realizaremos uma apresentação exaustiva de cada um dos capítulos, uma vez que optamos por demonstrar sua coerência interna agregando-os pelo papel que cumprem na obra, bem como pela forte conexão empírica dos elementos dos quais os capítulos se ocupam.

O exercício intelectual de enfrentar a questão da vigência de práticas autoritárias no Brasil ao longo de séculos de história levou Lilia Moritz Schwarcz a interrogar uma série de temas que, correlacionados direta e indiretamente, nos fornecem um conjunto de expressões das formas que o autoritarismo vem assumindo no contexto brasileiro. O autoritarismo que aqui se apresenta e se perpetua não pode, segundo a autora, ser definido por uma via de mão única, ele requer uma análise multifatorial, que nos obriga a correlacionar discursos, ideias, mitos e práticas há muito consolidados no cotidiano deste país: nosso autoritarismo anda de mãos dadas com questões que reverberam de nosso passado até a atualidade, tais como, a violência, o patrimonialismo, o patriarcalismo, o mandonismo, a desigualdade, e a intolerância social.

A necessidade de criação de uma “história nacional” que desse sentido aos processos sociais violentos de colonização, escravidão e de um projeto conservador de Império no Brasil acabou por ratificar “teorias do senso comum” que edificaram uma imagem e autoimagem do povo e da nação. Schwarcz destaca o pensamento de Karl Von Martius, que defendia a importância de se demonstrar o desenvolvimento da sociedade brasileira a partir de três raças humanas, chegando a se utilizar de uma metáfora fluvial de três rios para definir a formação do país (um branco, um negro e um indígena), que na verdade cumpria o papel de legitimar a superioridade branca europeia na formação do Brasil. A invenção da história do país, pautada pela harmonia entre as três raças, ganhou legitimidade na literatura e até nas ciências humanas, tendo sido reproduzida até ecoar também nas histórias individuais dos brasileiros e no seu sentimento de pertença a uma nação pintada como um paraíso tropical.

Em síntese, a autora nos apresenta quatro pressupostos básicos que condensam a amplitude e o alcance dessa versão da “história nacional”, nomeadamente: 1) Brasil como um país harmônico e sem conflitos; 2) brasileiro como sujeito avesso a hierarquias e pronto a responder às adversidades com informalidade e igualdade; 3) democracia plena, sem conflitos raciais, de religião ou gênero; e 4) a natureza do povo brasileiro o leva a viver em um verdadeiro paraíso. Essa caricatura não foi somente interiorizada pelos brasileiros, ela faz parte de uma imagem difundida a nível global sobre o Brasil e o seu povo. E, do ponto de vista das lutas que estão por trás da narrativa histórica, Lilia Schwarcz nos lembra que o mecanismo de construção de uma história mítica oficial é amplamente utilizado ao redor do mundo e desempenha um papel estratégico na atuação do Estado. Isso porque a utilização de uma histórica mítica/irreal afasta-nos da realidade, dos fatos e da ciência, dos problemas sociais e de suas raízes históricas e possibilita, em contrapartida, uma interpretação alienada e que acaba por naturalizar as estruturas de dominação.

Nesse sentido, revisitar a história do Brasil, com foco nas questões da escravidão, racismo, mandonismo e patrimonialismo - como a autora faz nos três primeiros capítulos - torna-se um exercício crucial no sentido de compreender em que medida essas narrativas fantasiosas historicamente têm obliterado a sociabilidade violenta e autoritária que se legitimou no país ao longo dos séculos. As particularidades da escravidão no Brasil - sua duração, seu modelo, alcance2 e, evidentemente, a violência que lhe era inerente - foram responsáveis por um enraizamento que nos permite, hoje, compreender que o racismo se tornou uma das estruturas de nossa sociedade. As suas consequências vão muito além do período que compreende propriamente o regime escravocrata no país, entre os séculos XVI e XIX, e nos falam das condições de negros e negras até os nossos dias, especialmente da legitimação de condutas hierárquicas, desigualdades sociais e de marcadores sociais de diferenças fundamentais para as relações de mando e obediência que se ratificaram historicamente.

Evidencia-se no livro uma correlação bastante forte entre o regime escravocrata brasileiro - que foi muito mais do que um sistema econômico - e as questões do mandonismo e do patrimonialismo. Esses três elementos possuem seu passado primeiro ligado às relações coloniais e às decisões da Coroa Portuguesa quanto à lógica de funcionamento de seu território além-mar: enquanto o mandonismo liga-se aos movimentos de povoamento do Brasil e aos atributos do colono, passando pela concentração de terras, pelo poder sobre os cativos e também sobre a família, e desembocando num modelo violento e patriarcal, no qual um ethos masculino autoritário foi da cena privada à cena pública, com o coronelismo que se instalou fortemente em muitos estados brasileiros e que tem resquícios até a atualidade; o patrimonialismo, tendo figurado desde a administração colonial, choca-se com os princípios alardeados pela República brasileira, uma vez que elenca os processos relacionados à utilização da “máquina pública” para atender a interesses privados. Nesse caso, o debate sobre o patrimonialismo traz Max Weber como destaque, o qual é complementado com pensadores também já clássicos do pensamento social brasileiro, a exemplo de Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Caio Prado Junior, Antonio Candido e Roberto da Matta.

