segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Vislumbres epifânicos


10/Out/98
José Paulo Paes


Ao transpor do domínio da religião para o da literatura o conceito de epifania, James Joyce enriqueceu com ele o vocabulário da crítica. "Epiphania" significa em grego "aparição, manifestação", mas Joyce o definiu, mais estritamente, como "uma súbita manifestação espiritual" que em momentos "delicados e evanescentes" faz aflorar, "na vulgaridade da fala ou do gesto", a essência de um ser ou situação humana, donde tais momentos deverem ser registrados com "extremo cuidado" pelo ficcionista.
Esse cuidado não faltou ao ficcionista João A. Carrascoza nos melhores contos de "O Vaso Azul". Pela finura com que fixam vislumbres da condição humana, merecem eles ser chamados epifânicos, quando mais não fosse por a "súbita manifestação espiritual" a que dão voz tácita ocorrer sempre na "vulgaridade" da vida cotidiana. Voz tácita porque, em vez de sair da boca do narrador ou dos personagens, sai mais comumente dos próprios fatos, como é de esperar na boa ficção, seja ela ou não de índole realista.
A de Carrascoza o é, e privilegia amiúde, em seu enfoque, o dia-a-dia da pequena classe média, na tradição do Marques Rebelo de "Cenas da Vida Brasileira", ou do Dionélio Machado de "Os Ratos". Mas isso com uma originalidade cujo vigor exclui "in limine" qualquer idéia de epigonismo. A originalidade se ostenta sobretudo no tratamento intensivo de situações do cotidiano. Embora as situações nada tenham de insólitas, mas sejam, ao contrário, típicas da vulgaridade desse cotidiano, a intensidade do enfoque acaba por trazer à luz suas virtualidades epifânicas.
Tome-se, por exemplo, o conto que dá título ao volume. Seu tema é o mesmo de "Coração Materno", ou seja, o contraste moral entre o desvelo da mãe pelo filho e o descaso deste por ela. Mas aquilo mesmo que, na canção melodramática de Vicente Celestino sobre esquecidos versos de Henri Murger, só alcança provocar no ouvinte menos ingênuo o riso de superioridade habitualmente associado ao "kitsch", provoca no leitor de "O Vaso Azul" um obscuro sentimento de remorso, como se ele também, em algum momento de sua vida, tivesse sido réu do crime de ingratidão filial cometido pelo protagonista do conto.
A substituição do riso superior pelo remorso empático se deve, no caso, à simétrica substituição do melodramático, cujo clangor só serve para reforçar a obviedade do lugar-comum, pelo sugestivo, cuja surdina faz aflorar o epifânico. Este é que atualiza, dando-lhes novas figurações, as pulsões arquetípicas latentes no óbvio. "O Vaso Azul" realiza tal proeza pelo hábil recurso ao pormenor signicativo: os óculos da mãe remendados com durex, a televisão quebrada há muito tempo, a lâmpada que ela não alcança trocar etc. A seriação de pormenores culmina na metáfora opositiva asas/cruz, em que se condensa emblematicamente a semântica da fábula.
Epifanias não menos reveladoras ocorrem em alguns outros contos de "O Vaso Azul". Em "Iluminados", se a falta de luz elétrica transtorna a rotina de vida de um casal, a luz das velas que precariamente a substitui estabelece entre os cônjuges um clima de intimidade de cujo sabor estavam quase esquecidos. Já os protagonistas plurais de "Casais", com simplesmente arrolarem sob a égide do "nós" os pormenores de suas vidas rotineiras, transformam-se em parcelas de uma soma de resultado zero. A primeira menstruação de Ana, no conto homônimo, faz da sua viagem de trem para ir visitar a avó agonizante um rito de passagem entre o aconchego da infância e os temores da puberdade. Há também algo de rito de passagem no momento em que o menino de "Antes do Almoço" vê, com surpresa, as lágrimas furtivas do pai e percebe o sentido do "carinho resignado" que há no toque da mão dele sobre o seu ombro.
Conquanto se voltem para o mesmo dia-a-dia de que se nutrem os contos de João A. Carrascoza, os contos de Nelson de Oliveira focalizam-no por outro ângulo que não o da verossimilhança realista. Seu viés é o do onírico, do surreal, do fantástico, amiúde entremesclados a ponto de se tornarem indistinguíveis um do outro -se é que a distinção tem alguma utilidade prática. Vistas por tal viés, as cenas da realidade sofrem uma inversão radical que torna o familiar insólito, quando não francamente absurdo.
Por esse lado, "Naquela Época Tínhamos um Gato" (Cia. das Letras) e "Os Saltitantes Seres da Lua" se filiam a uma linha do conto brasileiro que teve seus iniciadores em Murilo Rubião e José J. Veiga. Aqui tampouco cabe falar em epigonismo, visto as histórias de Nelson de Oliveira serem inventivas quer na concepção quer na escrita. As mais bem logradas dão a perceber um tipo de epifania diverso das de " Vaso Azul". Em vez de atualizar, por refiguração, o estrato arquetípico do óbvio, a inversão fantástica abre uma rua de mão dupla entre a ordem da realidade e a ordem do desejo. Como ambas as ordens se interpenetram livremente nos sonhos, não é de estranhar que eles sejam amiúde tematizados nos contos de Nelson de Oliveira. É o caso, por exemplo, da louca batalha entre caipiras e metropolitanos sonhada pelo protagonista de "Saltitantes Seres da Lua" do livro do mesmo nome, ou do sonho a dois de " Intervalo" em "aquela Época Tínhamos um Gato" em que os mundos separados que os dois personagens habitam em estado vígil passam a se unificar no estado onírico.
Mesmo num conto como " Peste" também deste último livro, a atmosfera de dissolução física e moral em que Rodolfo e Antônia chafurdam e que acaba por contaminar a própria ortografia da escrita narrativa é uma típica atmosfera de pesadelo, se bem não haja na história qualquer referência explicita ao onírico. E em "Lá", outro dos contos de "Naquela Época", o ambíguo desaparecimento das pessoas que, à procura de uma rua qualquer, são encaminhadas pelos camelôs para além do final da sua estranha feira, põe em xeque a univocidade do real, abrindo-a, como os sonhos, num leque de intrigantes possibilidades.
É por aberturas assim que o leitor dos contos de Nelson de Oliveira tem vislumbres epifânicos de tudo quanto, não obstante confine com o fantástico e o absurdo, serve para irisar as mesmices do vulgar com as invulgaridades da fantasia -essa filha pródiga da razão.

José Paulo Paes é ensaísta, poeta e tradutor, autor, entre outros, de "A Meu Esmo" (Noa Noa), "De Ontem para Hoje" (Boitempo) e de "Os Perigos da Poesia e Outros Ensaios" (Topbooks)

Folha de São Paulo

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