segunda-feira, 9 de março de 2009

TROVAR CLARO


Dois gumes

Ana Paula Pacheco
PAULO HENRIQUE BRITTO
O novo livro de Paulo Henriques Britto traz surpresa e algum desconcerto. A surpresa da insistência na metalinguagem, justamente quando os poetas brasileiros contemporâneos a abandonam, e da dimensão que ganha em certos momentos do livro, por vir atada aos confrontos da subjetividade. O desconcerto que a boa poesia de um sujeito armado de crítica até os dentes pode provocar no leitor.
Como já vinha acontecendo em seu trajeto, a poesia de Paulo Henriques afasta-se tanto das já ingênuas opções pela inovação formal como da linguagem considerada poética por excelência. O poeta parece colocar-se no fio tênue do equilibrista: se escolhe a rítmica da linguagem muito próxima da fala (na linha da geração de 70), ela vem disposta, nesse livro mais do que nunca, em estrofes regulares e versos via de regra metrificados, criando uma tensão por vezes surpreendente.
Como de costume, a opção é pela poesia intimista, reflexiva. Os volteios do eu vêm agora conjugados ao questionamento do sujeito na cena lírica e do próprio fazer poético. Em contrapartida, a evidência de um olhar que vaza a máscara do fingidor dá à metalinguagem uma dimensão de voz que fala de um mundo, resguardando-a do limite de ser não mais que proposta de ingredientes para a boa poesia.
Mas não é só a metalinguagem que esconde/desvela esse sujeito. Se falar do eu o tempo todo é pegajoso e inconveniente, o poeta se objetiva, fala das coisas e do outro. As coisas, entretanto, são as que lhe dizem respeito e o outro não é um terceiro, mas segunda pessoa, mais propriamente um espelho (e, nesse caso, somos nós, leitores, a imagem predileta). O que se vê muitas vezes é alguém que se desdobra para falar de si como um outro. Lembra, nesse sentido, um impostor -persona poética- que tem a atitude irônica de tratar do eu com distanciamento, buscando eliminá-lo enquanto assunto, sem, no entanto, deixar de falar sobre ele. Torna-se então patente a luta por submergir o eu no que tem de sentimentalismo, salvando, no entanto, a consciência particular que tem do mundo e de sua estada nele. Sob o crivo de uma razão crítica que tem voz marcada nos poemas, o sujeito está presente mesmo quando tenta lançar-se em abismo.
"Um Pouco de Strauss" é exemplar dessa luta, aqui mudada em conselho debochado ao leitor (leia o poema nesta página). "História Natural", por seu turno, alarga a visão do problema, mostrando que a dissolução do eu não é uma verdade programática. A vontade de objetivar-se nas coisas não chega nunca a roçar a credulidade no artifício poético. O sujeito retorna, sempre à espreita por detrás das coisas e do artefato literário e, a despeito do burburinho monótono da moda, "é preciso dizer-se" ("mesmo/ que a moda agora mande (e a moda manda,/ e muito/ acreditar que o eu é o esmo,/ o virtual, o quase extinto...").
Mas a tensão nunca se resolve: o sujeito também tem consciência do paradoxo que o envolve -a moda diz que o eu é "o panda/ desgracioso da história do Ocidente" e, ainda que não a siga, ele reconhece "o ardor do bambu nas entranhas", a sobrevida de panda acuado pela ordem que manda aniquilá-lo. Recusar a moda é gesto duro, já que a dissolução do sujeito é também condição histórica: na multidão somos "como dois e cinco e sete", "como seis e dois e zero"; "Não fale. Não seja. Não tente", diz o poema "Falange".
Em torno ainda do eu, imagens das noites em claro -das "exumações da insônia" e da relação erótica com a noite, "enorme prostituta complacente"-, o tema da memória como seletividade postiça, vestígio falso do irrecuperável (a notável marca do silêncio é um telefone, "gordo como um rei"), da morte, da dor, sempre possível, do amor resistente e das cópulas que formigam no veraneio, única sobra de um eldorado modorrento.
Conjugados aos dilemas do sujeito, os temas do livro incidem sobre duas tônicas principais: a linguagem e o mundo de que trata; e o divórcio entre razão e desejo. Desdobrando-se, incluem, no questionamento do ofício, a desmistificação da persona lírica ("mero signo, simples mito", em "Pessoana"), dos artifícios da poesia, a todo momento desnudada, e a desmistificação do mundo ordenado. Esta última, que alarga consideravelmente as beiras da metalinguagem, surge em "Sete Estudos Para a Mão Esquerda". É cara ao poeta a idéia da verdade, das certezas viscerais e da ordem instituída como falácias de um "mundo de plástico" e de um sujeito que, quando distraído, se deixa levar por ele. Há uma profunda descrença da ordem aparente, serena, no fundo engendrada por uma vontade crassa. Nesse chão ardiloso, passeiam em fila única as lagostas cegas do ódio e as portas são uma constante.
