Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco (Org.). Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998. 310 p.
Em Indigenismo e Territorialização encontramos textos antropológicos que se distanciam das falsas expectativas e certezas que os "índios" despertam entre os brasileiros, erradamente representados como fiapos de humanidade prestes ao desaparecimento frente ao avanço inexorável da civilização. Há também uma postura crítica ante o indigenismo rondoniano e ante as práticas governamentais vigentes. Desde a apresentação do livro, João Pacheco contrapõe-se à idéia de aniquilamento populacional e cultural dos índios, argumentando que a feição recente apresentada pelas sociedades indígenas não resulta de algo que lhes seja intrínseco, mas é são sim "...o resultado da compulsão das elites coloniais em instituir a homogeneidade, tentando abolir com ferro e fogo as diferenças culturais, religiosas e políticas" (p. 8). Em se tratando da territorialidade indígena, impossível tratá-la fora dessa perspectiva processual, que as reconhece como fruto da constrição colonial e de sua sucessora, organizada em parâmetros agora nacionais.
A publicação é oriundado projeto PETI (Projeto Estudo sobre Terras Indígenas no Brasil: invasões, uso do solo e recursos naturais) coordenado por João Pacheco de Oliveira, desenvolvido no Museu Nacional (RJ) entre 1983 e 1994 e financiado pela Fundação Ford, que tem como um de seus importantes resultados a publicação da coletânea Indigenismo e Territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. A leitura dos textos contidos nesta obra ilumina amplamente o assunto. Para estudantes interessados na temática indígena, para profissionais que exercem a perícia antropológica e para teóricos da etnologia indígena a leitura destes textos mostra-se fundamental.
Em verdade, o trabalho desenvolvido pela equipe do PETI dá sua contribuição dentro de toda uma tradição de pesquisadores engajados no estudo, na visibilidade e no reconhecimento do direito à sobrevivência física e cultural das populações indígenas por eles estudadas. Passando por Curt Unkel Nimuendaju, Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira e tantos outros, essa tradição concilia o estudo da etnografia e da etnologia indígenas com a aplicação das suas descobertas para influenciar as políticas sociais e a administração governamental dos direitos indígenas. É por isso que o PETI teve como proposta básica o monitoramento independente do processo de criação e reconhecimento oficial das terras indígenas no Brasil. O caso da regularização das terras indígenas é bastante ilustrativo da atualidade e da urgência da demanda, ainda mais porque, enquanto processo administrativo e judicial, é assunto que já deveria ter sido finalizado em 1993, segundo definido pela Constituição Federal de 1988.
O conjunto de textos tem em comum o fato de realizarem uma "...análise processual do poder, considerando-o como um conjunto de mecanismos, estratégias e compulsões que são realizados e intervêm sobre os indígenas e suas coletividades na definição dos seus direitos territoriais"(grifos do autor). O poder não é tratado como representação, mas como exercício de deslocamento e supressão de vontades dos sujeitos inseridos em uma situação colonial. Em cada um dos textos é realizada uma microanálise antropológica da tessitura das relações normativas quotidianas dos aparelhos de poder determinantes na dimensão fundiária e na constituição das Terras Indígenas. Assim, o indigenismo e a ação indigenistas são focalizados como forma de territorialização das populações indígenas.
Além da introdução, João Pacheco assina também quatro capítulos do livro. No primeiro ("Redimensionando a questão indígena no Brasil: uma etnografia das terras indígenas") ele expõe os parâmetros conceituais e metodológicos gerais norteadores dos trabalhos seguintes. Aponta mais ao entendimento dos processos sociais que homogeneizam os grupos indígenas dentro da sociedade nacional, e, menos para o interior específico de cada um deles. O texto assume uma posição totalizante e histórica, defendendo e realizando uma etnografia dos processos sociais envolvidos no estabelecimento das terras indígenas no Brasil, em sua manifestação enquanto "...processos jurídicos, administrativos e políticos pelos quais o Estado é levado a reconhecer determinados direitos dos índios à terra" (p. 17). O autor extrai os dados diretamente obtidos na leitura da documentação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), analisando-os qualitativa e quantitativamente a fim de entender a conceituação oficial de "terra indígena", detalhar os meandros dos processos administrativos de demarcação e um amplo diagnóstico dos estágios de tramitação do conjunto de terras indígenas em território nacional.
