sexta-feira, 23 de abril de 2010

Mídia e Racismo


Rosana Heringer

RAMOS, Silvia (org.), Mídia e Racismo. Rio de Janeiro, Pallas, 2002

Num tempo em que o debate sobre cotas para estudantes negros e de escolas públicas é onipresente nos diferentes meios de comunicação brasileiros, vale a pena conhecer e aprender com os diversos autores do livro Mídia e Racismo, organizado por Silvia Ramos e publicado pela editora Pallas no final de 2002.

O livro é um mosaico de muitas vozes, refletindo com desenvoltura os acalorados debates realizados durante o seminário de mesmo nome realizado na Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, em agosto de 2001, apenas uma semana antes da Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban, África do Sul.

Silvia Ramos, que também organizou o seminário, é coordenadora de Minorias e Cidadania do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Candido Mendes. Na introdução, ela afirma que os organizadores pediram a cada participante "que refletissem sobre o racismo e sua superação na imprensa, na televisão, no cinema, no teatro e na dança e que, finalmente, refletissem sobre o racismo e sua superação na música".

O livro obedece, em linhas gerais, à mesma estrutura das mesas-redondas do seminário: imprensa e racismo; tv, cinema, teatro e dança; músicas, expressões étnicas e raciais, além de uma seção em que são apresentados alguns indicadores das desigualdades raciais no Brasil.

Complementando as reflexões resultantes do seminário, o livro traz também uma análise da cobertura feita pela imprensa brasileira sobre a Conferência de Durban e uma síntese das discussões resultantes de um outro seminário sobre tema semelhante, realizado em Brasília também em agosto de 2001: "Racismo na mídia: verdades e mentiras". Registros de canções interpretadas por artistas negros no encerramento do evento completam a publicação.

Como é possível observar por esta rápida descrição, trata-se de um mosaico não apenas por contar com dezenas de autores (26 no total), mas também pela variedade de estilos e formas textuais das diferentes contribuições. O criativo projeto gráfico dá ao livro um estilo de quase almanaque, o tipo de publicação que se pode abrir numa página ao acaso e seguir lendo, recolhendo sempre alguma frase ou observação interessante. Não é mesmo um texto para ser lido linearmente. E esta característica traz riqueza e versatilidade ao conteúdo final.

O capítulo sobre a imprensa e o racismo aborda tanto o tratamento dado pelos grandes jornais ao tema do racismo e desigualdades raciais quanto a estratégia adotada pela imprensa alternativa, representada pela Afirma, revista negra on line, e pela análise da jornalista Sandra Almada sobre a revista Raça Brasil. No que se refere à grande imprensa, uma análise cuidadosa do ombudsman da Folha de S. Paulo, Bernardo Ajzenberg, não parece deixar dúvidas quanto à pouca preocupação dos grandes órgãos de imprensa em tratar de forma corajosa e explícita o drama do racismo no Brasil. Dada a conjuntura de realização do seminário, Ajzenberg também abordou a questão do "intrigante silêncio" da mídia brasileira, até aquele momento, em relação ao processo preparatório da Conferência da África do Sul. Afirmou que a direção do jornal já havia sido alertada e previu uma cobertura mais ampla no período seguinte, o que de fato ocorreu posteriormente.

O segundo capítulo é dedicado à "estética do racismo", isto é, à presença circunscrita (ou ausência) dos negros na ficção, no cinema, tv, nas artes em geral. A riqueza dos depoimentos de Joel Zito Araújo, Carmen Luz e Antonio Pitanga, trazem elementos importantes para se pensar novas políticas de inclusão cultural, que não se restringem à maior ou menor presença numérica de artistas negros em novelas e comerciais, mas que ampliam o debate para os modelos subliminares de idealização da nação brasileira contidos numa mídia predominantemente branca, ou que continua reservando aos negros papéis subalternos e inexpressivos. O desafio aqui é criar possibilidades para que atores negros protagonizem histórias que contenham qualquer tipo de carga emocional e dramatúrgica, não se restringindo apenas a interpretar eternamente os escravos das novelas de época ou os subempregados e malandros dos folhetins contemporâneos. Reconheceu-se o avanço operado neste campo ao longo dos últimos anos, fruto da mobilização e esforço de um grupo de atores e diretores, mas apontou-se o quanto ainda é necessário avançar, para além da presença negra estilizada no carnaval ou no candomblé. Como afirma Joel Zito no texto: "Não queremos papéis de negros, queremos papéis de brasileiros empregados, empresários, dentistas, médicos, advogados".

Um outro capítulo do livro é dedicado à presença do negro nas distintas manifestações musicais brasileiras, ao mesmo tempo como campo de discriminação e de resistência. As reflexões de Leci Brandão e Rômulo Costa apresentam visões complementares sobre os diversos percalços encontrados pelos artistas negros no seu caminho de afirmação pela música. Ambos foram unânimes em afirmar que o sambista, o "funkeiro" ou o rapper apenas são aceitos enquanto produto de fácil digestão pelo público, principalmente no caso dos brancos de classe média e alta que não estão interessados em ir além de músicas com mensagens simples e inofensivas. Neste aspecto, Liv Sovik, professora da Escola de Comunicação da UFRJ, nos apresenta justamente uma das reflexões mais ricas do livro, ao apontar que a própria ação de consumir música possui suas próprias mediações e pode ser realizada tanto para gerar atitudes de solidariedade e resistência quanto para reforçar a insensibilidade quanto ao drama social e racial brasileiro.

Diante de tantos aspectos abordados em torno das interseções de mídia e racismo, o que mais se destaca neste livro é a capacidade de produzir no leitor uma visão crítica, mas, ao mesmo tempo, cheia de otimismo. Termina-se a leitura com a sensação de que, se muito ainda precisa ser transformado neste campo, sem dúvida um longo percurso já foi percorrido. Esta parece ser a principal mensagem: observar as distintas estratégias bem- sucedidas pelas quais os movimentos negros e demais ativistas anti-racistas têm tornado visível a sua agenda e provocado mudanças de atitude por parte dos brasileiros.

Esta parece ser a mensagem necessária e oportuna neste momento em que os debates sobre as políticas de ação afirmativa e as cotas têm ocupado lugar de tanto destaque no noticiário nacional. Miriam Leitão abordou, em sua exposição, o fato de que o racismo na imprensa está freqüentemente presente, mas raramente é explícito, dificultando sua superação. Talvez não se possa mais dizer exatamente o mesmo neste início de 2003, se analisamos em detalhes a cobertura da grande imprensa sobre as cotas para alunos negros no ensino superior. Muito do que era antes implícito, tornou-se, em vários casos, não apenas visível, mas bastante ofensivo. Quem sabe, precisaremos de muitos outros seminários sobre este assunto para que de alguma forma se provoquem reflexões e ações em relação à forma como a imprensa trata do racismo no Brasil.

Centro de Estudos Afro-Asiáticos

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