Claudia Fonseca
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil
Stephens, Sharon. Children and the politics of culture.Princeton: Princeton University Press, 1995. 232 p.
Como qualquer obra clássica, Children and the politics of culture, organizado por Sharon Stephens, tece reflexões pertinentes a debates teóricos que vão bem além do tema central. Os colaboradores deste volume trazem uma contribuição importante não somente para a pesquisa de uma categoria emocionalmente carregada, "infância", mas também para todo trabalho voltado para o papel do Estado na mediação de diferenças culturais e desigualdades políticas e econômicas. Já na sua introdução, a organizadora avisa que os cientistas sociais escrevendo nesse livro têm ume preocupação comum : explicitar o conteúdo político de um assunto que é frequentemente sentimentalizado ou visto como "natural". Assim, levam a análise além da discussão ariesiana habitual para perguntar por que, em determinados contextos, privilegiam-se certas representações da infância e não outras.
Em certos artigos, a criança serve como ponto de partida para falar sobre formas de discriminação contra um determinado grupo étnico ou nacional. Assim, por exemplo, vemos a maneira particular como crianças e adolescentes deslancharam os eventos históricos de Soweto na Africa do Sul e como foram violentamente reprimidos. Também vemos como os filhos de imigrantes turcos na Alemanha sofrem a pior forma de exclusão por não gozarem plenamente dos direitos de cidadão em nenhum dos países entre os quais transitam. E, no artigo final do livro, a organizadora mostra, através da análise de desenhos e entrevistas com crianças, como o debacle nuclear a Chernobyl acabou influenciando não somente a vida material, mas a própria identidade étnica, das populações indígenas sami quando tiveram que eliminar de seu regime alimentício a carne contaminada das renas.
Em outros artigos, enfocam-se a infância como etapa específica de preparação para a vida, com analises centradas no sistema educacional. Por exemplo, o artigo por Norma Field descreve a tremenda pressão que as crianças japonesas sofrem para alcançarem êxito escolar. Desde a comercialização de berços para estimular a inteligência de recém-nascidos (berços trocados mensalmente para "acompanhar o desenvolvimento" do bebe) até a brutalidade física dos professores e as doenças "adultas" - consequênica de estresse - de alunos da escola primária, a autora nos apresenta com argumentos convincentes. Alega que, para assegurar o sucesso de seus filhos no sistema altamente competitivo do capitalismo avançado, os japoneses contemporâneos investiram-se numa criança trabalhadora e consumidora, produzindo uma variante particular da infância "moderna" - bem afastada das noções sentimentais hegemônicas. Os artigos sobre Korea e sobre a didática paternalista das escolas na Indonésia de Suharto trazem perspectivas comparativas sobre a maneira em que um sistema educacional direciona sua pedagogia para a formação de uma personalidade adequada à proposta política e econômica do país.
Um artigo sobre a "criança interior", noção usada na terapia de adultos norte-americanos, mostra outra maneira como determinadas representações de infância são alimentadas pelo contexto particular. A autora, Marilyn Ivy, analisa discursos mediaticos sobre crianças desaparecidas e abusadas, apontando para exageros, questionando deslizes analíticos e concluindo que a inflação retórica dessas noções pode produzir efeitos negativos. Por exemplo, a hipertrofia da noção de abuso (que inclui hoje uma pletora de danos emocionais e psicológiocs - verificáveis ou não) arrisca banalizar atos manifestamente violentos; a procura adulta pela "criança interior" pode resultar "numa tentativa desesperadamente narcissista" de subsumir pais e filhos dentro de um único sujeito, deixando em segundo plano a fragilidade de uma infância temporalmente limitada. Sugere, enfim, que boa parte da histeria que circunda o abuso infantil revela um deslocamento da angustia provocada por formas mais mundanas e corriqueiras de violência contra jovens americanos do capitalismo tardio onde uma em cada cinco crianças vive na pobreza.
O artigo de Mary John sobre "os direitos da criança numa cultura de mercado liberal" aprofunda a análise das políticas estaduais quanto ao bem-estar das crianças, mostrando como as reformas no sistema educacional ingles, sob a influência de Thatcher (e, indiretamente, Reagan) têm enfatizado noções de igualdade e individualismo auto-contido (self-contained individualismo) em detrimento a considerações quanto à desigualdade e coletividade (ensembled individualismo). Através da política social, perpassa a idéia da Nova Direita de que a "família" (na sua forma a-histórica) deve ser agente socializador principal dos jovens. A criança é construída como objeto de conhecimentos especializados (da psicologia, pedagogia, etc.), deixando em segundo plano o contexto político e econômico que subjaz sua condição na sociedade. O artigo sobre Singapore, por Vivienne Wee pinta em termos ainda mais alarmantes a intervenção do Estado em assuntos familiares Numa clara analise, mostrande conexões entre a política demográfica de um país com sua moralidade política e social, ela descreve três fases na historia da pequena nação multi-étnica. Do laissez-faire colonialista, passamos pela proposta de um controle geral da natalidade da fase pós -guerra (1949-1983), até a politica assumidamente eugenista da epoca mais recente em que o recado enviado pelo primeiro ministro era: que tenham filhos os que merecem ser reproduzidos. Assim mulheres com diploma superior (em geral, de origem chinesa, como o primeiro ministro) recebem vantagens especiais a partir do terceiro filho enquanto aquelas mulheres (em geral de origem malay) sem diploma secundario recebem ajuda financeiro do governo apenas se nao tiverem mais de dois filhos.
Muitos artigos do volume mostram como a categoria de infancia nao pode ser analisada sem levar em consideracao a complexa interacao de fatores ligados a classe e etnia. Manuela Carneiro da Cunha traz o arsenal teorico resultante de pesquisas entre grupos indigenas da Amazonia para lembrar o quanto a identidade etnica e construida em termos dinamicos, atraves de interacoes concretas. Como outros autores do volume, ela coloca perguntas quanto aos termos usados na Convencao dos Direitos da Crianca onde cada jovem e garantido o direito a uma identidade cultural. Cunha pergunta se o documento nao deveria falar, antes, da "preservacao da capacidade para a producao cultural." Kathleen Hall, na sua pesquisa sobre adolescentes sikh em Londres retoma questoes levantadas por Cunha, demonstrando a maneira criativa em que esses imigrantes de segunda geracao se deslocam entre diferentes zonas morais, jogando entre as herancas sikh e britanica. Critica modelos analiticos calcados no "biculturalismo" por privilegiarem oposicoes binarias - indu-ingles, tradicional-moderno, preto-branco - que existem somente ao nivel ideologico. Propoe deixar de lada essas dicotomias, formas objetivadas de cultura, para se concentrar nos processos mais fluidas, ambiguas e plurais da producao cultural que ocorre na vida cotidiana. Recorrendo a uma perspectiva inspirada em Bourdieu, a autora segue os jovens sikh enquanto circulam entre as esferas da escola, familia, relgiao, e namoro para investigar como produzem e experimentam sua identidade nas rotinas do dia-dia.
Em suma, trata-se de um livro que desconstroi o conceito univoco de infancia, dando pistas metodologicas e teoricas de como melhor explorar esse tema em casos concretos e contextos historicos precisos. Traz textos de facil leitura, accessiveis a um publico leigo, que no entanto nao abrem mao da profundidade e rigor da pesquisa antropologica.
Revista Horizontes Antropológicos
Nenhum comentário:
Postar um comentário