BARBOSA, Nelson Luís. (pesquisa documental, edição de texto fidedigno e anotada, introdução). E viva a vida! Correspondência entre os escritores Osman Lins e Hermilo Borba Filho. São Paulo: Hucitec, 2024
A edição da correspondência entre Osman Lins (1924-1978) e Hermilo Borba Filho (1917-1976), E viva a vida!, alcança duplo mérito: amplia a obra e também a fortuna crítica dos dois escritores, graças ao rigoroso, paciente, esmerado trabalho empreendido por Nelson Luís Barbosa em pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP). No fornido volume de 508 páginas (formato 16 x 23 cm), o estudioso graduado em Letras Francês/Português, mestre e doutor em Literatura Comparada, sempre pela USP, reúne, analisa e contextualiza 201 cartas, incluindo bilhetes e telegramas, trocadas pelos dois grandes autores pernambucanos de 1965 a 1976; Osman (106) em São Paulo e Hermilo (95) em Recife. A escritora Julieta de Godoy Ladeira (1927-1997), viúva de Osman Lins, deixou a correspondência reunida, com anotações e o título colhido no fim da última carta de Hermilo, e Nelson Barbosa fez a pesquisa documental (encontrou novos papéis), a edição de texto fidedigno e anotada e uma esclarecedora apresentação desse “livro valioso” e de “leitura imperdível”, como atesta na orelha Sandra Nitrini, uma pioneira nos estudos osmanianos. De fato, o livro traz novidades até mesmo para os mais aplicados estudiosos dos dois escritores.
Outro mérito do pesquisador e organizador no alentado estudo: dispensa espaço e atenção iguais a cada um dos missivistas, desde a apresentação, as minuciosas e substanciosas notas de pé de página (muitas analíticas e interpretativas) e a transcrição de textos de Julieta a respeito da correspondência e da amizade dos dois escritores, de artigos de Osman Lins sobre Hermilo Borba Filho e da professora gaúcha Regina Zilberman a respeito do autor de Avalovara. No pe- ríodo da correspondência, poucas vezes os escritores se encontraram - imprevistos evitaram longas conversas presenciais -, o que fez das cartas o lugar privilegiado de diálogo, como salienta Barbosa. Osman e Hermilo tratam sobretudo de questões literárias e editoriais, com significativas revelações para seus habituais leitores.
Poucas vezes assuntos pessoais e familiares têm espaço na correspondência. Intelectuais atuantes e progressistas (Osman fora aluno de Hermilo em curso de Arte Dramática em Recife), discutem os temas mais candentes do período da ditatura militar, como a censura imposta a representações artísticas e culturais - livros, filmes e peças -, dificuldade de publicação, indiferença de editores, bastidores de concursos literários, mas também dividem momentos de angústia nos tempos de incerteza e de alegria com a produção, edição e tradução de suas obras. Autores diferentes, mas complementares, eles próprios identificam nas cartas pontos de contato na visão e prática da literatura. No entanto, são as divergências que rendem as páginas mais admiráveis da correspondência, como as sequências em que discutem a montagem de peças clássicas pelo Teatro Popular do Nordeste, dirigido por Hermilo, e da peça Auto do salão do automóvel, de Osman Lins, pelo TPN, a cargo de um diretor do grupo e da confiança de Hermilo, José de Souza Pimentel (1934-2018). Nos dois episódios, Osman discorda com veemência e Hermilo rebate com serenidade. No caso do Auto, que ficou pouco tempo em cartaz, com apenas 15 apresentações, a realidade mostrou que Osman tinha razão ao questionar a mudança do lugar em que é ambientada a peça, de São Paulo, de 8 milhões de habitantes na época (“com mil dificuldades a esmagar o indivíduo”) para o Recife (“marítima e, apesar do movimento, doce sob muitos aspectos”, p.246) e outras radicais intervenções do encenador (que desfigurou o original) e devem ter desagradado também o público pernambucano. Vale a pena transcrever alguns trechos dessas cartas (Barbosa, 2024).