São apresentados quadros detalhados e percentuais comparativos em escala nacional, alguns com o propósito de demonstrar a variação histórica e regional do processo de demarcação antes e durante a existência da FUNAI. Ao final, conclui que é necessário redimensionar a questão indígena no Brasil, lamentando a pouca fundamentação sociológica que há para o debate sobre o assunto junto à burocracia. Por isso, o autor recoloca o assunto de um ponto de vista sociológico que não se reduz ao legal nem ao administrativo. Sua conclusão não poderia ser outra sobre a FUNAI: "Existem no entanto dentro do próprio órgão mecanismos internos de controle e contenção das demandas indígenas por terra e das identificações e propostas de áreas realizadas por seus funcionários" (p. 37). Finaliza por desdobrar o conceito de "funil fundiário" para entender a forma como se processa esse controle e contenção.
O segundo capítulo de João Pacheco ("Terras Indígenas, Economia de Mercado e Desenvolvimento Rural") tem por finalidade expor os resultados obtidos na análise da documentação oficial, a fim de responder a algumas questões fundamentais sobre as terras indígenas no Brasil. "Quantas são as terras reivindicadas e/ou controladas pelos grupos indígenas brasileiros? Quais são as outras destinações que recebem essas terras, em contradição com a sua utilização pretendida pelos próprios índios? Como se situam as terras indígenas quanto ao estoque total de terras do país e como podem obstaculizar programas de colonização e desenvolvimento agrário?" (p. 43). O texto é rico em dados sistematizados em gráficos percentuais, organizados em termos das fases do processo de demarcação (Não-Identificadas, Identificadas, Delimitadas, Homologadas e Regularizadas) e em cruzamento com outras variáveis. Os resultados dos quadros comparativos montados pelo autor permitem criticar cientificamente a política indigenista e sua base de cálculo fundada na relação ha/índio, que justifica considerarem os índios poucos para habitarem tantas terras e outras crenças vigentes no meio oficial.
O terceiro capítulo, escrito na co-autoria entre João Pacheco e Alfredo Wagner Berno de Almeida ("Demarcação e Reafirmação Étnica: um Ensaio sobre a FUNAI") está baseado numa etnografia realizada nos arquivos e no quotidiano da FUNAI e o texto possui uma diretiva ensaística, articulando observações, críticas e recomendações quanto aos procedimentos administrativos concernentes à criação das áreas indígenas. Seus autores objetivam produzir polêmica e estimular discussões, executando uma reflexão livre sobre alternativas possíveis a serem seguidas por esse órgão, criticando o caráter emergencial com que são tratadas todas as suas ações, a falta de uma programação estabelecida, o catastrofismo e o pragmatismo entendidos como marcas da instituição.
Os autores também analisam os limites administrativos do trabalho antropológico na regularização das terras indígenas, na constituição dos chamados "Grupos de Trabalho" (GT), em que a participação indígena é enfraquecida, onde servidores sem formação adequada são convertidos em técnicos de antropologia e não existe um sistema centralizado de documentação necessária à pesquisa, dentre outros problemas. Os dados apresentados permitem concluir que, no conflito entre colonos e índios dentro dos processos da FUNAI, ambos são atingidos por uma ação fundiária que opera com noções colonialistas. A parte final do capítulo propõe a necessidade de se incorporar uma orientação antropológica na intervenção sistemática da instituição, a fim de superar seus limites etnocêntricos, voltando a reconhecer o processo de demarcação como político não sujeito à lógica de exclusão.
O capítulo seguinte é de autoria de Lucy Paixão Linhares ("Ação Discriminatória: Terras Indígenas como Terras Públicas") e segue na compreensão dos mecanismos burocráticos envolvidos na regularização das terras indígenas, analisando diretamente as relações estabelecidas entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a FUNAI, na medida em que historicamente a legislação considera as terras indígenas como terras públicas no Brasil. Essa contradição de fundo está coadunada com um jogo de ineficiência e omissão mútua com relação à tramitação no reconhecimento dos direitos territoriais indígenas, quadro analisado pela autora do ponto de vista histórico e sociológico.
Ana Lúcia Lobato de Azevedo escreve o quinto capítulo ("A participação do Poder Judiciário na Definição da Terra Indígena") fazendo uma análise da categoria jurídica "terra indígena" a partir da atuação efetiva do Poder Judiciário, usando como material empírico uma série de ações propostas contra a FUNAI perante o Juízo de Direito de Rio Tinto, estando em causa as terras tradicionalmente ocupadas pelos Potiguara na costa da Paraíba. Assim, o Poder Judiciário é considerado como fazendo parte do campo político e não como uma esfera equânime e eqüidistante, nem como situado acima de todos os demais poderes e esferas de decisão social. Algumas idéias de F. Bailey, V. Turner e M. Foucault são retomadas, sendo o pleito em torno dos direitos territoriais indígenas considerados na "arena" administrativa e jurídica. Sua conclusão é contundente: "Na situação brasileira o Poder Judiciário se reveste de características que parecem antes de tudo se opor. De um lado, uma ideologia que acentua o conhecimento da verdade, o justo, equilibrado, racional...; de outro, um acintoso esquema de favorecimentos, corrupção, conchavos" (p. 168).
