Êxitos e fracassos
Livro resgata história dos carros voadores e de outras inovações tecnológicas que deram errado
Ivan da Costa Marques
Você quer deixar de ter aquela velha opinião formada sobre questões de ciência, tecnologia e sociedade? O livro A extinção dos tecnossauros, de Nicola Nosengo, oferece uma visita guiada com o intuito de “aproveitar os fracassos, que são momentos de crise de um sistema, para evidenciar os lugares-comuns nos quais se baseia nossa percepção da inovação tecnológica”.
Privilegiando o prazer de contar histórias sobre a elaboração de teorias, ele afirma também que a história de um fracasso é geralmente mais interessante que a de um êxito porque as histórias de sucesso são mais parecidas entre si, uma ideia já celebrizada por Tolstói: “Todas as famílias felizes são parecidas entre si, cada família infeliz é infeliz a seu modo”.
Tal como o arranjo das salas em um museu bem arquitetado, o desfile de tecnologias que não emplacaram está organizado em capítulos de narrativas vivas, mas nem por isso fantasiosas ou historicamente mal referenciadas. Os fracassos de Thomas Edson, seja com o sistema elétrico de registro de voto, patenteado em 1869, seja com o caso mais conhecido do fonógrafo, ressaltam que “um inovador tem sucesso quando acerta em cheio a combinação de elementos [heterogêneos]”.
A ideia de uma separação nítida entre sucesso técnico e fracasso comercial ou ainda a complexidade da configuração de padrões são problematizadas por um olhar atento que enxerga que “no fundo, as coisas não foram tão mal para o sistema de gravação Betamax”.
Correio pneumático e carro elétrico
O caso do correio pneumático, que desapareceu das grandes cidades onde existiu por muitas décadas, mostra que “grandes sistemas podem ser considerados verdadeiramente concretizados apenas quando atingem um ponto [provisional] de não retorno.” O caso da recorrentemente frustrada espera pelo carro elétrico ilustra que não se entra duas vezes no mesmo rio da tecnologia, pois “aquele carro elétrico permaneceu uma promessa não cumprida”.
O fracasso do videofone ressalta que “a ausência de imagem é uma qualidade [e não uma limitação] do telefone.” A inexistência do carro voador é vista como evidência de que “os grandes sistemas técnicos precisam de um complexo aparato legislativo e logístico para funcionar, e é esse fator, só em parte influenciável pelo progresso técnico, o decisivo”.
As batalhas entre o CD e o velho vinil, o long playing, ilustram que “nenhuma indústria, por mais unida e bem organizada que seja, pode impor uma inovação.” O caso da longevidade da fita cassete ilustra uma “espécie de hierarquia informal, [pois ela] se aproxima, mais do que o disco, de uma tecnologia de rede, no sentido de que sua utilidade depende em maior medida da sua difusão, de sua ‘troca’ no interior de uma trama de relações sociais.”
A televisão, o empreendimento econômico do Japão no pós-guerra, as características da escrita em uso no extremo Oriente, a evolução do mercado telefônico no Ocidente, o aparecimento de instituições transnacionais para a padronização de aparelhos eletrônicos configuraram a “primavera tardia do fax.”
Um exame do estabelecimento de padrões mostra como as regras do jogo da concorrência podem se modificar e como a afirmação de um padrão pode “ser determinada mais pelas expectativas sobre o futuro do que pelas considerações sobre o presente.”
Metáforas para uma teoria da inovação
As limitações e mesmo as controvérsias relatadas no livro podem ser melhor percebidas quando se chega ao último capítulo. O autor desenvolve ali uma breve apresentação de “metáforas para uma teoria da inovação”, após o desfile no qual seu faro de perdigueiro soube identificar e apontar a heterogeneidade do mundo em que se configuram “redes sem costura”.
Talvez o uso mais intenso e explícito destas mesmas metáforas durante a descrição dos casos tornasse mais visível também as semelhanças, as maneiras como as coisas se juntam na heterogeneidade. Mas Nicola Nosengo está consciente da opção que fez: “em primeiro lugar vêm as histórias – e o prazer de contá-las –, em seguida vem a especulação teórica...”.
No entanto, além disso, e aí talvez com maiores conseqüências, o último capítulo surpreende o leitor atento ao revelar um anseio por uma “verdadeira essência da tecnologia”, o que leva Nicola Nosengo a concluir o livro singularizando o que considera “provavelmente o mais ambicioso esforço realizado até agora para modelar e compreender o processo de inovação”, mas um esforço que parece trazer em seu bojo, tal qual um cavalo de Troia, marcações e separações pretensamente universais que o restante do livro tanto ajuda a afastar.
Mas isto de maneira alguma tira do livro seu mérito e atração: um texto leve e bem humorado que abre seriamente as portas para o tipo de construtivismo realista-relativista dos “novos” estudos de ciência-tecnologia-sociedade.
A extinção dos tecnossauros – histórias de tecnologias que não emplacaram
Nicola Nosengo (tradução: Regina Silva)
Campinas, 2008, Editora Unicamp
320 páginas
Ivan da Costa Marques
Instituto de Matemática,
Departamento de Ciência da Computação,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
10/06/2009
* Texto publicado originalmente no número 2 do Jornal de Resenhas.