O mundo retesado, assunto e não só pressuposto de um sujeito partido, também está presente em "Até Segunda Ordem", de resto exceção do tom geral do livro.
Trata-se de um bloco diferenciado de poemas que descortinam um mundo de negociatas: "Até Segunda Ordem" coloca as imagens em movimento, entrelaçando uma narração obscura que imita a própria natureza evasiva do assunto. Os poemas são parte de uma correspondência entre infratores, lacunar o bastante para que tudo fique literalmente "debaixo dos panos". A paródia formal salta aos olhos: a história é contada em cinco sonetos, todos com o mesmo esquema rímico (a,b,a,b/ c,d,c,d/ e,f,g/ e,f,g). Entre tramóias e personagens entrevistos, nós, interlocutores, somos involuntariamente cúmplices e até parte no negócio -seguindo as instruções, devemos destruir o último soneto.
Quanto à dupla desejo e consciência, outra tônica do livro, estão sempre desajustados -enquanto a razão se angustia, o corpo não liga, quer praia. A razão tenta ordenar o caos interno, o desejo revém, com suas aporias e contradições. A fratura entre ambos define o homem e impregna as coisas -na alquimia às avessas que o livro equaciona, tudo que a reflexão toca se humaniza, tornando-se entrave; tudo que o desejo ilude, inquieta a mente.
Num dos mais belos poemas do livro, o sujeito enterra seus "últimos defuntos fecundos", aos quais a objetividade se rendeu. As palavras são a "pá única de cal" que despeja sobre eles, curiosamente, na última série, como se o final fosse renovada promessa de aniquilamento, prazo fatal da luta.
Mas depois que enterra seus últimos defuntos, ainda o vemos, transfigurado, andando entre os móveis, na intimidade do apartamento. Um sujeito sempre pronto a objetivar-se, sem nunca desaparecer de vez da cena, e sem nunca deixar de ser desafiado pela consciência crítica -é este o limite que faz o melhor dessa poesia.
Com o perdão da panorâmica instantânea: o que se vê em "Trovar Claro" é continuidade e certa radicalização em relação aos dois livros anteriores, "Liturgia da Matéria" e "Mínima Lírica". Segue-se a atenção à matéria mundana, única capaz de resgatar um sentido do que seja realidade, numa espécie de antiidealismo revelador. Mantém-se a linguagem da fala íntima, sempre reflexiva, agora ainda mais clara (curiosamente, a aderência a padrões formais fixos parece permitir um uso mais amplo e ritmado da linguagem próxima ao coloquial). Torna-se ostensiva a presença da metalinguagem, o que é uma faca de dois gumes. Mas, se a moeda já está um pouco batida hoje em dia, Paulo Henriques consegue dar-lhe novo alcance: a metalinguagem se une à substância crítica e à experiência de um sujeito insone que leva seus dilemas até a exaustão. A química é tal que a percepção do mundo não fica prejudicada por uma poética que se fecha no próprio texto como realidade apartada. Pelo contrário, se questiona a linguagem é porque questiona o mundo de que fala, se põe em dúvida o eu, duvida da capacidade de apreender e da validade de sua experiência. Apesar da restrição do leque de temas, o resultado é uma renovada dimensão lírica e crítica, que brota das contradições do eu e que não as elimina.
Ana Paula Pacheco é mestranda em teoria literária na USP.

Folha de São Paulo


Um pouco de Strauss

TROVAR CLARO - PAULO HENRIQUES BRITTO

Não escrevas versos íntimos, sinceros,
como quem mete o dedo no nariz.
Lá dentro não há nada que compense
todo esse trabalho de perfuratriz,
só muco e lero-lero.
Não faças poesias melodiosas
e frágeis como essas caixinhas de música
que tocam a "Valsa do Imperador".
E sempre a mesma lengalenga estúpida,
sentimental, melosa.
Esquece o eu, esse negócio escroto
e pegajoso, esse mal sem remédio
que suga tudo e não dá nada em troca
além de solidão e tédio:
escreve pros outros.
Mas se de tudo que há no vasto mundo
só gostas mesmo é dessa coisa falsa
que se disfarça fingindo se expressar,
então enfia o dedo no nariz, bem fundo,
e escreve, escreve até estourar. E tome valsa.
Paulo Henriques Britto

Folha de São Paulo

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