quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Operários sem patrões. Os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras


Silvia Regina Ferraz Petersen1


SILVA, F. T. da. Operários sem patrões. Os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2003. 480p.

A história social do trabalho, campo que uma geração de historiadores formados na UNICAMP tem desenvolvido de modo tão rigoroso quanto inovador, tem seu repertório enriquecido com a publicação de Operários sem patrões. Os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. É uma obra exemplar tanto pela originalidade da reflexão sobre o movimento operário santista - permitindo, além disso, conexões com experiências históricas mais amplas no tempo e no espaço -, como pelo diálogo que empreende, por meio de comparações e argumentos muito bem fundamentados, com algumas interpretações correntes na história destes trabalhadores, entre elas a persistente imagem "de uma cidade em que a classe operária teria traçado uma trajetória política e organizativa radical, por haver adotado de um modo geral e por muito tempo, ideologia de férreo combate ao capitalismo" (p. 434).

O livro de Fernando Teixeira da Silva, originalmente tese de doutorado em História da UNICAMP, dá continuidade a sua trajetória de investigação deste tema e de questões da história social do trabalho, da qual já resultou, além de vários artigos, a publicação de A carga e a culpa. Os operários das docas de Santos: direitos e cultura de solidariedade, 1937-1968.

Assim, com um sólido descortino das peculiaridades da experiência dos trabalhadores portuários de Santos e dos temas clássicos da história social do trabalho, aliados a uma impressionante incursão em fontes inéditas (entre as quais os prontuários do DEOPS), em acervos de difícil acesso (como a documentação da Internacional Comunista de Moscou), além de literalmente "varrer" as fontes bibliográficas, hemerográficas e documentais de toda ordem, indicadas em detalhes nas últimas setenta e duas páginas do livro, Teixeira da Silva dedicou-se a uma investigação de grande envergadura sobre a cidade-porto de Santos no também até agora inexplorado período entreguerras.

Ao explicar as peculiaridades do centro portuário que foi objeto de seu trabalho, salienta que, no caso de Santos, porto e cidade formaram um binômio indivisível e os vários atores sociais que emergem nesse espaço e as conexões nacionais, regionais e internacionais decorrentes da condição de porto, fazem com que Santos se torne cenário de uma complexa logística política e empresarial e que a experiência dos seus trabalhadores incida não só no movimento operário local como na história do país. "Por isso também não poderia restringir-se a análise a um grupo específico de trabalhadores sem conexão com o universo mais amplo de categorias operárias, empresas, diferentes formas de gestão da organização do trabalho, políticos e instituições públicas cujos interesses estavam estreitamente associados aos destinos dos negócios portuários" (p.25).

Estas observações dão a pauta do minucioso percurso analítico sobre as conexões dos diferentes atores sociais e que constitui, por assim dizer, a base a partir da qual procedem as questões que o livro trabalha.

É por intermédio desta malha de relações e enfrentamentos que Teixeira da Silva desenvolve a história dos trabalhadores de Santos no período entreguerras, analisando desafios e impasses que vão do controle do trabalho pelos operários às novas formas de relacionamento com os empresários e o Estado, da preponderância dos libertários ao sindicalismo reformista e oficial e à influência do PCB. Investigar estas inter-relações ao longo do período foi uma das estratégias bem sucedidas do autor para produzir um novo entendimento sobre as bases sociais que sustentaram as diversas orientações ideológicas e práticas sindicais dos trabalhadores santistas, bem como as transformações, continuidades e rupturas então experimentadas.

Mas não se imagine - talvez induzido pelas simplificações inevitáveis desta resenha - que o propósito do livro se esgote na reconstrução minuciosa deste processo complexo de inter-relações (e cuja densidade da análise já recomendaria sua publicação como livro), pois o trabalho tem um eixo articulador que o percorre e que é fundamental não só por estabelecer sua identidade de abordagem, como pelos serviços que presta ao autor para argumentar as novas questões que seu trabalho coloca e para interpelar, em base de rigorosa pesquisa empírica, algumas interpretações que foram se estabelecendo sobre a história operária santista.

Este eixo é o "encontro da cultura do trabalho com o movimento operário" ou seja, o encontro entre valores que legitimavam pertencimento social e identidade (como a valentia e o orgulho de serem operários "sem patrões") e o estabelecimento de alteralidades, (principalmente os adversários no conflito de classes), com o movimento operário, suas ações e entidades coletivas, suas diferentes orientações político-ideológicas, expressas nas greves, disputas eleitorais, conflitos ou concordâncias com autoridades e instituições públicas. O referido eixo também caracteriza as duas grandes divisões do livro e serve de articulação entre seus dez capítulos, cada um deles acompanhado de preciosas notas que encaminham o leitor a outras tantas informações e comentários que potencializam o sentido e o conteúdo do texto principal.

É certo que um trabalho deste porte, - quase quinhentas páginas - que se desdobra em uma multiplicidade de temas cuja investigação é imprescindível aos propósitos do autor, enfrenta muitos obstáculos para manter a tona seu eixo de análise, que certamente seria muito mais visível em um trabalho com menor escala temática e cronológica. De qualquer forma, essa complexa arquitetura analítica produziu um resultado notável tanto pela forma de abordagem do tema, como pelo fato de que questões que examina no entreguerras sobreviveram no tempo.

