quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Imagens do Egito antigo – um estudo de representações históricas


Renata Senna Garraffoni

Departamento de História – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes – UFPR – 80050-160 – Curitiba – PR – Brasil. E-mail: resenna93@hotmail.com


FUNARI, R. S., Imagens do Egito antigo – um estudo de representações históricas. São Paulo: Annablume/Unicamp, 2006, ISBN 9798574196083, 108 p.

Estudar o Egito antigo no Brasil parece, para muitos, algo exótico e distante. No entanto, a partir da leitura da presente obra de Raquel dos Santos Funari, somos introduzidos a um universo bastante distinto do senso comum: em um estudo minucioso do ensino do passado mais antigo para crianças, Raquel dos Santos Funari apresenta uma reflexão sobre como o Egito antigo pode ser uma ferramenta instigante para o desenvolvimento do senso crítico entre estudantes do ensino fundamental. A publicação, recentemente lançada pela Editora Annablume, é o resultado de sua dissertação de mestrado, defendida no Departamento de História da Unicamp em 2004.

Dividida em três capítulos, além da introdução e conclusão, este livro de Raquel Funari constitui-se em um texto ágil e instigante, apontando suas inquietações a partir da experiência acumulada em anos de sala de aula. Partindo de recentes discussões teóricas acerca do estudo do passado, em especial as considerações da História Cultural, Funari discute maneiras de se ensinar a História Antiga, em especial o Egito, de forma menos tradicional e mais atenta às necessidades dos alunos, sem perder de vista a importância de se criar um espírito crítico entre os jovens. Assim, procurando analisar o impacto e as mudanças que a escola proporciona ao conhecimento acerca desse período da História em específico, a autora produz uma interessante análise sobre as conotações sociais, políticas e ideológicas que interferem na formação de futuros cidadãos brasileiros.

Logo no primeiro capítulo, o leitor é introduzido à problemática que perpassa todo o livro. Discutindo como o Egito antigo está intimamente relacionado ao nosso cotidiano, Funari aponta como os estudos científicos ou as imitações de peças referentes a essa cultura cruzam o dia a dia das crianças nas mais diferentes formas. A partir desse patrimônio cultural produzido no Brasil desde o século XIX com as viagens de D. Pedro II ao Egito, a autora discute como o Egito antigo foi mitificado em diferentes tempos históricos e como leituras de ficção ou o contato com o cinema produzem um manancial de informações acumuladas pelos alunos, mesmo antes do ensino formal. O grande desafio, segundo Funari, é buscar produzir reflexões críticas, não desprezando essas heranças, mas partindo delas para produzir outras interpretações possíveis sobre o passado.

Preocupada em analisar como a Antigüidade Oriental influencia o pensar brasileiro, a autora desenvolve nos dois capítulos seguintes as etapas de suas pesquisas de campo, analisando os tipos de informações que os alunos trazem para a sala de aula. Tendo pesquisado em escolas localizadas em distintas regiões do Brasil e atingindo um público diversificado, tanto no que diz respeito à esfera religiosa dos alunos como ao poder aquisitivo de seus pais, Funari desenvolveu o trabalho por meio da aplicação de questionários abertos aos estudantes da atual quinta série do ensino fundamental. Organizou-os em dois momentos, um aplicado antes que o aluno tenha contato formal com o estudo do Egito antigo e outro posteriormente. Esta prática permitiu que os alunos, em ambos os casos, manifestassem de forma mais espontânea possível seu imaginário acerca desse período histórico, bem como as mudanças de perspectivas após o estudo formal.

As análises são apresentadas em gráficos e seus resultados comentados em detalhes. Esta forma de estruturar os resultados obtidos com a pesquisa de campo facilita o acompanhamento de suas reflexões, que não deixa escapar as diferenças sociais e de gênero implícitas às percepções dos alunos. Como as análises realizadas são diversificadas, gostaria de comentar alguns de seus aspectos que acredito serem relevantes para a compreensão do método de trabalho empregado. O procedimento adotado pela autora, de realizar questionários com questões abertas antes e depois das aulas sobre História do Egito, não só constatou uma ampliação na percepção dos alunos sobre o tema após o ensino formal, como também permitiu perceber como meninos e meninas de diferentes camadas sociais percebem o mundo de maneira distinta, posicionando-se criticamente nas fases do ensino. Um exemplo interessante são os resultados obtidos no segundo questionário com relação à interdisciplinaridade. A grande maioria dos alunos, após o ensino formal sobre o Egito em diferentes matérias, defende a interdisciplinaridade como meio importante para refletir melhor sobre o conteúdo e alguns se identificam com as posturas dos professores quando esses problematizam temas como corrupção e desigualdade social, presentes no cotidiano brasileiro. Assim, se os livros didáticos de História apresentam, muitas vezes, representações estanques do Egito antigo, as discussões com outras disciplinas e a aproximação com o cotidiano brasileiro estimula os alunos a refletirem sobre a diferença não só no passado como também no presente em que vivem.

Mesmo que tenha apresentado sucintamente os resultados obtidos, destacando somente uma das questões propostas, acredito que esses apontamentos indicam as sutilezas das análises de Raquel dos Santos Funari, pois suas reflexões ultrapassam os dados numéricos e, aos poucos, constroem ferramentas de reflexão sobre a situação dos estudantes nas salas de aulas. Se por um lado, o tratamento do conteúdo é bastante inovador, pois a partir de um estudo de caso sobre o ensino de História antiga, a autora dialoga com as recentes discussões no campo teórico da historiografia, problematizando o trabalho do professor em sala de aula, por outro, a metodologia empregada nos questionários aplicados ajuda a mapear as principais percepções dos alunos. Tal procedimento acaba criando um espaço para refletir sobre os papéis sociais e as percepções de feminino e masculino que são construídos em sala de aula, influenciando na formação de futuros cidadãos. Por essas razões, o presente livro nos leva a pensar sobre o papel do professor em sala de aula, sua importância na construção do conhecimento sobre o passado e na formação de visões de mundo no presente, tornando-se uma referência importante tanto para educadores, que buscam uma ferramenta crítica e atualizada sobre o ensino de História, como para aqueles que desejam conhecer o Egito sob novos olhares.

Revista Historia - UNESP

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