segunda-feira, 7 de março de 2011

Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da Bahia

A escrita nos terreiros

A transmissão do saber no candomblé é tida como tarefa quase exclusiva da oralidade. Partindo do estudo de cadernos e textos de autoridades religiosas, contudo, um livro constata o forte papel da escrita para as religiões afro-brasileiras.

Por: Sergio Ferretti

Publicado em 17/05/2010 | Atualizado em 17/05/2010

A escrita nos terreiros

Cerimônia de candomblé no terreiro da Mãe Laura, em Rio Branco, no Acre (foto: Talita Oliveira – CC BY-NC 2.0).

No livro Entre a oralidade e a escrita: A etnografia nos candomblés da Bahia, Lisa Earl Castillo, norte-americana radicada em Salvador há quinze anos, analisa com brilhantismo a interação entre oralidade e escrita nos processos de transmissão do saber nas comunidades religiosas afro-brasileiras.

A publicação deste texto é fruto de uma parceria entre a CH On-line o Jornal de Resenhas. A cada nova edição do jornal, reproduziremos aqui uma de suas resenhas.

A obra desafia a velha ideia de que os terreiros sejam concebidos como espaço exclusivo da oralidade, constatando sua convivência inescapável com a escrita. Com grande habilidade no trabalho de campo, apresenta críticas sutis tanto a determinadas categorias de praticantes quanto a colegas da academia.

Castillo visitou mais de vinte terreiros e entrevistou dezenas de pessoas entre 1998 e 2005, quando defendeu a tese de doutorado que deu origem ao livro na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Aprendeu que dentro do candomblé é preciso observar e não fazer perguntas, pois quem pergunta não é bem visto, sobretudo se faz a pergunta errada.

Confirma que o saber no candomblé é esotérico, de difícil acesso e divulgação restrita, constituindo um mistério pouco compreensível à modernidade ocidental. Que a posse do conhecimento religioso produz status, portanto saber e poder estão relacionados.

Secretos e adquiridos ao longo do tempo, os fundamentos desse saber requerem um sistema hierárquico com pequeno número de conhecedores

Secretos e adquiridos gradativamente ao longo do tempo, os fundamentos desse saber requerem um sistema hierárquico com pequeno número de conhecedores. Tornam-se um bem de alto valor que gera complexa rede de poder dentro da comunidade.

A lógica do segredo, que também existe no culto aos orixás na África, no Brasil seria ampliado pelas condições da escravidão e do ambiente de perseguição em que surgiu o candomblé.

A autora discute as interações complexas entre referências iorubás, muçulmanas e cristãs no uso da escrita pelo povo de candomblé no século 19. Indica que usos da escrita (e também da fotografia) desde então nos candomblés são mencionados, embora marginalmente, em todos os antigos estudos.

Mas constata a tendência da etnografia, em geral, a desconhecer a escrita nos terreiros como aspecto relevante, o que relaciona à ideia enraizada de que esse meio de transmissão e registro de saber seria uma deturpação da pureza original e de que as culturas ágrafas estariam congeladas no tempo, não teriam história.

Adepta do candomblé durante ritual
Uma adepta do candomblé durante ritual (foto: Talita Oliveira – CC BY-NC 2.0).

Produção textual ‘para-etnográfica’

Castillo, em contrapartida, constata e analisa a existência na prática privada de 'cadernos de fundamento', usados como auxílio à memória, os quais se assemelham a um diário pessoal, embora sem que se observe seu uso sistemático como na 'santeria' cubana, onde muitos eram comercializados, enquanto na Bahia tinham circulação clandestina.

Livro: 'Entre a oralidade e a escrita: A etnografia nos candomblés da Bahia'
A capa do livro de Lisa Earl Castillo (imagem: reprodução).

Ela lembra que Ruth Landes, já na década de 1930, teve conhecimento de um desses cadernos e analisa detidamente o caso de legendário manuscrito, conhecido no Axé Opô Afonjá do Rio de Janeiro a partir de 1920, que circulou entre sacerdotes mais elevados.