Osman a Hermilo, em 10 de julho de 1967 (p.121):
Vivendo aí, Hermilo, talvez você tenha deixado de ver claro algumas coisas. Juro-lhe: não tem o menor sentido levar dramas gregos, ou elisabetanos, ou racinianos no Nordeste. É puro esteticismo, por mais esforços que se procure fazer em contrário. Isso é uma terra bruta e áspera, você sabe disso. E inculta, além do mais. Uma terra à procura do que significa. São os dramaturgos daí, Hermilo, com todas as suas deficiências, que devem ser postos diante dos nossos conterrâneos. Sófocles, Ésquilo, Eurípedes que vão para o inferno. Seu entusiasmo, por verdadeiro que seja, é a sobrevivência do velho Teatro do Estudante e deve ser enterrado. Um homem como você, visceralmente ligado à sua terra - todos os seus trabalhos literários mais recentes comprovam isto -, não pode ter outro papel, como homem de teatro, senão o de revelar ao público de Pernambuco os textos nordestinos que ainda não tiveram sua oportunidade. Essa, sim, é a grande aventura espiritual que o espera enquanto homem de teatro. O mais são bordados, rendas e etiqueta.
Da resposta de Hermilo a Osman, em 29 de agosto de 1967 (p.123/4):
O Teatro Popular do Nordeste tem um programa em relação a teatro: os clássicos e os autores brasileiros. Não temos fugido dessa linha. Creio na atualidade do clássico e creio justamente na medida em que vem ao encontro da nossa posição de homem de teatro da hora atual. Montei dois nesta nova fase do TPN: O inspetor, de Gogol, e Um inimigo do povo, de Ibsen. O primeiro denunciava, dentro do espírito épico, o anti-iluminista que preside as nossas encenações, a corrupção administrativa e o ridículo das classes armadas; o segundo denunciava, ou melhor, rasgava o abscesso da demagogia e a falsa compreensão de massa. O que acontece com Antígona? O abuso da autoridade e a violentação do indivíduo. Não acha que isso é de uma atualidade a toda prova? Aí estão os IPMs, e aí está a realidade nordestina, principalmente tendo você em vista que a “roupagem” do espetáculo induz o espectador a situar-se numa situação que se repete há séculos e que estamos, nela, sofrendo. [...] Estamos vivendo uma época terrível e cabe a nós, artistas, lutar com as nossas armas pela sobrevivência do homem no momento e sua vivência integral através de exemplos. Montamos dois autores brasileiros: Dias Gomes e Hermilo Borba Filho. O primeiro com uma denúncia - O santo inquérito - e segundo uma farsa plautina à maneira nordestina, de sabor de região. E por que Antônio José? Porque todos nós sentimos a necessidade de ser Quixotes contra as baionetas e as bombas. Não é uma forma de luta? Além disso, a peça está dentro do espírito nordestino lúdico, do bestiário, da imaginação, dos cantos, do mamulengo. [...] Todas as peças que citei estão perfeitamente enquadradas dentro da nossa linha anti-iluminista, com bases muito menos em Brecht, por exemplo, que no Bumba-meu-boi.
Osman a Hermilo, em 6 de setembro de 1976 (p. 127):
Sou muito grato por haver acolhido com tanta generosidade minha última carta. Eis uma das raras vezes em que uma argumentação contrária nos causa uma grande alegria, pela dignidade e pela consciência que revela. Gostaria de, um dia, dar a público essa sua carta, documento intelectual de grande importância e um dos melhores que me têm chegado às mãos. Você esclareceu a sua posição com raro equilíbrio e extrema lucidez.
Agora, a questão da montagem do Auto do salão do automóvel. Depois de ter assistido a um ensaio da peça, Osman escreve em 21 de outubro de 1970 uma longa carta a Hermilo (p.246-50), em que discorda da concepção do espetáculo pelo diretor. Eis alguns trechos:
Concluí, da conversa com o Pimentel e do ensaio, que vi, que ele está bastante errado na sua compreensão da peça. [...] Foi feita, sem nenhuma consulta a mim, uma transposição da peça, concebida tendo em vista a realidade paulistana, para o Recife. [...]

BARBOSA, Nelson Luís (pesquisa documental, edição de texto fidedigno e anotada, introdução). Correspondência entre os escritores Osman Lins e Hermilo Borba Filho. São Paulo, Hucitec, 2024.
