sábado, 8 de novembro de 2008

COROAS DE GLÓRIA, LÁGRIMAS DE SANGUE

EMILIA VIOTTI DA COSTA
A revolta de Demerara
08/Ago/98
João José Reis

Emilia Viotti da Costa é um nome conhecido na historiografia do Brasil. É autora de um estudo clássico sobre a escravidão, "Da Senzala à Colônia", publicado pela primeira vez há 32 anos, cuja quarta edição acaba de sair pela Editora da Unesp. Tendo sido cassado seu direito de ensinar na USP pela ditadura militar em 1969, tornou-se professora da prestigiosa Universidade de Yale, nos EUA, onde escreveu, em língua que não é a sua pátria, um livro também destinado a tornar-se um clássico. Publicado há cinco anos pela Oxford University Press, sai agora no Brasil seu magnífico estudo sobre a revolta escrava de 1823 em Demerara, região da ex-Guiana Inglesa.
O livro deve interessar ao leitor brasileiro não só porque a escravidão alhures nos ajuda a pensar nossa própria história, mas porque é um modelo de pesquisa, narrativa e interpretação. É um estudo detalhado e profundo, o melhor sobre aquela revolta, baseado em extensa pesquisa em fontes impressas e manuscritas, escrito num estilo envolvente, em ritmo de aventura, não apenas para o especialista, mas todos que apreciam uma boa leitura. A versão traduzida mantém a qualidade estilística da original, embora aqui e ali seja possível discordar do trabalho da tradutora.
A revolta de Demerara foi uma das maiores nas Américas, envolvendo entre 11 e 13 mil escravos. Excetuando a rebelião haitiana -na verdade revolução-, maior do que ela só a jamaicana de 1831, envolvendo cerca de 60 mil escravos.
O livro se desenrola em dois planos que se cruzam e complementam. De um lado a história de religiosos da London Missionary Society, oriundos das classes populares inglesas, que, imbuídos de zelo cristão e preocupações com reformas sociais, partiam para terras distantes e hostis com o objetivo de difundir a Bíblia entre populações "primitivas", entre as quais os escravos de Demerara. Do outro lado, estes escravos, sua opressão diária, os castigos, as proibições nas fazendas e engenhos, mas também seus sentimentos, modo de vida, cultura, anseios, a resistência cotidiana. Viotti monta o cenário da revolta reconstituindo o contexto histórico no qual se situavam escravos e missionários.
A religião alcançou uma dimensão libertadora nas mãos dos escravos de Demerara em 1823, fenômeno que se repetiu em várias regiões e períodos. Em muitos casos, inspiravam os rebeldes cultos a deuses e ancestrais africanos amiúde recriados e modificados sob a escravidão. Mas o Islã africano e o cristianismo, especialmente em sua vertente protestante, também serviram a rebeldia.
O que torna a revolta de Demerara especial não é tanto que várias passagens da Bíblia sugerissem a libertação do povo de Deus, mas a acusação de que um missionário inglês, branco, estaria nela envolvido. Se há um personagem central no livro de Emilia Viotti, seu nome é John Smith. Ele chegou à colônia no início de 1817 e logo ganharia a confiança de seus catecúmenos. O templo que dirigia, a capela de Bethel, atraía centenas de escravos, levantando suspeitas entre os senhores de que o interesse destes pela escravidão não convergiam com os interesses daqueles pela religião. A historiadora insiste neste ponto. Bethel, ademais, além da função religiosa, se convertera em espaço de solidariedade entre cativos, local de convergência de suas redes sociais.
John Smith enfrentou muitas dificuldades para levar a cabo sua missão, algumas criadas pelos próprios escravos, mas a maioria pelos senhores e autoridades. Os escravos, por exemplo, tinham suas normas de vida, algumas delas, como a poligamia, consagradas por tradições africanas. Suas estratégias de sobrevivência também se chocavam frequentemente com os deveres cristãos. Muitos preferiam, em vez de frequentar a capela aos domingos, trabalhar em suas roças e vender seus produtos na feira. Smith às vezes compreendia as necessidades dos escravos, outras se exasperava com o que considerava seus maus costumes. O missionário registrava seus dissabores num diário, fonte fundamental na construção deste livro, sobretudo para acompanhar as ações e o estado de espírito de Smith.
O que mais frequenta as páginas do diário de Smith são seus embates com os escravistas, em particular os obstáculos levantados para a instrução religiosa dos escravos. Tudo era pretexto para impedi-los de se reunir para orar nas senzalas e frequentar o templo.
