segunda-feira, 9 de março de 2009

POESIA - NOVOLUME


Entre o humor e a ironia
Bento Prado Jr.
RUBENS RODRIGUES TORRES FILHO

O périplo começa onde finda,/ vôo elíptico de pomba/ em volta ao Mundo,/ ovo de Colombo" Bento Prado Jr., "A Revolução da Resenha"
Com a ajuda de Bergson, fixemos dois pontos cardeais para melhor entrarmos em nossa matéria: "A mais geral dessas oposições será talvez aquela entre o real e o ideal. (...) Ora enunciaremos o que deveria ser, fingindo crer que é precisamente o que é: nisso consiste a 'ironia'. Ora, ao contrário, descreveremos minuciosa e meticulosamente o que é, fingindo crer que é bem isso que as coisas deveriam ser: assim procede amiúde o 'humor' "("Le Rire", in "Oeuvres", Paris, PUF, pág. 447). Por que definiriam esses pontos o horizonte adequado à leitura de "Novolume"? É o que tentaremos mostrar ao longo desta resenha.
É principalmente a partir de 1981, com "O Vôo Circunflexo", que a crítica começou a perceber toda a importância da obra poética de Rubens Rodrigues Torres Filho. De lá para cá, entre outros, Alfredo Bosi, Benedito Nunes e (hoje, a propósito de "Novolume") Arthur Nestrovski empenharam-se em identificar a profunda originalidade do estilo dessa grande poesia.
Agora, com esta publicação da obra completa (que, aliás, lança retrospectivamente um novo lume sobre cada um dos poemas que o compõem) (1), é chegado o momento de explicar por que razão quase todos nós reconhecemos, no autor, um dos maiores poetas brasileiros. Não é nossa pretensão, é claro, fazê-lo nos limites desta resenha. Mais modestamente, queremos mostrar que a pista predominantemente perseguida com esse objetivo, sem deixar de ser boa, não é talvez a única; acenar, apenas, para uma linha complementar de leitura, talvez indispensável.
Numa palavra, perguntamo-nos se basta, para identificar a originalidade dessa poesia, insistir na duplicidade do autor, isto é, pensar Rubens Torres como poeta e filósofo. É aliás o próprio poeta que exprime alguma resistência a essa forma, no entanto, espontânea ou natural, de identificação: alguém já cogitou, por exemplo, diz ele algures, analisar a obra de Jorge de Lima à luz da dupla condição do autor, poeta e médico? E, de fato, visar a complexidade de sua poesia em conexão com o rigor conceitual de suas análises dos sistemas filosóficos, não seria isso uma forma de "reduzir" a poesia à filosofia? É a essa redução virtual que eventualmente o autor resiste, insistindo na diferença essencial entre essas duas formas de escrita que pratica. Talvez devêssemos, para desfazer algum equívoco, dar nomes diferentes ao filósofo e ao poeta; por exemplo, Rubens R. Torres Fº e R. Rodrigues T. Filho.
Mas é preciso andar devagar com o andor. Pois é inegável que algo da filosofia parece impregnar sua poesia. De um lado, nomes de filósofos (Tales, Protágoras, Pascal) estão presentes em seus versos e alguns filósofos (como Nietzsche e mesmo Fichte) constam entre os poetas traduzidos no final do volume. Acresce que seu estilo peculiar pode ser caracterizado como aquele da "reflexão interminável", da reflexão que jamais atinge sua "Befriedigung", satisfação, pacificação ou repouso final, que se exprime e brilha apenas no instante que corta a continuidade do tempo, especialmente na forma do epigrama, do aforismo ou do fragmento (2) (lembremos os comentários de Rubens sobre a teoria do fragmento em Schlegel e Novalis -ou do "ouriço" de Schlegel; lembremos ainda a frase de Wittgenstein, que também cultivava o aforismo e cultuava o romantismo alemão: "Toda uma névoa de metafísica concentrada numa gota de gramática"; ou ainda os versos do próprio Rubens: "Repara: o cílio, silente. A descrição/ da lágrima. Lágrimas/ da gramática", "Novolume", pág. 50).