Antonio Carlos de Souza Lima é autor dos dois capítulos seguintes. No primeiro ("A `identificação' como categoria histórica"), aborda a historicidade da prática federal e republicana de identificação de terras indígenas, considerada como etapa preliminar dos processos administrativos dentro do órgão oficial indigenista. Usa como material empírico normas administrativas e o texto de leis. Souza Lima estuda a constituição histórica das práticas protecionistas do Estado brasileiro sobre os povos indígenas, buscando fazer uma "sociologia das identificações" e comparar a atuação fundiária da FUNAI com a ação indigenista anterior realizada pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI,1910-1967), reconhecendo projetos ideológicos diferenciais e diferentes valores norteadores das práticas administrativas; ainda que, de fundo, nunca se tenha posto em dúvida a crença sobre uma inexorável transformação dos índios em não-índios, sendo o reconhecimento territorial apenas uma forma da consciência culpada do branco tentando ressarcir os povos ameríndios dominados.
Souza Lima também assina o texto intitulado "Os Relatórios Antropológicos de Identificação de Terras Indígenas da Fundação Nacional do Índio. Notas Para o Estudo da Relação entre Antropologia e Indigenismo no Brasil, 1968-1985". Faz uma reflexão sobre a "impensada Antropologia aplicada brasileira"(p. 268), considerando a relação entre a antropologia e saberes administrativos do indigenismo, através da análise dos "relatórios antropológicos de identificação", um tipo específico de documento administrativo da FUNAI situado no início dos processos de regularização fundiária das terras dos índios. Reportando-se a R. Barthes, E. Bruner, M. de Certeau, M. Foucault, J. Jamin, G. Marcus e outros, analisa diversos aspectos que levam ao entendimento dos parâmetros de objetividade incorporados na narratividade dos relatórios antropológicos (o "realismo etnográfico", p. 228), que acabam forçando a dimensão étnica para seu enquadramento burocrático num status jurídico fixado em normas legais e administrativas.
Reconhece que a maior ou menor aceitação frente a tal status depende de critérios implícitos e representações vigentes subjetivamente entre os servidores responsáveis pelos trâmites dos processos, fazendo com que os cientistas sociais envolvidos "...sejam tragados pelas práticas quotidianas de aparelhos de gestão de populações e espaços juridicamente diferenciados, submetidos a controle administrativo estatizado de caráter permanente" (p. 264). As sociedades indígenas, objeto de estudo em tais relatórios, são consideradas de maneira funcional e suas áreas tratadas apenas do ponto de vista utilitário.
João Pacheco assina também o capítulo final intitulado "Os instrumentos de bordo: expectativas e possibilidade de trabalho do antropólogo em laudos periciais" (p. 269). Como o anterior, esse é um texto destinado a fornecer instrumentos analíticos adequados para antropólogos, advogados e juristas integrados no roldão de processos administrativos e judiciais em torno às demandas indígenas. O autor parte do alerta sobre o conjunto demasiadamente amplo de tarefas e expectativas depositadas no fazer de antropólogos em tais processos. Questiona-se sobre a validade da perícia antropológica, já que ela parte de interesses e questões outros que não os da ciência, podendo levar ao abandono do rigor conceitual e da vigilância metodológica próprios à disciplina científica. O exercício do texto "...é o de retomar, à luz das contribuições e dos impasses da moderna pesquisa antropológica, as perguntas dirigidas aos antropólogos no âmbito de laudos periciais" (p. 271).
Enfim, os textos da coletânea Indigenismo e Territorialização trazem subsídios teóricos e empíricos fundamentais para todo aquele que se iniciam no fazer ou já estão fazendo ciência social qualificada, sem receio da possível aplicação do conhecimento produzido na crítica e no ajustamento das políticas sociais concretas. A função social do conhecimento antropológico também está plenamente realizada nessa obra e espera-se que se torne referência obrigatória aos formuladores das políticas e aos servidores das agências indigenistas, dentro e fora do Estado brasileiro. O trabalho do PETI mostra-nos como é possível consolidar uma postura teórica sem abdicar da crítica aos mecanismos oficiais de tratamento da questão indígena, atualizando o fazer antropológico como "técnica" capaz de explicitar certos limites do fazer técnico adotado pela burocracia estatal. Manter-se sem crítica frente à permanência dos poderes coloniais, legitimados no seio da administração pública e reatualizados em meio a tanto liberalismo econômico, é tomar parte do senso comum etnocêntrico e etnocidário típico da história de atuação política das elites brasileiras, supondo ser isso a propalada neutralidade científica.
Revista Horizontes Antropológicos
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