Se a experiência religiosa havia ajudado os escravos a aprofundar e sistematizar sua crítica à escravidão, outros elementos a ela se juntaram na mesma direção. Era um momento de mobilização abolicionista na Inglaterra, de campanha na imprensa, nas igrejas, no parlamento, nas associações operárias. Informações a esse respeito chegavam às senzalas nas colônias, muitas vezes por intermédio de escravos que, tendo aprendido a ler a Bíblia, liam também as folhas vindas da metrópole.
Dois episódios em que religião e abolição se cruzavam estiveram na origem da insurreição: primeiro, uma ordem do governo que exigia dos escravos passes escritos por senhores e administradores de fazendas, permitindo que frequentassem o culto religioso; segundo, medidas do governo britânico que melhoravam o tratamento dado aos escravos e que muitos deles interpretaram como abolicionistas.
Algumas semanas antes da revolta, Demerara foi tomada por rumores de que a metrópole libertara os escravos, mas os senhores e o governo colonial recusavam-se a obedecer. Como outros movimentos na Europa e em suas colônias, entre cativos e livres, a revolta seria feita para que fosse cumprida a vontade real. O capítulo 5, que trata de como os rebeldes interpretaram a situação e planejaram o levante, é uma obra-prima de narrativa histórica. Viotti reconstitui a rede complexa mediante a qual circularam os rumores, identificando os mediadores, as relações que mantinham entre si e com os brancos, como obtiveram e passaram as informações, quem vacilou, quem foi firme diante da decisão de rebelar-se. E aí ela revela que o mundo da capela foi apenas um dos nexos significativos na cadeia dos acontecimentos. Relações de parentesco, camaradagem, de trabalho, étnicas se combinaram para mobilizar os escravos, em muitos casos operando por fora dos laços da religião.
A rebelião mesma foi um desastre para os escravos. Houve problemas de organização e unidade de propósitos. Muitos conspiradores lutaram pela liberdade, outros quiseram apenas ver realizadas as reformas preconizadas pela metrópole. Mas por algumas horas os escravos viraram o mundo de ponta-cabeça nas fazendas, colocando senhores e feitores no tronco, insultando e castigando-os. Em geral foram contidos, não chegando a meia dúzia os mortos entre os brancos que, sabedores dos planos por denúncia, colocaram todo seu poder de fogo em ação. A repressão foi brutal e indiscriminada, com dezenas de execuções sumárias. O julgamento que se seguiu encenou formas civilizadas de fazer justiça, mas prevaleceu a barbárie, o desejo de intimidar pelo terror: 33 negros foram punidos com a pena de morte, suas cabeças cortadas e expostas publicamente.
A grande sensação, no entanto, foi o julgamento do missionário John Smith, sua condenação à morte e a espera pela comutação da pena a pedido do governador de Demerara, que assim buscava evitar que se criasse um mártir. Houve muita repercussão nas ruas, igrejas, na imprensa e no Parlamento da Inglaterra. O destino de Smith o leitor descobrirá lendo o livro.
Smith e sua religião na verdade haviam desempenhado um papel ambíguo no movimento. Por um lado, inspiraram muitos rebeldes, embora nunca de maneira direta, mas pregando que servir a Deus nem sempre era compatível com servir aos senhores. Por outro, o missionário tentou abortar o movimento no nascedouro, chegando a denunciar ao administrador de uma fazenda o que se passava nas mentes de alguns líderes e buscando convencê-los a desistir. Além disso, aqueles escravos mais ligados à Bíblia foram os mais contidos durante o levante, os menos radicais, e um dos cabeças, Quamina, diácono na capela de Smith, até quis sustá-lo.
Ao abordar a história miúda, vivida com intensidade por indivíduos carregados de conflitos íntimos, Viotti empresta credibilidade a seus personagens, tornando-os agentes dinâmicos dos acontecimentos que interpreta. Ao mesmo tempo insiste em que escravos, senhores, feitores, missionários, abolicionistas, administradores coloniais e metropolitanos estavam imersos num mundo maior, submetidos a forças históricas que não controlavam completamente. Este convite a uma história mais estrutural, no entanto, soa como declaração de princípio. O que torna este livro admirável é a habilidade da autora em demonstrar, por meio de uma narrativa empolgante, sem boçalidade acadêmica, que a liberdade de ação de cada um daqueles grupos foi limitada pelos interesses e projetos dos demais. A luta de classes em Demerara refletiu e repercutiu sobre os embates sociais e ideológicos na Inglaterra imperial, que dez anos depois aboliria a escravidão em suas colônias.
João José Reis é professor da Universidade Federal da Bahia e autor, entre outros livros, de "A Morte é uma Festa" (Companhia das Letras).


Folha de São Paulo

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