segunda-feira, 27 de outubro de 2008

CRISANTEMPO

HAROLDO DE CAMPOS
Culminância e amor cortês
14/Nov/98
Affonso Ávila

Chegado é o tempo", tempo de apurada, acurada sabedoria, tempo de soma e culminância. Tempo da proporção áurea, aquele toque de equilíbrio final de linhas, de curvas e da diagonalidade expressionista que o arquiteto exímio pautou e a que deu o movimento sublime no frontispício da criação superior, no lance ao mesmo talho contido e comovido da portada. Não recuarei ao símile de imagem convencional do burilador "fin-de-siècle", do joalheiro folheador da chave de ouro do parnaso, do êxtase miralunar do nefelibata excitado ao sabor do símbolo raro e dos álcoois e absinto.
Sabem do arquiteto a quem aludo, sabem do poeta que ao barroco especular saúdo, instantes e instâncias, cada qual na medida peculiar e chancelar que o impulso instigador de fascínios do fazer lhes concedeu, instantes e instâncias com que aprendi e apreendi relações de convivência e conivência de arte extrema, de poesia estreme. Recuarei, sim, ao entreabrir ambos a sua florescência de invenção, o sumo criador da avalanche vindoura de beleza na sua juvenil estátua-fonte de Eros, o êmulo infanção no aprendizado de outra plástica que a pedra -a mais dúctil da palavra- "copas e marfins renhidos", ambos ao seu talante de tálamo e transes, vórtices e vertigens tácteis e óticos, errâncias do preâmbulo erótico, ah ambos, ah jovens que foram, jovens que fomos. Para o poeta, "chegado" era "o tempo", mas premonição de quem seria, de quem viria a ser, do amor sedutor ao amor sênior, do estio ao estelar, pois, enquanto seu supra-símile, "no mais alto degrau da arte de meu país" (Oswaldo dixit), subia e se cristalizava em Cristos de paixão, o poeta tenaz e terreno se cristalizaria, aos meus olhos amestrados de idade diante do que é "sim" e do que é "não", se cristalizaria nesta culminância de "Crisantempo".
Poderão achar, os que lêem, que exagero por cumplicidade, afinidade e afetividade nesse, ao ver talvez deles, paralelo pretensioso, mas advirto, no meu vezo meio setorizado da hipérbole cultista, que não falo em pratos e pesos de balança judiciosos, porém em conceito de teor de competência, conceito aproximador do que é "sim" em qualquer distância ou esfera. Um se insulou e genializou como seu próprio e íntimo paradigma, meu poeta aqui assinalado abriu brechas de ares e mares, de extroversões de língua e interversões de línguas, se auto-escreveu e reescreveu outros. Ainda assim, longe de mim qualquer abuso em atribuir cúmulos de universalidade ao que é talentosa verticalidade de prospecção, em incorrer num desfavor ingênuo do que é universalidade por genialidade de introspecção. O poeta em close e foco é Haroldo de Campos -revela-se à luz meridiana-, e ele, lúcido e propedêutico, conhece e entende com superioridade de aferição que a mesma aproximação fiz ou faria, à hora certa e lugar certo, com precedência e procedência, em recorrências ao patriarca de todos nós, Gregório, aos fundantes da contemporaneidade, Drummond, Murilo, Cabral, perfilados de inteireza dentro de igual rigor ao mesmo que diviso na poesia haroldiana da soleira quase meio secular do "Auto do Possesso" à proporção áurea culminante neste "Crisantempo".
"Crisantempo" é livro ecumênico em seu porte paradoxalmente conciso de amplitudes, livro de intercorrentes fusos poéticos, livro capaz de fundir e confundir parabólicas e satélites, desorientador de observatórios meteorológicos. Sua previsão de tempo -ritmo, cadência, pêndulo de entropias convergentes súbito perturbadas pelas interferências do ruído, pois o humano, o húmus do homem, a presentidade-, o tumulto do sangue quente da rua e dos divisores de rumo, a insubordinação do sentimento à injustiça -"o anjo esquerdo da história"-, quebrando a justeza ática inerente ao verso haroldiano, são fenômenos no caso semanticamente incontroláveis de um "el niño" desarticulador de climas temperados e lavouras planejadas.
O poeta cresceu em vulto, se expandiu como Ulisses a seu mundo, querendo retornar da sua Tróia concreta, vencida da rebeldia e da revolução, mas interceptado sempre em seu mapa antropofágico de império criativo pelas sequências de circes e ilhas atraentes de magia desafiadora de outras famílias e tribos de línguas, ignotas seduções a que ao final, seis vezes dez anos, o leva ao não se acomodar ao aconchego da "parole" uterina e a partir de novo, para o imprevisto dos mais ásperos sons e sentidos, o "Finismundo" da poesia e de si mesmo.
"Finismundo", este poema, extenso de vôo e reflexão, será relido agora no painel consolidador de incursões que é "Crisantempo", a corrente ao largo sem "terra à vista" do navegador por fatalidade e volúpia, o único poeta brasileiro de inquietação ubíqua e polissêmica de meus dias, mais que Murilo, fundeado nos arcanos da Itália, ou Cabral, dividido entre a matriz do solo pernambucano e o corpo sensual de Sevilha. Do Ocidente ancestral, porém multi-referente de similitudes e diferenças, entrelaçando festões apolíneo-barrocos que remetem aos canais irrigadores das "greguerias" e dos "latinórios", passando depois pelos interregnos florentino-weimarianos de Dante e Goethe e dos reformuladores da modernidade e vanguarda, até o Oriente, entre o próximo e a sua extremidade, de Israel ao Japão.
