terça-feira, 21 de junho de 2011

Cenas do Brasil migrante

Francisco Pereira Neto
Universidade Federal do Rio Grande do Sul* - Brasil


REIS, Rossana Rocha; SALES, Teresa (Org.). Cenas do Brasil migrante. São Paulo: Boitempo, 1999. 311 p.

O livro organizado por Rossana Reis e Teresa Sales demonstra os bons frutos alcançados pelo interesse das pesquisadoras em ampliar o debate sobre o tema da migração. Cenas do Brasil Migrante traz uma variedade de enfoques sobre os problemas que envolvem os fluxos migratórios de brasileiros para outros países, especialmente para os países que usufruem de uma estrutura econômica privilegiada em relação ao Brasil. No caso específico desta obra, o interesse dos autores é estudar esse fenômeno migratório, de grande relevância estatística nos anos 80 e 90, tratando dos casos das migrações para os Estados Unidos e para o Japão.

O livro é o resultado da contribuição de diversos autores sobre um tema que têm correspondência direta com os efeitos do processo de globalização em sociedades periféricas como o Brasil. As dificuldades econômicas que esse processo trouxe para essas regiões, aliado a uma ampliação das possibilidades de contatos com o mundo desenvolvido através do aprimoramento tecnológico dos meios de comunicação e de transporte, sedimenta a possibilidade dos brasileiros de compartilhar dos benefícios de uma vida desfrutada em países do primeiro mundo. Em se tratando das migrações para os Estados Unidos, especialmente, mas também para o Japão, fica claro que trata-se de um deslocamento de mão-de-obra para ocupar postos desqualificados na estrutura produtiva dos países receptores. Essa condição do migrante brasileiro perpassa todos os textos, mas é diretamente tratada pelo texto de Valéria Scudeler ao analisar a situação dos migrantes valadarenses no mercado de trabalho dos EUA. Assim, o conjunto dos textos desautoriza um entusiasmo acentuado sobre as possibilidades que as populações das regiões periféricas do capitalismo estão tendo com o aumento da mobilidade populacional no mundo globalizado.

Essa conclusão não é a melhor contribuição que o livro, Cenas do Brasil Migrante, traz para os debates no campo das ciências sociais. Até porque parece estar ficando cada vez mais claro quem ganha e quem perde na atual estrutura econômica mundial. O quê a obra indica de mais interessante são as possibilidades que as novas condições de mobilidade populacional abrem para os estudos sobre identidade, uma vez que o estado de desterritorialização a que os migrantes estão submetidos coloca a necessidade de se pensar o fenômeno da identidade diante de novas condições, um contexto que Gustavo Lins Ribeiro define como o da cidadania transnacional. Portanto, é um cenário com ingredientes diferenciados em relação àquele que sustentou o importante fluxo migratório de estrangeiros para o Brasil no período compreendido entre o final do século XIX e meados do século XX, sem que se pense, por outro lado, que esses processos não estejam interrelacionados. O livro contém um conjunto de artigos que tratam do fluxo de um grande contingente populacional da cidade de Governador Valadares (MG) para os EUA, que se acentua no contexto dos anos 80 e 90, mas que se refere também a uma tradição migratória de seus habitantes para aquele país, construída em função importância que a presença de uma empresa americana de mineração teve para a região quando lá esteve presente, nos anos 40. Os artigos de Gláucia de O. Assis, Weber Soares e Valéria C. Scudeler indicam essa relação. Em relação ao caso japonês, é evidente que o atual fluxo migratório, incentivado pelo contexto atual, adquire seu formato específico e suas motivações especiais em função da história da migração japonesa para o Brasil, na primeira metade do século XX. As questões que envolvem o processo de construção identitária destes migrantes brasileiros, descendentes de japoneses e com forte sentimento de pertencimento a um Japão imaginado, vão dar o tom das análises sobre o fenômeno da migração para o Japão.

As novas condições em que ocorrem os fluxos migratórios na atualidade reforçam o consenso em torno da idéia de que as identidades são produzidas pelo contexto sócio-cultural em que estão inseridos os atores sociais, que a identidade não deve ser vista com algo substancializado e fixo, como demandavam as perspectivas culturalistas que percebiam a cultura como algo demasiadamente estanque. As contribuições de Lévi-Strauss, mas especialmente de Barth e Roberto Cardoso de Oliveira para os debates sobre a identidade estão sem dúvida reafirmadas nos artigos de Cenas do Brasil Migrante. Porém, o quê me parece mais interessante nos artigos que compõem o livro é a diversidade de ângulos pelos quais esse fenômeno da migração é tratado, fato que pode se explicado pela diversidade metodológica no tratamento da questão. É verdade que esta característica do livro se expressa com muito maior força nos estudos sobre a migração para os EUA, deixando transparecer a idéia que a presença dos artigos sobre a migração para o Japão é um contraponto para acrescentar ainda mais aos esforços de pesquisa sobre a realidade da migração para os EUA. Porém, este eventual desequilíbrio no tratamento dos temas não diminui a importância dos artigos sobre o Japão no corpo da obra, uma vez que eles conseguem servir como contraponto e mostrar que esses fluxos migratórios, basicamente de mão-de-obra, seguem percursos diferenciados e se estruturam sob estruturas de significado diferentes.