Esses elementos históricos ganham, nos capítulos seguintes, um movimento de desdobramento e de vértice para questões sociais mais contemporâneas. Aqui trata-se da ponte analítica entre passado e presente que Lilia Schwarcz construiu nessa obra: como a escravidão, o racismo, o mandonismo e o patrimonialismo, tendo sido decisivos para o caráter autoritário historicamente colocado nas relações sociais no Brasil, reverberam na contemporaneidade? Corrupção, desigualdade social, violência, raça e gênero e intolerância são as respostas da autora, que reconhece esses elementos como alguns dos possíveis caminhos explicativos para a perpetuação do autoritarismo no país. Não à toa, esses últimos capítulos são repletos de diálogos com dados oficiais, relatórios e pesquisas científicas, e aqui nota-se um contraponto à “invenção do Brasil” de outrora com as narrativas fantasiosas e míticas que a autora apresentou e criticou no início da obra.

Podemos conceber um movimento didático nesse segundo bloco de capítulos, o leitor é levado a confrontar os mitos nacionais com o conjunto de dados e informações qualificadas que a autora vai fornecendo. Como conciliar a imagem de uma democracia plena nos trópicos com desigualdades de raça, gênero e sexo, que produzem dados alarmantes sobre feminicídio, misoginia, homofobia e a disseminação da chamada “cultura do estupro”? Como se pode considerar um paraíso harmônico um país onde a desigualdade social aparta classes e grupos e impede uma grande parcela da população de gozar de direitos humanos e sociais básicos? Como seria possível que os homens e mulheres cordiais do Brasil pudessem construir um cenário de violência generalizada, em espaços urbanos e rurais? O exercício aqui consiste em desnaturalizar os discursos e mitos sobre a democracia plena, a cordialidade, a harmonia social do Brasil e dos brasileiros e brasileiras. A história e o cotidiano de violência e autoritarismo, que marcam a vida neste país, são trazidos para o primeiro plano com vistas a enfrentar uma alienação histórica que nos impede de enxergar os problemas sociais em suas continuidades, rupturas e novas roupagens.

“De uma forma ou de outra, a narrativa histórica produz sempre batalhas pelo monopólio da verdade” (Schwarcz, 2019, p.16). No livro aqui resenhado, Lilia Moritz Schwarcz toma para si a tarefa de combater os mitos que foram construídos no processo de criação e consolidação de uma “história nacional”, ao passo que nos fornece uma densa genealogia do autoritarismo brasileiro. “Fantasmas do presente” - expressão que está no título do epílogo do livro - funciona, na verdade, como um lembrete de que temos sido assombrados por fantasmas que talvez tivéssemos julgado superados, mas que se reapresentam na atualidade. Os problemas nacionais que ocupam centralidade na atualidade são, pois, apontados pela autora como esses tais fantasmas que nos apontam os mais novos desdobramentos do nosso autoritarismo: destacam-se aqui a polarização da última eleição de 2018 e a intolerância que marcou esse processo político; o papel do Judiciário no enfraquecimento do Estado de Direito; o populismo, sua ligação com as novas tecnologias e redes sociais e o uso de fake news no campo político.

Com uma ponta de esperança, ao final do livro, a autora enfatiza a imperfeição da democracia, posto que está em construção e por isso é passível de aprimoramento, e acaba por ratificar a relevância de uma nação e seu povo conhecerem sua história - combatendo as falaciosas narrativas míticas e heroicas - para, criticamente, compreenderem seu presente e pensarem no futuro que se deseja construir. Enfrentar o passado autoritário, no caso brasileiro, é condição para o reconhecimento de nossas estruturas sociais violentas, hierárquicas e desiguais, por isso a desnaturalização da dominação, do mando e da obediência e, consequentemente, das práticas autoritárias em suas mais diversas formas é ainda tarefa por fazer - por isso a relevância do livro de Lilia Moritz Schwarcz ultrapassa o campo científico e acadêmico, e sua leitura se faz pertinente para todos aqueles preocupados em conhecer ainda mais o Brasil.

Ademais, um último aspecto merece aqui menção: trata-se de conferir destaque à coragem de uma intelectual mulher, inserida nos campos da História e da Antropologia, de continuar a desenvolver uma agenda de pesquisa e publicações sobre o Brasil, sua história e as reverberações contemporâneas dos seus processos sociais de dominação em tempos de ataques à universidade pública, aos intelectuais e aos domínios das ciências humanas, sociais, letras e artes.

Referências

  • FERREIRA, M. de M. Notas iniciais sobre a história do tempo presente e a historiografia no Brasil. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.23, p.80-108, jan./mar. 2018.
  • GOHN, M. da G. Participação e democracia no Brasil: da década de 1960 aos impactos pós-junho de 2013. Petrópolis: Vozes, 2019.
  • ROSA, H. Social acceleration: a new theory of modernity. New York: Columbia University Press, 2015.
  • SCHWARCZ, L. M. Retrato em branco e negro. São Paulo: Círculo do Livro, 1988.
  • _______. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil: 1870-1930. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
  • _______. As barbas do imperador. 2.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
  • _______. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Cia. das Letras, 2019.
  • SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. Brasil: uma biografia. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.
  • SINGER, A. Brasil, junho de 2013: classes e ideologias cruzadas. Novos Estudos-Cebrap, São Paulo, n.97, p.23-40, nov. 2013.
  • SOUZA, J. A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro: Estação Brasil: 2018.

Notas

  • 1
    A exemplo dos livros Retrato em branco e negro (Schwarcz, 1988), O espetáculo das raças: cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil: 1870-1930 (Schwarcz, 1993) e As barbas do imperador (Schwarcz, 1998).
  • 2
    A autora destaca que, de tão disseminada, a escravidão no Brasil “[...] deixou de ser privilégio de senhores de engenho. Padres, militares, funcionários públicos, artesãos, taverneiros, comerciantes, pequenos lavradores, grandes proprietários, a população mais pobre e até libertos possuíam cativos” (Schwarcz, 2019, p.22).
  • Revista Estudos Avançados

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