sábado, 8 de novembro de 2008

FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS

JONATHAN BARNES
Argumentos pré-socráticos
08/Ago/98
Alberto Alonso Muñoz


Pretender reconstruir os argumentos dos filósofos pré-socráticos? Para quem está habituado à abordagem tradicional da aurora do pensamento filosófico e científico ocidental, isso pareceria o maior dos sacrilégios. Primeiro, porque a maioria das antologias tradicionais que recolhem os fragmentos dos pensadores que antecederam Platão (e não apenas Sócrates, já que muitos lhe foram contemporâneos) recolhem apenas um conjunto de frases desconexas e enigmáticas. Querer encontrar nessa floresta de resíduos a forma, ainda que rudimentar, de um encadeamento argumentativo pareceria temerário e, quem sabe, até mesmo insano.
Segundo, porque esse não seria o método adequado para analisar a "alvorada" ou a "origem profunda" do pensamento no Ocidente. Além de só termos acesso a fragmentos, e sobretudo por causa disso mesmo, o fundamental seria concentrar-se em examinar os "recortes conceituais" que esses pensadores produziram sobre o real. Isto é, fazer filologia, mas uma filologia que não se interessaria pela sintaxe, mas apenas pela morfologia lexical. Ou, como diz Heidegger em suas análises dos pré-socráticos, caberia examinar como eles começaram a história das interpretações do Ser e, assim, da longa história de seu esquecimento. E, além disso, o que garantiria que a forma argumentativa já estaria caracterizando esses filósofos tão distantes no tempo?
Em "Filósofos Pré-Socráticos", J. Barnes rompe com os postulados das interpretações correntes desse período. Para ele havia, sim, argumentos por detrás desses misteriosos fragmentos e é justamente isto o que permite distinguir os pré-socráticos das interpretações mágico-religiosas que os precederam. E não é só, pois tais explicações distinguem-se das precedentes por várias outras características. São internas, já que evitam recorrer à intervenção arbitrária de elementos extrafísicos (religiosos ou mitológicos) para explicar os fatos do universo: já não se afirma que Zeus é o responsável pela chuva e pelo trovão, ou Poseidon o causador dos terremotos. São, além disso, sistemáticas, pois "explicam a soma total dos eventos naturais empregando os mesmos termos e os mesmos métodos". Nada, portanto, de multiplicar os recursos explicativos com novos elementos levantados para cada novo caso. Finalmente, essas explicações são econômicas: com um par de operações (rarefação e condensação) e um único elemento natural (o ar), Anaxímenes tentou explicar o conjunto dos fenômenos físicos.
Certo, dirá o leitor tradicionalista, a maioria dos fragmentos dos pré-socráticos parece de fato apresentar essas características. Mas como reconstituir argumentos se tudo o que se tem são fragmentos -frases desconexas, soltas, na maioria das vezes sem muito sentido? Não seria melhor, por prudência, sublinhar e comentar o processo pelo qual eles criaram as "categorias conceituais" com que recortaram o mundo? Afinal, qualquer tentativa arqueológica de reencontrar os argumentos que poderiam ter sustentado as teses que esses fragmentos expressam seria sempre provável e mesmo mera elucubração.
Essa é, seguramente, a impressão de um leitor que folheie o volume clássico de H. Diels e W. Kranz, "Die Fragmente der Vorsokratiker" ("Os Fragmentos dos Pré-Socráticos") e muitas coletâneas que surgiram a partir dessa obra. Afinal, ali a grande maioria dos "fragmentos" aparece como uma frase solta, muitas vezes enigmática, arrancada do contexto em que aparecia citada ou parafraseada por outro autor da antiguidade.
Nessa forma, claro, tais fragmentos dirão muito pouco sobre o argumento que poderia estar por detrás daquelas afirmações. Tome-se apenas um, dentre os inúmeros exemplos que Barnes apresenta: a célebre frase, atribuída a Anaximandro, de que "(as coisas) devem prestar contas e reparação umas às outras por suas injustiças, conforme a sentença do tempo". Em Diels-Kranz essa é a primeira sentença do capítulo 12 e aparece assim, solta no ar. Um leitor poderia elocubrar muita coisa em cima dessa frase, utilizando os elementos históricos, literários e sobretudo culturais e antropológicos que por acaso tiver à mão. E, num esforço de aproximação a essa frase misteriosa, terminaria, talvez, numa teoria a respeito do pensamento grego antigo, de suas idiossincrasias e de como afinal tudo ali era tão "diferente" de nossa maneira de pensar.
Só que essa frase, dentro do contexto que a monumental obra de Diels e Kranz não pôde reproduzir, aparecia no comentário de Simplício, autor alexandrino neoplatônico, a "Física" de Aristóteles. Admitamos, o que é bem verossímil, mas tampouco é absolutamente seguro, que Simplício tenha tido uma boa cópia dos tratados de Anaximandro sobre a natureza. Pondo-a em seu contexto, vemos Simplício dizer que Anaximandro foi um dos primeiros a introduzir o termo princípio ("arché") e que achava que o princípio das coisas (aquilo de onde elas provêm e de que são feitas) era "uma natureza infinita". Dessa natureza infinita nasceriam as coisas existentes, nela sendo reabsorvidas, quando desaparecem.
Esse processo de expulsão e reabsorção explica o surgimento e a desaparição dos processos físicos e é considerado "justo" precisamente por ser natural e uma lei cósmica. É assim que tudo deve ser, as coisas devem surgir e desaparecer ao longo do tempo. "Porquanto devem prestar contas e reparação umas às outras por suas injustiças, conforme a sentença do tempo", diz Simplício, citando textualmente a frase de Anaximandro e dizendo em seguida que ele "se pronuncia a esse respeito com palavras um tanto poéticas".
Reinserindo o fragmento em seu contexto original, elimina-se muito da obscuridade dessa frase e mantém-se a beleza de uma imagem poética que, afinal, nada tinha de muito misterioso. Ela era apenas uma das maneiras de Anaximandro referir-se à inelutabilidade do vir-a-ser e perecer ou, noutras palavras, ao processo pelo qual se formam todos os eventos no mundo físico. "O ponto que me parece relevante", dirá Barnes, "não é que os pré-socráticos apresentavam bons argumentos, mas simplesmente que apresentavam argumentos". Todos sabemos que o mundo não surgiu e não é feito de água ou que a pedra-ímã não tem alma, como sugeriu Tales. Eis exemplos de argumentos para teses falsas. Mas eis também, antes de tudo, argumentos, ou seja, teses apoiadas em evidências.
O estilo oxfordiano, que insistia na reconstrução dos argumentos e desviava a filologia da morfologia para a sintaxe representou, sem exagero, uma revolução na "scholarship" em filosofia antiga, rompendo a hegemonia dos estudos antropológicos e da hermenêutica de origem heideggeriana que dominou a Europa continental até meados dos anos 70. Meu único reparo à tradução brasileira refere-se ao seu título. "Filósofos Pré-Socráticos" é a tradução do título original, em inglês, "Early Greek Philosophers" (de 1987), que, ao pé da letra, deveria ser "os primeiros filósofos gregos". O problema é que Barnes tem, além desta, uma outra obra, de 1982, de muito maior fôlego cujo título em inglês não é outro senão "The Presocratic Philosophers".
Alberto Alonso Muñoz é doutorando em filosofia antiga na USP.


Folha de São Paulo

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