O Pimentel disse-me que iria rever o problema. Mas faço questão de insistir: não concordo de maneira nenhuma com a transposição. [...] Foram feitas várias alterações no texto, também sem nenhuma consulta a mim. Algumas, é certo, devido à transposição da ação da peça. Outras, porém, foram simplesmente despropositadas. [...] O Pimentel compreendeu que na peça há um guarda. Nada mais errado. O guarda de Ciclistas e Pedestres nada tem de “real”. É um guarda fantástico, solidário com os Bancos, a mass media, a propaganda, com tudo que dirige os homens.

Os conterrâneos Osman Lins e Hermilo Borba Filho mantiveram constante e densa correspondência epistolar, entre 1965 e 1976.
[...] Ora, o Pimentel estava vendo nesse guarda um indivíduo esmagado quando ele é exatamente um ser solidário com o esmagamento. [...] Vão então, aqui, algumas exigências para a apresentação da peça, aliás poucas mas importantes: obediência rigorosa ao texto que lhe enviei, sendo considerado inidôneo o que está em mãos do Pimentel; só serão feitas, no mesmo, as modificações absolutamente indispensáveis, devendo ser mantidas, tanto quanto possível, as informações existentes sobre a topografia de São Paulo e outras características da cidade; decorre daí que a ação da peça não poderá ser transferida para qualquer outra cidade; ainda em obediência ao texto, deverá haver, na encenação, uma delimitação tão clara quanto possível entre o mundo de Ciclistas e Pedestres e o restante da peça. [...] O Fanático do Trânsito. Na direção de Pimentel, está ágil, vivaz. Errado. Trata-se de um chato, um conversa-mole. Um tipo que não tem o que fazer e que fica bestando junto ao guarda. [...] Nem por sonho os gritos de “bicha! bicha” que meteram no texto, com o objetivo de fazer graça. A fala de Hamlet aos comediantes continua válida. [...] P.S. - Se você quiser manter a peça, precisa tomar providências urgentes para submeter à Censura o texto verdadeiro. Pois o que está lá, se é uma cópia do que vi com o Pimentel, não é meu.
Hermilo a Osman, em 29 de outubro de 1970 (p.251-2):
Com toda a honestidade acho que Pimentel imprimiu ao seu texto uma dinâmica que ele não tem. Você esmiúça certos detalhes como autor, esquecendo que uma mesma peça, encenada por cinco diretores diferentes, poderá ter cinco visões diferentes. Leia com atenção e amizade a carta de Pimentel e nos responda por telegrama a sua resolução. Será uma pena que não montemos a peça, já com publicidade iniciada, já com contratos em outras cidades, já com estreia marcada aqui para o dia 20 de novembro, mas quero dizer-lhe que concordo com quase tudo que Pimentel lhe diz. [...] Lembre-se de Hamlet em roupas modernas, de A megera domada musicada, de tantos outros exemplos, não seja intransigente à manutenção de certos subjetivismos do texto, lembre-se de que o drama é uma coisa e o espetáculo outra. [...] Pense um pouco, Osman: a interpretação de um romance pertence ao leitor, a de um quadro ao observador, a de um texto escrito para teatro ao encenador. Claro que tudo o que lhe dizemos, eu e Pimentel, é da maneira mais fraternal possível, dentro da abertura da sua carta, afastadas certas ranzinzices, a amizade permanecendo a mesma, quer você dê ou não a sua autorização. Neste último caso, seria uma pena, porque o espetáculo é absolutamente idôneo.

Em 1975, Hermilo escreve a Osman.
Conforme pedido de Hermilo, Osman responde por telegrama: “Concordo”. Mas, após o fim precoce da temporada da peça, ele escreve ao amigo, em carta de 2 de fevereiro de 1971 (p.268): “Vai vendo que o nosso Pimentel não estava tão certo quanto pretendia estar”. Numa carta ao “fraterno” conterrâneo, Osman Lins se refere aos Estados Unidos como “[n]aquele diabo de país” (p.102), e em carta a Leda Alves (p.493), viúva de Hermilo, chama Walt Disney de “vigarista”. O leitor de E viva a vida! certamente vai se perguntar o que Osman Lins diria hoje sobre os Estados Unidos e o seu atual presidente.
Referências
BARBOSA, N. L. (pesquisa documental, edição de texto fidedigno e anotada, introdução). Correspondência entre os escritores Osman Lins e Hermilo Borba Filho. São Paulo, Hucitec, 2024.
Revista Estudos Avançados - USP
 
 
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