Informa que ele contém setenta contos da versão afro-brasileira dos versos de Ifá e começou a ser publicado em diferentes edições a partir dos anos 1960. Teve edição integral, em inglês, na Nigéria na década de 1980, sendo divulgado definitivamente no Brasil na década seguinte.

A autora argumenta que as diversas contestações sobre a originalidade desse texto mostram que a polêmica quanto a suas origens é tão interessante quanto sua existência e valorização. E indaga como tantas pessoas chegaram a ter cópia de um texto guardado com tanto sigilo por ser tido como portador de segredos rituais.

O livro também analisa textos escritos e publicados na atualidade por um número crescente de sacerdotes e praticantes de diversos ramos das religiões afro-brasileiras, alguns vendidos até em bancas de jornal.

Segundo Castillo, classificar os textos, em geral, que surgem dentro dos terreiros implica problemas semânticos e ideológicos. Seus autores ocupam posições subalternas em relação à academia, mas pertencem à elite dos terreiros. Na falta de termo melhor, a autora denomina essa produção textual de para-etnografia.

A inalcançável ‘verdadeira realidade’

Na entrevista etnográfica, como na física nuclear, os dados acabam sendo modificados pelo próprio processo da coleta

Trata-se de um estudo muito rico em subsídios teóricos e metodológicos. Castillo discute os conflitos epistemológicos decorrentes da metodologia de pesquisa antropológica e constata, por exemplo, que na entrevista etnográfica, como na física nuclear, os dados acabam sendo modificados pelo próprio processo da coleta, fazendo com que a “verdadeira realidade” permaneça fora do alcance do pesquisador.

Discutindo, por outro lado, as influências da etnografia nos terreiros baianos especificamente e o efeito supostamente poluidor do antropólogo sobre seu objeto, ela mostra que tal problema se relaciona com a conhecida oposição entre pureza e deturpação rituais em um número pequeno de casas de culto.

Apesar da existência de numerosos terreiros na Bahia, constata que a bibliografia se concentra no estudo de três casas de tradição ketu que se tornaram famosas e acabaram se constituindo numa espécie de Vaticano da “Roma Negra” que seria Salvador.

As fronteiras entre narrativas produzidas por antropólogos, missionários e viajantes sempre foram mutáveis e inseridas no projeto colonial e de expansão cultural do Ocidente

Com domínio da bibliografia específica, a autora demonstra grande conhecimento sobre o tema pesquisado. Expõe controvérsias, avanços e recuos nas explicações da antropologia com base em aportes teóricos diversos.

Faz rigoroso exercício de análise da literatura sobre candomblé, passando por todos os brasileiros e estrangeiros que realizaram pesquisas na Bahia, a partir dos trabalhos do maranhense Nina Rodrigues no final do século 19.

Castillo lembra que as fronteiras entre narrativas produzidas por antropólogos, missionários e viajantes sempre foram mutáveis e inseridas no projeto colonial e de expansão cultural do Ocidente, produzindo um discurso de fora – com perspectiva etnocêntrica ou incompleta.

Como disse um amigo, há coisas melhores na vida, mas é sempre estimulante a leitura de um bom livro como este: um trabalho de fôlego elaborado por quem tem vivência intensiva e maturidade na observação.

Lamentamos que trate, em profundidade, apenas do candomblé da Bahia, pois nas demais religiões afro-brasileiras há muitas situações similares. Tal fato justifica-se pelos limites de temas e de prazos das teses acadêmicas (o livro resulta de sua pesquisa de doutorado).

Devido ao grande interesse da obra, deixamos até de reparar que os serviços gráficos de nossas editoras universitárias deveriam ter melhor resolução.

Sergio Ferretti
Professor da Universidade Federal do Maranhão
Autor de Querebentã de Zomadonu: Etnografia da Casa das Minas (Pallas Editora).

Entre a oralidade e a escrita:
a etnografia nos candomblés da Bahia

Lisa Earl Castillo
Salvador, 2008, Edufba
CIÊNCIA HOJE

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