segunda-feira, 9 de março de 2009

MARGENS DE UMA ONDA


Navegador do sonho e da forma

Alberto Martins
DUDA MACHADO

a obra de Duda Machado, poética do flagrante e do conciso, mas também da indagação existencial e da atenção cerrada aos problemas da linguagem, vem desenhando um percurso que, no que tem de discreto, terá de consistente. Discrição, entenda-se aqui, como qualidade afim ao discernimento. Afinal, num "mundo em cacos" -para usar a expressão de Luiz Costa Lima na orelha do último livro de Duda-, discernir pode ser operação de máxima importância, quando não de sobrevivência mesmo da cultura.
No caso da poesia, o recurso a um certo anonimato e enclausuramento da linguagem poética acabou sendo -sobretudo a partir da década de 70, se não por todos, certamente por um número bastante significativo de poetas- um modo paradoxal de resistir à indigência a que se via relegada não apenas a própria literatura, mas, talvez, a noção mesma de realidade. O anonimato seria então um modo de se aproximar da natureza silenciosa (ou silenciada?) das coisas, dos gestos e dos objetos, ao mesmo tempo em que garantiria o acesso à universalidade da experiência, "desimpedida" aqui de um eu que tudo nomeia e falseia. O enclausuramento apareceria, por sua vez, como um modo de integridade possível em tempos particularmente adversos.
A eficácia de tal estratégia, no entanto, é sempre ambivalente, já que, muitas vezes, o poema acaba contaminado pela própria indigência que queria combater: sendo anônimo, não é de ninguém; enclausurado, não vai além de seu círculo. E, tal como numa guerra de trincheiras, aí ninguém mais levanta a cabeça, nem sai do lugar.
Boa parte da alegria que o leitor encontrará em "Margem de Uma Onda" -a mais recente coletânea de Duda Machado- advém precisamente da sensação de abrangência, por parte de um poeta que, fiel a seu trajeto de rigor e condensação, avança para um sentido mais amplo de captação do eu, do tempo e da realidade. Sem falsear a condição lírica de sujeito fragmentado, todo o livro denota um nítido desejo de superação daquilo que é forma estanque ou mero fragmento e uma tentativa de abarcar o real em planos e sequências cada vez mais articulados.
Tal movimento, no entanto, não é de agora. Ao reunir seus dois livros anteriores -"Zil" (1977) e "Um Outro" (1989)- sob o título duplamente significativo de "Crescente" (1990), o autor dava uma pista segura do rumo em que sua produção avançaria. Assim, se no seu livro de estréia, a espacialização e suas lacunas constituíam um dado marcante da leitura, de lá para cá nota-se, progressivamente, a opção por uma sintaxe que não se contenta com a apresentação explosiva, desordenada, dos fenômenos, mas que procura apreendê-los mediante vínculos de sentido, relações temporais, cláusulas de subordinação e outros procedimentos.
A chave dessa transformação parece estar na própria experiência do eu lírico. Como se, ao reconhecer a matéria central de sua poesia -a subjetividade descontínua e fragmentária- como um campo próprio de operação do real, o poeta se visse instado a levar o problema a um outro nível de enfrentamento. Este nível é o tempo. Daí que não seja exagero afirmar que, no percurso de Duda Machado, a espacialização vem cedendo enfaticamente lugar à temporalidade. Leia-se um poema como "Duração da Paisagem", que é quase uma declaração de arte poética (leia poema nesta página).
Mas, para que esse desejo de duração se efetue, é preciso que o poema encontre seu equivalente no plano da forma. Assim, enquanto o eu esgarçado, sujeito à descontinuidade das coisas, tem no discurso irônico, elíptico, sua quase que única possibilidade formal, os poemas de "Margem de Uma Onda" aspiram igualmente a "uma perspectiva/ que domine também a ironia" (in "Vida Nova"). Daí a busca, ao longo de todo o livro, de uma forma que abranja tanto a fina veia analítica quanto um desejo fluido de encantamento e metamorfose.
Em "Fragmentos para Novalis", o poeta dirá mesmo "Navegador da forma enquanto sonho/ navegador do sonho enquanto forma", como a saudar a possibilidade de uma poética que, sendo rigorosa e substantiva, dê conta ainda assim do movediço e do informe. O fato é que, com isso, a expressão literária se adensa e a visão de mundo ganha em complexidade e espessura. Em consequência, os poemas já podem ultrapassar a posição de defesa, diminuta e reativa, para readquirir um sentido de sondagem do possível, de todos os possíveis -o que está, desde o princípio, na raiz da atividade poética. E é exatamente essa operação -precisa e necessária- que torna tão bem-vinda a coletânea de Duda Machado.
Alberto Martins é poeta e artista plástico.

Folha de São Paulo


Duração da paisagem
MARGENS DE UMA ONDA
DUDA MACHADO

Esquece a música.
Antes sustentar a tensão
A ponto de contemplá-la
dentro ainda
de sua permanência.
A partir daí
-o mundo intacto-
vai-se abrindo um espaço,
paisagem não-preenchida,
habitada somente
por uma duração
para a qual acordamos
e, na qual, às vezes,
podemos existir.
Duda Machado

Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário