quarta-feira, 3 de maio de 2017

Linchamentos : a justiça popular no Brasil



Uma sociologia dos linchamentos no Brasil

A sociology of lynchings in Brazil


William Héctor Gómez Soto
Professor, Instituto de Filosofia, Sociologia e Política/Universidade Federal de Pelotas. william.hector@gmail.com

MARTINS, José de Souza. Linchamentos : a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015. 208p.


José de Souza Martins, um dos mais importantes sociólogos brasileiros, herdeiro da tradição sociológica de Florestan Fernandes, publicou em 2015 o livroLinchamentos: a justiça popular no Brasil , resultado de ampla pesquisa que abrange o período de 1945 a 1998.

Nesse período, mais de um milhão de brasileiros participou de pelo menos um ato, ou tentativa, de linchamento. De acordo com os 2.028 casos coletados, o autor estima que, no mencionado espaço de tempo, 2.579 pessoas foram vítimas de linchamentos, das quais 44,6% foram salvas, e 47,3% feridas ou mortas. Capturadas, as vítimas foram espancadas, atacadas a pauladas, pedradas, tiveram os olhos extirpados, foram castradas; muitas foram incineradas ainda com vida. Apenas 8,1% das vítimas conseguiram escapar por seus próprios meios.

Os linchamentos no Brasil ocorrem desde a colônia, muito antes que a palavra “linchamento” surgisse na América inglesa no século XVIII e antes que chegasse ao Brasil no século XIX, onde passou a ser usada no período posterior à abolição da escravidão. Os linchamentos que ocorrem hoje no Brasil são semelhantes, em forma e significado, aos ocorridos na época da colônia. Ao explicar a forma e a função do justiçamento popular no Brasil, o autor encontra evidências da força do inconsciente coletivo e do que ele chama de “estruturas sociais profundas”, que permanecem latentes nas referências atuais de condutas sociais e em comportamentos individuais. Essas estruturas sociais não foram superadas pela história e permanecem como referências subterrâneas das ações sociais de hoje. Elas se tornam visíveis quando a sociedade está ameaçada e sem referências para se reconstituir.

Entre as similitudes encontradas por Martins nesse espetáculo do terror, na época da colônia e na atual, está a presença de mulheres e crianças. Segundo ele, a concepção dos lin-chamentos e os rituais são expressão da força da tradição que “ganha sentido nos costumes funerários da sociedade brasileira, ainda fortes nas regiões rurais. São verdadeiras sobrevivências de arqueologia simbólica e imaterial que um dia dominaram, no Brasil, nossas concepções sobre a vida e a morte e o modo como se determinavam reciprocamente” (p.10).

O livro está dividido em três partes. Na primeira, intitulada “A justiça do povo”, o autor delimita o campo de estudos sociológicos dos linchamentos, mostrando que a bibliografia brasileira sobre o tema é insuficiente e ressaltando a falta de interesse dos sociólogos diante desse fenômeno cada vez mais frequente nas cidades brasileiras. O autor aponta que as características do fenômeno em si limitam sua investigação sociológica. Martins se refere ao caráter repentino, impensado, de motivação súbita e imprevisível dos linchamentos.

Os três ensaios da segunda parte, “Revelações sociológicas da morte”, são dedicados à análise sobre a morte, os mortos e as crenças relativas ao corpo. Penso que essa é a parte mais interessante do livro; nela o autor esclarece as concepções que estão por trás dos linchamentos, isto é, as estruturas profundas e o inconsciente coletivo.

Na terceira parte, “Questão de método”, Martins esclarece e discute as dificuldades metodológicas no tratamento do tema, explica o próprio processo de pesquisa e critica as limitações das fontes utilizadas. O autor esclarece que se trata de uma pesquisa em processo, inacabada, e anuncia a preparação de um segundo livro sobre o tema. O fato de ser uma análise parcial dos dados não invalida algumas conclusões preliminares. O leitor pode aguardar, portanto, uma análise posterior, de maior profundidade, de todos os dados coletados.

Os linchamentos se confundem com outros tipos de violência como saques, quebra-quebras e chacinas. O autor faz uma distinção a partir de uma sociologia da morte e dos mortos, tema que vem explorando em outros trabalhos e que agora não só complementa o tema central dos linchamentos, mas também fornece os fundamentos de uma explicação sociológica para esses eventos. Pouco se tem prestado atenção aos ritos presentes nos linchamentos, manifestações de um mundo tradicional em contradição com a modernidade. São ritos que se referem a concepções sobre a vida e a morte, ao tempo da morte e ao tempo do morto.

A sociedade contemporânea tem se demonstrado incapaz de lidar com a morte. A razão, como componente da modernidade, é incompleta no que se refere ao tema da morte, um tabu em nossas sociedades. O que está no centro da questão talvez seja a angústia do homem moderno a que se refere Weber (2004). Nesse sentido a angústia, e não a razão, seria uma propriedade da modernidade. O motivo dessa angústia existencial é definido pelo horizonte do progresso, ou, em outras palavras, a morte é considerada uma anomalia numa sociedade cujo fundamento é o progresso linear, e na qual, por isso, o tempo parece infinito. A morte abala a certeza da modernidade, da vida infinita. Essa perspectiva é diferente no mundo tradicional, do camponês, em que o tempo é cíclico e a morte faz parte da vida. Para Martins, em termos sociológicos, o mundo tradicional é presença constitutiva da modernidade brasileira; esse ponto de vista teórico e metodológico fica explícito no tratamento dado pelo autor aos linchamentos e em especial à morte.

A repressão contra a antropofagia permitiu o surgimento de uma cultura da morte substituta, cuja base foi a concepção de vida e de pecado do catolicismo da Contrarreforma. Os índios comiam seus inimigos como alimento simbólico e ritual. O inimigo comido era incorporado física e simbolicamente à comunidade dos vencedores.

Por último, Martins se refere ao “corpo fragmentado”, aspecto que se relaciona diretamente com os linchamentos. Os linchamentos que ocorrem no Brasil são uma forma de vingança coletiva reparatória e compensatória. Portanto, não são meros atos de punição. A “crueldade elaborada” dos linchamentos é manifestação de uma cultura da morte e do corpo.

O leitor encontrará nesse livro os diversos momentos do processo de pesquisa desenvolvido. O autor, como um artesão, coletou pacientemente dados sobre atos de linchamentos no Brasil, tomando como fonte as notícias de jornais, apontando as limitações dessas fontes, elaborando mecanismos de controle, comparando diversas notícias sobre o mesmo fato, além de apresentar estudos de casos e uma vasta revisão crítica da bibliografia sobre o tema no Brasil e em outros países.

REFERÊNCIA WEBER, Max. Ciência e política : duas vocações. São Paulo: Cultrix. 2004.

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