O tema recorrente na primeira parte, denominada "O controle operário - trabalhadores sem patrões", é luta dos "artistas" da construção civil e portuários, categorias mais expressivas no movimento operário de Santos, pelo controle do trabalho, conceito com significado que abrange não apenas a luta dos trabalhadores para ampliar sua margem intervenção na organização do trabalho e resistência às imposições empresariais (a conquista do closed shop, inclusive), como o controle sobre suas próprias vidas, passando assim pelos valores de uma cultura do trabalho como foi antes caracterizada, e que permitem um entendimento mais matizado das estratégias destas categorias e de suas transformações no âmbito da ação direta. As características da construção civil, por um lado e do trabalho portuário, por outro, fazem com que o sonho libertário de uma sociedade de "trabalhadores sem patrões" possa ser associado à luta dessas categorias.

Os quatro capítulos desta parte explicam as condições em que se constituem e depois declinam as bases de poder dos operários da construção civil, que já em 1909 conquistaram a closed shop (controle sindical sobre o mercado de trabalho), embora necessitassem de mobilização constante por sua manutenção. Os efeitos da Guerra de 1914-1918 oferecem oportunidade para que alguns construtores-empresários tratem de redefinir as condições de trabalho, para o que é central a atuação de Roberto Simonsen. Também o reconhecimento profissional de arquitetos e engenheiros contribuiu para a perda de centralidade dos "artistas" da construção, base do sindicalismo no movimento operário de Santos, papel que será posteriormente desempenhado pelos trabalhadores da estiva em relação ao comunismo. Assim, em seqüência, o autor examina as origens da atuação dos trabalhadores da estiva e de suas lutas pelo controle do processo e do mercado de trabalho. As condições do trabalho no porto fizeram com que esta reivindicação, iniciada no final dos anos 10, fosse alcançada parcialmente nos anos 20, conseguindo eles o domínio completo do direito da contratação da força de trabalho na década seguinte.

Na impossibilidade de comentar cada capítulo desta primeira parte, quero destacar o capítulo 3, "Estado de natureza e cultura operária", pelo diálogo crítico que o autor estabelece com algumas correntes de interpretação sobre os elementos integrativos ou desagregadores da experiência social dos trabalhadores portuários. Em algumas, é destacado seu caráter de comunidade fechada, coesa social e culturalmente, como na teoria das "masas ocupacionais isoladas". Em outras leituras, a instabilidade do emprego, a heterogeneidade étnica, as violentas disputas pelas oportunidades de trabalho e os vínculos pessoais estabelecidos por relações clientelísticas desenham um quadro de diversidade, de ausência de uma cultura de classe e de despolitização. Um dos méritos do livro de Teixeira da Silva é ter trabalhado com uma outra perspectiva, de que "se a natureza do trabalho portuário permitia a formação de fortes laços de solidariedade entre os trabalhadores, por outro lado possibilitava também a emergência de conflitos internos à categoria" (p. 145), possibilidade confirmada por uma cuidadosa pesquisa empírica e por comparações efetuadas tanto dentro da própria experiência dos trabalhadores santistas como em relação aos portos de Marselha, São Francisco, Liverpool, Hamburgo e Buenos Aires. No caso de Santos, o emprego ocasional é o que vai mobilizar tanto o "estado de natureza", ou seja o clientelismo ou a violenta competição, às vezes sangrenta, no interior da categoria, como o "processo civilizatório da estiva", a democratização no acesso e gerência do trabalho, constituindo o fator em torno do qual os trabalhadores se uniram para fazer frente às tentativas de eliminar o controle operário.

A segunda parte do livro, desenvolvida em seis capítulos, tem o título "Da Barcelona à Moscou brasileira", imagem significativa para representar o percurso não-linear e com muitas interocorrências, que vai do ideal revolucionário do sindicalismo de ação direta, passando pela a sindicalização oficial no pós-30, até a consolidação da militância comunista, que permitiu chamar Santos de "Porto vermelho"

Retoma aí o tema da composição profissional dos trabalhadores e do peso dos "artistas" e dos portuários para analisar então o declínio da influência do sindicalismo de ação direta sobre os operários de Santos, que adentra os anos 20 profundamente debilitado.

Não fazendo concessão às leituras simplificadoras, considera que esta perda de influência não pode ser atribuída de forma mecânica a um afastamento entre lideranças e bases em nome da manutenção, por aquelas, de um suposto projeto revolucionário, ou a cisões entre anarquistas, que teriam possibilitado o avanço dos comunistas, nem ser explicada pela tese da incompletude da ideologia libertária, por não aceitar a instância político-partidária, o que, como observa o autor, "significaria exigir dos anarquistas que eles fossem ou fizessem exatamente o que se recusavam ser ou fazer: aderir ao jogo político e criar organizações partidárias". Ao contrário, pretendeu demonstrar que, para muitos trabalhadores de Santos, "talvez o sindicalismo defendido por anarquistas e sindicalistas tivesse deixado de ser a forma mais eficaz de luta e organização para responder a seus interesses", o que se explica muito mais "por um complexo de fatores e por uma longa conjuntura histórica que impôs enormes desafios ao sindicalismo de ação direta" (p. 431), entre outros a repressão policial, xenofobia nacionalista, esquemas empresariais de concessão de benefícios sociais, alterações na organização e funcionamento da indústria da construção, fortalecimento do sindicalismo reformista e ampliação da linguagem jurídica sobre a necessidade de leis trabalhistas.