Reflexão interminável que assume a dupla forma da reflexão objetiva da linguagem (o vai-e-vem entre a letra e o espírito, o significante e o significado, o novelo enrolado pelo lado de dentro da semântica) e da reflexão subjetiva (do sujeito ou da alma, do olho que se olha, o abismo sem fundo da subjetividade). Toda uma temática e uma imagética a que esse estilo está essencialmente ligado e que remete a uma imagética e a uma temática que nasceram com o idealismo e o romantismo alemães, embora sobrevivam até hoje de diversas maneiras; o privilégio do Príncipe do negativo, que vislumbrou o oco do Mundo e a vacuidade do Eu. Como no poema "Cena": "Docemente, perigosamente, o frio toma conta dos meninos de mentira que brincavam lancinantes à beira-nada" ("Novolume", pág. 54).
Certamente é essencial essa referência ao romantismo alemão, como ratificava Benedito Nunes na "orelha" de "Poros". Ali, via como essencial uma "corrente de meditação descontínua sobre as transações da linguagem com a experiência, que vai traçando a micrografia do ver ao dizer, do sentir à palavra poética; repete-se aqui, de outra maneira, enquanto 'concordia discors', 'palavras ágeis' com 'fatos ariscos', a cisão entre forma e conteúdo da ironia romântica, cuja incidência a crítica apontava em 'O Vôo Circunflexo'±". Articulação e corte, a um só tempo, entre fenomenologia e semântica, significado e significante, que se exprime exemplarmente no próprio título "Vôo Circunflexo".
Notemos a consistência perfeitamente irônica entre forma e conteúdo dessa exploração da cisão essencial entre forma e conteúdo, detendo-nos nessa expressão. Note o leitor que, nela, o adjetivo espelha a "forma" do substantivo (não é, também a letra "V", além do mais, um assento circunflexo invertido?), mas ao mesmo tempo denuncia o que há de irrisório no espelhamento do sentido e na materialidade da letra. E, mais, que, na sua materialidade, a palavra "vôo" pode abrir uma "cadeia significante" (vá lá esse deslize ou lapso lacaniano) (3) -palavra puxa palavra- que leva a "ovo", "oco", "olho", "vão", que vai ao "eco" (4), enfim, que, sempre ecoa, na superfície do verso, o seu anverso (ou vice-versa). Reflexão infinita, vacuidade do sujeito, transparência do "olho que se olha" (5), vazio do ovo do mundo. É como um fio, ao mesmo tempo formal e material que atravessa o livro de ponta a ponta. Vejamos: "E que espaços de silêncio/ vão nos silêncios que chovo/ se me comovo não vendo/ no ovo o vôo do novo" (pág. 123); "A ti, furo no escuro, caixa/ de ressonâncias, palavra,/ te digo: -Se sei, escuto,/ onde está o eco, teu oco:/ o fato astuto" (pág. 124); "ave-oovo/ ave-ovoo/ oovovoa" (pág. 32).
Mas, até agora, só insistimos no primeiro dos anunciados pontos cardeais, a arqui-reconhecida vinculação ao "nihilirismo", à "lógica" (6) ou à "logologia" do romantismo alemão. Onde ficou a idéia de "humor" (7)? Ora, o que é preciso sublinhar é que, se Rubens se impregnou de poesia e filosofia alemãs (a ponto de dominar essa matéria com a maestria de grande filólogo), ele o fez a partir de uma cultura anterior. Aqui, também, não vou dizer muita novidade: a poesia de Rubens entronca no momento mais alto da poesia brasileira. Falo do modernismo em sua fase madura e, por assim dizer, "neoclássica". Com João Cabral de Melo Neto (ver, nesta página, o "Elogio do Oco") e, sobretudo com Carlos Drummond de Andrade, em cujas obras semântica e fenomenologia se atravessam de maneira crucial, mas diferente da maneira alemã: real e ideal aqui articulam-se de modo diferente. Nessa poesia, se chegamos à metafísica, nós o fazemos de modo mais terrestre. Particularmente com Drummond, do poema-piada da primeira fase, chegamos a uma poesia de estilo elevado, onde todavia o humor não está ausente (8). Nada semelhante à ironia romântica que, na Alemanha, culmina na pacificação do misticismo e do catolicismo, na mão de Deus.