Livro resgata história dos carros voadores e de outras inovações tecnológicas que deram errado
Ivan da Costa Marques
Você quer deixar de ter aquela velha opinião formada sobre questões de ciência, tecnologia e sociedade? O livro A extinção dos tecnossauros, de Nicola Nosengo, oferece uma visita guiada com o intuito de “aproveitar os fracassos, que são momentos de crise de um sistema, para evidenciar os lugares-comuns nos quais se baseia nossa percepção da inovação tecnológica”.
Privilegiando o prazer de contar histórias sobre a elaboração de teorias, ele afirma também que a história de um fracasso é geralmente mais interessante que a de um êxito porque as histórias de sucesso são mais parecidas entre si, uma ideia já celebrizada por Tolstói: “Todas as famílias felizes são parecidas entre si, cada família infeliz é infeliz a seu modo”.
Tal como o arranjo das salas em um museu bem arquitetado, o desfile de tecnologias que não emplacaram está organizado em capítulos de narrativas vivas, mas nem por isso fantasiosas ou historicamente mal referenciadas. Os fracassos de Thomas Edson, seja com o sistema elétrico de registro de voto, patenteado em 1869, seja com o caso mais conhecido do fonógrafo, ressaltam que “um inovador tem sucesso quando acerta em cheio a combinação de elementos [heterogêneos]”.
A ideia de uma separação nítida entre sucesso técnico e fracasso comercial ou ainda a complexidade da configuração de padrões são problematizadas por um olhar atento que enxerga que “no fundo, as coisas não foram tão mal para o sistema de gravação Betamax”.
Correio pneumático e carro elétrico
O caso do correio pneumático, que desapareceu das grandes cidades onde existiu por muitas décadas, mostra que “grandes sistemas podem ser considerados verdadeiramente concretizados apenas quando atingem um ponto [provisional] de não retorno.” O caso da recorrentemente frustrada espera pelo carro elétrico ilustra que não se entra duas vezes no mesmo rio da tecnologia, pois “aquele carro elétrico permaneceu uma promessa não cumprida”.
O fracasso do videofone ressalta que “a ausência de imagem é uma qualidade [e não uma limitação] do telefone.” A inexistência do carro voador é vista como evidência de que “os grandes sistemas técnicos precisam de um complexo aparato legislativo e logístico para funcionar, e é esse fator, só em parte influenciável pelo progresso técnico, o decisivo”.
As batalhas entre o CD e o velho vinil, o long playing, ilustram que “nenhuma indústria, por mais unida e bem organizada que seja, pode impor uma inovação.” O caso da longevidade da fita cassete ilustra uma “espécie de hierarquia informal, [pois ela] se aproxima, mais do que o disco, de uma tecnologia de rede, no sentido de que sua utilidade depende em maior medida da sua difusão, de sua ‘troca’ no interior de uma trama de relações sociais.”
A televisão, o empreendimento econômico do Japão no pós-guerra, as características da escrita em uso no extremo Oriente, a evolução do mercado telefônico no Ocidente, o aparecimento de instituições transnacionais para a padronização de aparelhos eletrônicos configuraram a “primavera tardia do fax.”
Um exame do estabelecimento de padrões mostra como as regras do jogo da concorrência podem se modificar e como a afirmação de um padrão pode “ser determinada mais pelas expectativas sobre o futuro do que pelas considerações sobre o presente.”
Metáforas para uma teoria da inovação
As limitações e mesmo as controvérsias relatadas no livro podem ser melhor percebidas quando se chega ao último capítulo. O autor desenvolve ali uma breve apresentação de “metáforas para uma teoria da inovação”, após o desfile no qual seu faro de perdigueiro soube identificar e apontar a heterogeneidade do mundo em que se configuram “redes sem costura”.
Talvez o uso mais intenso e explícito destas mesmas metáforas durante a descrição dos casos tornasse mais visível também as semelhanças, as maneiras como as coisas se juntam na heterogeneidade. Mas Nicola Nosengo está consciente da opção que fez: “em primeiro lugar vêm as histórias – e o prazer de contá-las –, em seguida vem a especulação teórica...”.
No entanto, além disso, e aí talvez com maiores conseqüências, o último capítulo surpreende o leitor atento ao revelar um anseio por uma “verdadeira essência da tecnologia”, o que leva Nicola Nosengo a concluir o livro singularizando o que considera “provavelmente o mais ambicioso esforço realizado até agora para modelar e compreender o processo de inovação”, mas um esforço que parece trazer em seu bojo, tal qual um cavalo de Troia, marcações e separações pretensamente universais que o restante do livro tanto ajuda a afastar.
Mas isto de maneira alguma tira do livro seu mérito e atração: um texto leve e bem humorado que abre seriamente as portas para o tipo de construtivismo realista-relativista dos “novos” estudos de ciência-tecnologia-sociedade.
A extinção dos tecnossauros – histórias de tecnologias que não emplacaram
Nicola Nosengo (tradução: Regina Silva)
Campinas, 2008, Editora Unicamp
320 páginas
Ivan da Costa Marques
Instituto de Matemática,
Departamento de Ciência da Computação,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
10/06/2009
* Texto publicado originalmente no número 2 do Jornal de Resenhas.
Revista Ciência Hoje
Nenhum comentário:
Postar um comentário