Sempre na contingência de fazer escolhas, também optei nessa segunda parte por destacar a abordagem que Teixeira da Silva realiza no capítulo 7, "Questão de polícia, caso de justiça", pois ao examinar os desdobramentos legais da repressão policial sobre as greves e organizações dos trabalhadores, o faz não apenas da ótica dos mecanismos jurídicos que legitimaram o "direito da força" (percorrendo a "via-crúcis" da violência física, xenofobia, acusações, processos, condenações, habeas-corpus, cárceres, exílios e fugas), mas avança por outro ângulo, bem mais sutil: alguns "casos de polícia" que se tornaram questões jurídicas e, contrariando a intenção inicial, tiveram um desfecho em favor dos trabalhadores e também a utilização, para fins inversos, dos mesmos instrumentos legais e institucionais, esgrimidos então por jornalistas, políticos e advogados que, como paladinos, tratavam da defesa dos trabalhadores e não raro obtinham seu voto.

Teixeira da Silva, a partir do capítulo 8, analisa os novos desafios e ensaios que trabalhadores vão experimentar no relacionamento com empresários e governo no decorrer dos anos 20, conjuntamente ao declínio do sindicalismo de ação direta. Nesse terreno, as raízes da corrente reformista se desenvolvem. Estes anos, onde acabaram as esperanças nutridas pelos trabalhadores no imediato pós-guerra, culminaram com a crise do desemprego a partir de 1929 e a eclosão da Revolução de 30.

Sem desconhecer as expectativas que as mudanças políticas criaram nos trabalhadores, a análise não perde de vista como as condições próprias do movimento sindical deixaram marcas nas relações com o governo Vargas e recusa assim a interpretação que reduz este processo à cooptação, desconsiderando o papel ativo dos trabalhadores e sindicatos na constituição do corporativismo oficial. Nesta mesma linha de raciocínio, analisa as contradições e confluências que a luta pela implementação da closed shop experimentou no quadro do sindicalismo oficial.

A fragilidade dos experimentos do governo quanto à organização dos trabalhadores e aos direitos historicamente reivindicados, abriram espaço para a presença comunista em Santos, mas a legitimidade que estes militantes buscavam enfrentou muitas dificuldades, como as provenientes do radicalismo isolacionista do partido. Foi depois de uma reavaliação de sua trajetória e a proposição de uma política de alianças que o PCB conseguiu aproximar-se mais dos trabalhadores, acabando por exercer uma influência poderosa na maior parte das categorias e sindicatos, especialmente os estivadores. Na parte final, Teixeira da Silva nos remete então a este percurso que leva ao reconhecimento de Santos como a "Moscou brasileira".

Tal como fizera em relação às teses da "incompletude" do anarquismo ou da "cooptação" dos trabalhadores pelo governo Vargas, o Autor recusa aceitar que a influência do PCB se explique exclusivamente por seus objetivos na esfera da grande política e retoma uma vez mais a abordagem do encontro entre cultura do trabalho e movimento operário, agora em relação aos estivadores. Por meio dela, reavalia a influência gradativa do PCB: não foi efeito automático de seu discurso de transformações sociais, do aproveitamento de oportunidades abertas pela legislação no pós-30, da sua eficiência organizativa e mobilizadora ou da instrumentalização dos trabalhadores para "fins políticos". A crescente influência dos militantes do PCB em uma categoria onde tinham pouca penetração se deu na medida em foram eles os que melhor representaram a bandeira da democratização da estiva, ganhando o apoio dos operários que sofriam, por parte de grupos no sindicato, contínua e violenta descriminação na disputa pelas oportunidades de trabalho na estiva de Santos.

Assim, novamente são os valores contraditórios da cultura dos estivadores, "operários sem patrões" e "patrões operários" que o Autor convoca para compor o entendimento dessa transformação política, cujos efeitos, do ponto de vista de práticas integrativas fundamentais para a construção de um ethos de solidariedade, "sobreviveram ao regime militar e aos ventos liberais que, a todo transe, pretendem desregulamentar o setor sob o argumento de que, no mundo capitalista não passa de corporativo populismo sustentar a antiga organização de uma categoria que insiste em viver sem patrões" (p. 437).

No final da leitura desta obra, escrita com tanto rigor, sensibilidade e propriedade analítica, me atrevo concluir a resenha também com uma metáfora, desta vez não sobre Santos como o "porto vermelho", mas sobre o próprio livro: Operários sem patrões é, decididamente, um "porto seguro" para o conhecimento histórico.


NOTA

1 Departamento de História – UFRGS – CEP 91501-900 – Porto Alegre – RS.

Revista Historia - Unesp

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