No caso da migração para o Japão, por exemplo, a ênfase na consangüinidade é central na produção das tensões que perpassam a ambigüidade identitária dos migrantes que experimentam a vida no Japão e no Brasil. No caso da migração dos brasileiros para o EUA temos o estranhamento cultural com a sociedade receptora, uma sociedade estruturada para receber seus estrangeiros através da inserção no modelo do multiculturalismo, onde a legitimidade da diversidade cultural como um tema político é constantemente articulada no cotidiano do migrantes em território americano. Teresa Sales analisa o processo de adaptação dos brasileiros mostrando as dificuldades impostas pelo dilema de quem veio com um projeto de permanecer por algum tempo no país estrangeiro, juntar alguns recursos materiais através de muito trabalho, para depois retornar ao Brasil; mas que, com as dificuldades para sobreviver no Brasil e com os ganhos da inserção nesse novo espaço, começam a repensar o projeto da volta. Esse dilema não é fácil de resolver, pois estão na balança uma vida muito mais rica em termos de sociabilidade no Brasil em contraste com as condições materiais superiores encontradas no novo país. O fato do nascimento de filhos em solo americano e a superação da condição de ilegalidade parece serem determinantes para a decisão de permanecer. Teresa Sales mostra a importância que os jornais produzidos para brasileiros nos EUA, normalmente de ênfase comunitária, já indicam uma inserção mais perene de brasileiros nos EUA. É interessante notar que essa "opinião pública" brasileira nos Estados Unidos, quando fala do Brasil (o que é freqüente) procura ressaltar as notícias que reforcem um quadro negativo da situação do país, facilitando a decisão daqueles que pretendem permanecer. Na mesma linha, o artigo de Lins Ribeiro procura mostrar os diferentes cenários onde os brasileiros vão conformando uma identidade própria, importante para relacionar-se no universo do multiculturalismo americano. São bares com comidas típicas e espaço para música brasileira, a participação em desfiles carnavalescos e campeonatos de futebol (é interessante perceber a importância da vitória da copa do mundo de 1994 para os brasileiros nos EUA), os espaços em que se ritualiza uma identidade brasileira em terras americanas. Como um bom ritual, ali estão colocados para os próprios brasileiros e para a sociedade circundante o quê caracteriza um brasileiro em espaço americano, onde brasileiro deixa de ser uma definição de nacionalidade para representar o pertencimento a um grupo étnico.

Já os artigos sobre a conexão EUA-Valadares mostram como os processos migratórios trazem transfomações importantes mesmo na sociedade de origem. Esse fato pode ser dimensionado no estudo de Weber Soares sobre as mudanças no mercado imobiliário de Valadares e de suas conseqüências sociais em função das remessas dos brasileiros que trabalham nos EUA. Numa outra perspectiva o texto de Gláucia de Oliveira Assis, utilizando de forma muito criativa da correspondência dos migrantes com suas famílias no Brasil, demonstra a importância da estrutura familiar no processo de migração, funcionando como um elemento de apoio tanto emocional como material para os que decidem levar adiante seus projetos. Aqui a família parece ser uma instituição central no processo, assim como as igrejas nos EUA acabam se tornando uma referência básica para os brasileiros que se aventuram numa terra estrangeira. Cristina B. Martes mostra como o imigrante se insere em redes de sociabilidade importantíssimas através da participação nas igrejas, o quê, além de conforto emocional, propicia o acesso ao trabalho através da ajuda dos outros praticantes. Como coloca a autora, a ação das igrejas acabam por legitimar a situação dos migrantes ilegais no contexto da sociedade americana.

Sem dúvida, o livro Cenas do Brasil Migrante resgata a complexidade dos processos migratórios da atualidade, deixando claro que as novas condições de interface entre os povos nos colocam em contextos de interação mais dinâmicos, onde os referenciais culturais não podem ser vistos como substâncias essencializadas. Por outro lado, essa complexidade nos alerta sobre o equívoco de centrar demasiadamente o reconhecimento da identidade contemporânea nas estratégias de um indivíduo autônomo, que experimenta um mundo culturalmente homogêneo, sem fronteiras. As fronteiras existem, só que muito mais acessíveis às constantes negociações de seus referenciais simbólicos.


* Doutorando em Antropologia Social.

Revista Horizontes Antropológicos

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