sábado, 8 de novembro de 2008

VASSALOS E REBELDES

CARLA ANASTASIA
Insurreições mineiras
08/Ago/98
Laura De Mello E Souza


Um dos grandes méritos deste livro, que apesar de pequenino veio para ficar, é propor alternativas de análise sobre o protesto social na América portuguesa. Tarefa corajosa e pioneira, sobretudo porque não se debruça sobre revoltas espetaculares, clássicas, capazes de magnetizar gerações sucessivas de historiadores. O recorte é Minas Gerais na primeira metade do século 18, mas evita a revolta dos Emboabas, ocorrida entre 1707 e 1709. Da Inconfidência de 1789, marco de nossa nacionalidade, não há, salvo engano, menção sequer.
A razão da escolha é evidente. Como Evaldo Cabral de Mello em "Fronda dos Mazombos" -referência bibliográfica inexplicavelmente ausente neste estudo-, Carla Anastasia procura pensar a revolta do mundo colonial fora dos determinismos de vários matizes que, com frequência, marcaram o enfoque. As revoltas foram parte da vida cotidiana, pontuaram espasmodicamente um mundo caracterizado pela violência permanente e nem sempre tiveram objetivos políticos nítidos. Para usar o jargão clássico, as revoltas estiveram quase sempre longe de desembocar em revoluções. Não se propunham a subverter a ordem nem virar o mundo de ponta-cabeça. A exemplo da interpretação de E. P. Thompson para a Inglaterra nas vésperas da Revolução Industrial, Anastasia sugere que essas revoltas mineiras -motins, como prefere chamar, marcando seu afastamento ante as teses "revolucionárias"- assentavam-se não raro numa economia moral, visando antes restaurar a ordem anterior -até Tiradentes falava em "restaurar a terra"!- do que negá-la.
Compreender os objetivos dos agentes, colocando-os em seu próprio tempo, é, assim, o primeiro -e sem dúvida meritório- objetivo da autora. Para tanto, realiza uma descrição detalhada de motins desconhecidos do grande público (quem já ouviu falar da sedição de Catas Altas, do motim da Barra do Rio das Velhas, do de Campanha do Rio Verde?), criando uma narrativa muitas vezes envolvente e empolgante. Apesar disso, nem sempre os esquemas analíticos e a fundamentação empírica se coadunam com a harmonia. A introdução e o fecho do livro são sobretudo teóricos, mostrando o talento reflexivo da autora e sua desenvoltura no manejo de bibliografia mais sociológica. No tocante à problemática das revoltas pré-industriais, discussões como as de Charles Tilly lhe são mais caras do que as que são mais propriamente históricas, como as de Roland Mousnier, Boris Porschnev, Ana Lublinskaya, Yves-Marie Bercé ou Perez Zagorín. Já o miolo do livro é acentuadamente empírico e, apesar da qualidade intrínseca das partes, fica às vezes a impressão de que faltam relações mais constantes entre teorização e empiria.
Dividido em três partes, o livro atém-se primeiro aos motins que, sem contestar a ordem colonial, têm caráter acentuadamente fiscal e se batem quase sempre pela restauração de uma ordem alterada por novos ou diversos lançamentos de tributos . Alguns desses levantes não são meramente fiscais. Com lucidez, Carla Anastasia deixa claro que o antifiscalismo nunca é um fim em si, pois traz sempre a tensão social, mas é também expressão de lutas pelo controle dos aparelhos de poder, por ela denominados contextos de soberania fragmentada. Casos híbridos, portanto.
A segunda parte é a mais interessante e inovadora, versando sobre casos em que a soberania fragmentada se apresenta na sua forma mais pura. É onde traça rápidos retratos de lendários potentados sertanejos, como Dona Maria da Cruz e sua família ou Manuel Nunes Viana e a curriola que o cercava. Capta muito bem a ambiguidade desses personagens e das atitudes oficiais diante deles: ora eram aliados da coroa; ora matavam ou mandavam matar gente do rei, enfurnando-se na impunidade das brenhas; ora recebiam doações e honrarias; ora eram presos ou, uma vez foragidos, queimados em efígie. O relato sobre os motins de Pitangui, que se estenderam de 1717 a 1720 e tiraram o sono do governador Conde de Assumar, é particularmente feliz.
