segunda-feira, 28 de março de 2016

O PROFESSOR DE CRISTOVÃO TEZZA


O CRIME QUE NÃO COMETEMOS – SOBRE O PROFESSOR DE CRISTOVÃO TEZZA
Olhar de Marcia Tiburi sobre o livro "O Professor", de Cristovão Tezza


“O Professor” é a história de Heliseu, um filólogo que tem uma homenagem a receber por ocasião de seus 70 anos e o fim de sua carreira acadêmica. Como professor, ele ensina uma matéria cujo grau de inutilidade se torna cada vez mais impressionante. A matéria, a filologia românica, é rejeitada por todo o corpo docente da universidade e também pelo corpo discente. Sabemos como a inutilidade das coisas define o desinteresse dos estudantes, que se convencem fácil de que a pressa é, de algum modo, a alma do negócio. Eles têm razão, é a alma do negócio ao qual servirão em vida (que vida?), mas não da formação que não é negócio algum. Quem é professor vive de mostrar que o que não importa, na verdade, importa mais ainda. Heliseu, talvez tenha tentado. Mas Heliseu, de algum modo, virou um fóssil.


Ele tem que se resolver com isso. O seu problema não é a luminosa questão do ensino e da formação. A parte sombria de sua vida – ou pelo menos aquela parte não declarada – é o que lhe vem à mente. Preocupa-se com o discurso da homenagem, com o que dizer. Como dizer o que deve ser dito diante dos colegas, eis a questão de Heliseu enunciada na clara exposição da superfície da vida. Do outro lado, aquilo que mesmo não devendo ser dito, acaba por ser lembrado, se torna o eixo de tudo o que virá. A força da rememoração, a sua crueza estranhamente parcimoniosa, eis o que devora o nosso amigo. Aquilo sobre o que todos falavam sem que, no entanto, pudessem saber do que realmente se tratava: a morte de sua mulher por suicídio, o caso com a aluna, o filho homossexual que vai embora. Ora, quem vai saber o que se passa na pele do outro quando confrontado com sua própria experiência? O encontro com Heliseu talvez nos permita dar conta disso, de que é preciso ter respeito com aquilo que não se conhece. A experiência alheia nos é evidentemente inacessível.

Cristovão Tezza escreveu algo que nos oferta justamente essa experiência. É a tarefa da literatura – talvez não possamos encontrar outra. Teremos que enfrentar Heliseu, o frio e solitário Heliseu. Um homem de seu tempo esperando pra sair dele, ou será um homem fora do tempo, que não se preocupa em entrar nele. O professor de filologia exposto em sua condição solitária, pois que a filologia não importa a quase ninguém, dedicou sua vida a ela e se pode dizer que apaixonadamente. Uma paixão fria como são as paixões relativas ao conhecimento. O que lhe importou foi a beleza do saber, da língua, da velha língua, da língua que já morreu e, todavia, sobrevive também – ou talvez apenas – por sua causa.

Do mesmo modo, Heliseu se apaixona por uma aluna, uma única pessoa que ainda quer fazer tese na área; paixão desse tipo que não é incomum na vida acadêmica que bem conhecemos. Mas que parece importar a ele mais pela “tese” da aluna, do que pela aluna em si mesma. Já a sua mulher, a sua mulher era um parâmetro de normalidade, algo que ficava na luz até que, apagadas as lâmpadas da idealização, mostrou-se puro breu.

Heliseu tem de fato o reconhecimento de seus colegas, ele escreveu uma tese importante e, por meio dela, encontrou um lugar nesse mundo meio miserável que é o acadêmico. Mas o que mais impressiona em Heliseu é que ele não é de modo algum um herói. Cristovão Tezza sabe que seus personagens não são heróis. Não quer que sejam, ele mesmo afirma. Heliseu é, assim, apenas uma pessoa que viveu sua vida como se ela fosse uma sucessão de acontecimentos, no caso, uma “cadeia de desconcertos” como ele percebe ao amanhecer, no ponto onde o livro começa. É claro que Heliseu, do ponto de vista onde tudo é contado, nos faz perguntar se a vida poderia ser outra coisa. E talvez o seu desafio seja colocar em cena que ninguém precisa mais responder a uma pergunta como essa em um mundo como o nosso.

A narrativa se desenvolve dentro da expectativa e a da preparação da homenagem. Heliseu faz a barba, toma seu banho, toma um café, veste sua roupa. Enquanto isso vamos descobrindo o que se passou na vida de Heliseu. Sua visão de si mesmo e do mundo se expõe a partir dos textos do português arcaico que são abundantemente citados no livro. Quem, ao ler, prestar atenção na questão da “queda das consoantes intervocálicas” perceberá que se trata de uma metáfora da passagem do tempo materializado no modo como falamos. Bonito quando ele conta que a palavra “lágrima” é a única que não mudou entre nós. Eu particularmente, adorei essas partes. Cristovão Tezza brinca com o anacronismo elevado a linguagem no tempo do pleno elogio ao “contemporâneo”. (No tempo dos moderninhos, um homem como Heliseu é adorável). Tezza nos oferece um encontro com a sombra do nosso tempo, o tempo de cada um, o tempo em que o passado simplesmente se repete enquanto escapa de nossas mãos.

***

Toda experiência é experiência da perda e da conquista de si mesmo. A consciência não é uma experiência à toa, é um jeito de permanecer inteiro, seja lá o que isso possa significar. Heliseu é um sujeito lançado na história econômica e política brasileira, mas que a viveu pela margem. A viveu como se não fosse com ele, como acontece com a maioria das pessoas, embora estivesse ligado nos fatos e sua vida possa ser compreendida em sincronia com momentos dessa história. Ele escuta os fatos – ele os escuta muito com os ouvidos de sua mulher, Mônica. Ele se lembra de ter ouvido sobre os acontecimentos. Isso faz pensar que o cidadão em um país como o nosso é sempre um coadjuvante. Coadjuvante de sua própria vida, de certo modo. E, como tal, é uma vítima de nossas escolhas estúpidas, suas e de outros. Ninguém sabe direito que escolha está fazendo por si mesmo ou pelos outros. Ninguém sabe, no extremo, o que está fazendo ao viver uma vida inteira.

Todo mundo que tenha adquirido algum grau real de consciência – ou tanta consciência que ela se torne contra-consciência – terá um inspetor Maigret na sua cola lhe fazendo saber que “não perdoamos os outros do crime que nós cometemos”. É disso que esse livro fala, que uma vida é um crime que não se comete.
Revista CULT

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