Tudo se passa como se, na poesia de Rubens, ironia e humor se entrelaçassem num contínuo e inquieto movimento de báscula ("Unruhigkeit", tortura, mas também realismo), a ironia disciplinada pelo humor e o humor ironizado, inventando um estilo inteiramente novo. Para além da alternativa entre nacionalismo e cosmopolitismo vanguardista, temos uma literatura que foi capaz de interiorizar (o bom canibalismo) temas e formas da literatura européia, sem perder seu caráter nacional. Causalidade interna, diria, talvez, Antonio Candido; um pouco como se pudéssemos aplicar a esta relação entre o português e o alemão as reflexões de Hõlderlin sobre a tradução grego-alemão. Ou revolução copernicana, como poderia dizer alguém que tivesse lido uma nota curiosa que Rubens acrescentou a sua tese sobre Fichte: "A conotação astronômica (do deslocamento dos pontos de vista efetuado pela Doutrina da Ciência; nota de B.±P.±Jr.), aqui, permite compreender a singular soberania com que Machado de Assis pode deslocar-se, de um provinciano Rio de Janeiro, para o 'ponto de vista de Sirius'; mas também, sem sair de nossa literatura, pode-se avaliar o quanto isto se paga em desenraizamento: onde "situar' a 'terceira margem do rio'?" (9). Só podemos situá-la no limite entre a ironia e o humor, numa errância universal, entre o Brasil e a Alemanha, o Eu e o Mundo, nessa tensão interna ou dialética entre o interno e o externo que constitui o coração do "Novolume".
Notas:
1. Quando mais não seja, tornando clara a perfeita continuidade do estilo através dos anos, que não permite falar de "fases" ou de uma "evolução" da obra, como bem observa Aguinaldo J. Gonçalves na "orelha" de "Novolume". Lembremos, ainda, que o livro ordena os poemas do presente para o passado, ou de rabo a cabo, o tempo virado no avesso, como poderia dizer o poeta.
2. Cf. Novalis - "Pólen", São Paulo, Iluminuras (Tradução, apresentação e notas de Rubens R. Torres Filho).
3. Talvez aqui justificado, já que parece ser sugerido que só vemos de modo novo o velho e mesmo mundo, quando treme a semântica, quando o sentido deslisa sobre a materialidade do significante, dissolvendo vínculos sedimentados entre o espírito e a letra, que impediam a revolução do olhar.
4. Mas, também, "ego", "ergo", como na pág. 61. Poderíamos chegar até "egg", não? Note o leitor a bela capa de Waltercio Caldas.
5. Lembre-se o leitor que o título do primeiro capítulo do livro de Rubens sobre Fichte ("O Espírito e a Letra") era muito exatamente "A Claridade do Olho" e trazia uma epígrafe tomada de empréstimo a Moritz: "E assim ele errava, sem apoio e sem guia, pelos abismos da metafísica".
6. Lembrar a abertura do primeiro livro, "A Investigação do Olhar": "A poesia, esforço de linguagem, será primeiramente 'lógica'±" ("Novolume", pág. 156).
7. Com efeito se a palavra humor comparece, e muito raramente, na poética do romantismo, como é o caso de Jean Paul Richter, ela não significa nada de diferente do que nesse horizonte é pensado como ironia. Cf. R. Wellek, "História da Crítica Moderna", vol. 2, Ed. Herder, págs. 90-98. É só justamente na crítica que Kierkegaard, na esteira de Hegel, endereça ao romantismo que, a meu conhecimento, o conceito de humor será definido na sua oposição ao conceito de ironia.
8. O poeta que reconhece sua precariedade (alimentado de Ronsard, Petrarca, Camões e capim, longe da fulana inacessível), a imensidão do mundo real e a solidez do fimito.
9. "O Espírito e a Letra", Ática, págs. 64-5.
Bento Prado Jr. é professor da Universidade Federal de São Carlos.

Folha de São Paulo

Elogio do oco

O oco desfaz as dúvidas
quanto ao vazio do que é:
ninguém fica sem recado.
Todos sabemos direito
o que importa a seu respeito.
O oco é fácil e honesto.
Não digo o mesmo do resto.
Rubens Rodrigues Torres Filho

Folha de São Paulo

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