A terceira parte evita entrar na questão dos quilombos e elenca as referências, muito abundantes, a motins escravos. Talvez seja esta a parte mais nebulosa do trabalho. Se é possível cogitar dos motivos que levaram Carla Anastasia a não abordar a questão dos quilombos, em si mesma muito complexa e demarcada, sente-se a falta de uma problematização sobre as razões do recorte. Afinal, a proliferação de quilombos em meados do século 18 foi uma das características marcantes da história mineira, mostrando quão inextricavelmente escravista era aquela sociedade. Mais: motins de escravos em sociedade escravista impõem questões teóricas específicas, que aqui não foram contempladas.
Procurando entender as razões específicas dos agentes históricos, Carla Anastasia é reticente com relação à teoria do sistema colonial e diverge de Fernando Novais. Acha que não existia consciência da condição colonial na época que estuda -no que tendo a concordar com ela, assim como, estou certa, Novais- e que não cabe estudar motins específicos com o tino nas razões da Metrópole, nem sempre previamente calculadas. Duvida que existisse um projeto claro e coerente de exploração colonial, o jogo de cintura ante os desvairios perpetrados pelos "príncipes das Minas" sendo um exemplo flagrante dessa política metropolitana mais contemporizadora do que rigorosa. Alinha-se com os que acham que a análise da lógica interna do funcionamento da colônia exclui a atenção aos mecanismos externos, dependente em excesso de condicionantes próprias à história européia.
Vinte e cinco anos depois de defendido como tese de doutorado na USP, "Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial", de Novais, continua sendo parâmetro para qualquer discussão sobre o universo colonial. Isto, por si só, atesta a sua estatura de clássico, ao lado de outros quatro ou cinco livros da historiografia brasileira. Como qualquer clássico, permanentemente discutido, há os que afinam com ele, há os que discordam. Carla Anastasia diverge com elegância e sobriedade.
Não creio, sinceramente, que os pressupostos fundamentais de "Vassalos Rebeldes" invalidem a tese de Novais. Ao tentar trilhar caminho próprio, distinto do da Metrópole, os vassalos acabariam divergindo da sua política. Como explorar pressupunha ter a colônia minimamente organizada, a coroa não podia prescindir da ajuda dos poderosos locais. Se batesse muito -como eu já disse em um escrito antigo-, a corda arrebentava e se perdiam as caixas de açúcar, os rolos de fumo, o pagamento dos direitos de entradas, os quintos, as bateias ou o que fosse. Por isso os administradores coloniais e os funcionários da Justiça batiam e sopravam. Caçavam Manuel Nunes Viana pelos pastos do São Francisco e depois agradeciam oficialmente os serviços prestados à coroa.
Posto isto, cabe ressaltar que Carla Anastasia ajuda a trazer à tona um problema sério da historiografia brasileira. Temos pensado mal a questão da revolta social no tempo da colônia. Os marxistas, porque se constrangem ante as limitações teóricas inerentes ao objeto, temporalmente localizado antes do capitalismo maduro e da eclosão da luta de classes. Os mais conservadores, porque se enervam com as explosões de violência que lhes parecem gratuitas. Quase todos, porque teimam em escarafunchar o surgimento do nativismo. Beckman, Amador Bueno, Filipe dos Santos, os emboabas e seus contemporâneos a Nordeste, os mascates de Recife ou os senhores de engenho de Olinda, nenhum deles pensou numa pátria comum. São frágeis as evidências de que mineiros em 1789 e baianos em 1798 tenham pensado em algo semelhante. Por que, então, se revoltavam? Carla Anastasia constrói com rigor sua posição neste debate. E, concordando ou não, teremos, daqui para diante, de nos reportar a ela.
Laura de Mello e Souza é professora de história na USP.

Folha de São Paulo

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