Ecumênico, disse atrás, porquanto funde mitos e teologias, poemários de arte e artifícios de poesia, não só o transcriador que se comprova erudito em seu cartão de visita incômodo aos seminários acadêmicos, mas o grã pensante que, em entrevista não me lembra qual e onde, confessou que, para ele, poesia se transformava cada dia mais em filosofia e esta -mostra bem "Crisantempo"- cada vez mais em poesia: assim o dizem em percuciência e linguagem as escaladas poéticas no reduto metafísico de São Tomás de Aquino e Hegel. Acronia que se reverte em sincronia, o concreto do ortodoxo que mantém ereto na heterodoxia do real concreto, saltos de passagem de anos e pulmões abertos ao pleno, mais Maiakóvski hoje que Mallarmé ontem, poesia que galgou a altitude das mais dignas em mestria e lição para os que sucedem à teimosia poética e -de vanguarda ainda, sim- de nossa geração. Comparsa ou parceiro, o autor de "Crisantempo" bate generoso a aldabra de certo "solar de poesia" e move de uma alegria solidária certos "partisans" que se entrincheiram juntos a ele e se esgueiram, entre o arame farpado da mediania e a estaca do discurso evasivo, solidários -repito- no encalço do tom e dom maior da palavra, que se sabe luzir ao rijo de seu diamante.
Flor, crisântemo, ao madurar de Cronos, o novo livro de Haroldo me faz retroceder, como acenei ao início deste texto meio de registro, meio de louvor, ao poeta preambular dos 20 anos, em bodas com a epifania do encontro amoroso e ao embate vestibulário com a poesia no livro de aurora do verbo assumido -"Auto do Possesso"-, recebido com estímulos de augúrio pelo Sérgio Buarque de Hollanda então crítico mais que historiador no memorável "Diário Carioca". Neste retrovisor que capta aqui a arrancada em primeira de quem seria um dos pilotos da Fórmula 1 da poética da erudição, do pensamento e criação de nossa merencória e no entanto sempre vital literatura de Terceiro Mundo, eu rediviso um lado pouco focalizado da obra de Haroldo de Campos.
Quero colocar ao vídeo e amostragem o lirismo implícito que escapa aos que, infectados de preconceitos que não se pacificam nem com a vitória insofismável de uma revolução a seu instante radical, mas redimensionadora de horizontes, insistem na impertinência, como a dos reacionários à Semana de 22, de uma réplica de mediania ou ressentimento, em atirar pedras que sobre si mesmos ricocheteiam, em cuspir para cima no infalível ridículo do cair na própria cara ou, se preferem, do ver cair a cara diante da poesia de competência. O mais sensível dos concretos ou o mais concreto dos sensíveis é também o lírico no preciso domínio da lira retensa e afinada de agilidade da dicção, como na corda escandida e pontuada de ressonância de seu parceiro Marsicano, quando, neste "Crisantempo" de suspenses e surpresas, compõe a sua "Cármina", mais que Cármina Burana. Um crisântemo de sons e aromas plurilíngues para Carmen, a companheira, uma Beatriz que não se sutilizou no eflúvio da idealidade e caminhou e caminha, cativa e cativante, mão na mão, olhos nos olhos, no longo percurso de ascensão e também de provações do poeta, amiga de amar, completude do ser.
A série de poemas que o lirismo haroldiano, a par de outras semeaduras e irrigações emotivas que permeiam o livro, reúne na "Cármina" só confere estatura a uma poética que se apurou e culmina de pessoalidade e singularidade numa história de poesia como a brasileira, na qual raras vozes não se pluralizam e banalizam em redundâncias. Carme, poema, canto, diz a definição dicionarizada, e Haroldo substantiva essa semântica em mulher, coroamento do livro em cinco peças, que, na abertura visual, se iluminam de uma portada que sugere entrebeleza grega de Afrodite e entre-sorriso de Mona Lisa, conotando em rosto emblemático foto de Alberto de Lacerda e pintura primaz de Da Vinci. Marília, Glaura, Constança: a musas icônico-tropicais do ementário lírico brasileiro, a musas que tais se irmana agora, nesse patamar afetivo do poeta, a musa-tema de Haroldo. E, como priorizar, nesse torneio cardeal e cordial de amor cortês do cavaleiro de uma ordem hoje quase perempta de cavalaria amorosa, o poema-espelho em que a dama eleita se contemple e deixe contemplar neste nosso propósito de homenagear, também nós, seus leitores e amigos, a homenageada de Haroldo?
Citação celebrativa ao fim do elogio ainda que breve e informal do livro de culminância do poeta, livro ao mesmo tempo de excelência de perícia de criação gráfica profissional, mas notadamente afetuosa de Jacó Guinsburg. Fico, em inclinação de gosto e escolha, na versão do louvor em provençal, marco em idioma do amor cortês: "D'amor", à provençal, belo de intenção e realização. Poeta das "Galáxias", também em "Crisantempo", redivivo em juvenília "decifraste a sigla das estrelas".

Affonso Ávila é poeta, ensaísta, diretor da revista "Barroco" e autor de "O Visto e o Imaginado" e "O Lúdico e as Projeções do Mundo" (Perspectiva).
Folha de São Paulo

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