segunda-feira, 27 de outubro de 2008

RESUMO DE ANA

MODESTO CARONE
A superfície limpa da forma
10/Out/98
Berta Waldman

O poema de Rilke "Torso Arcaico de Apolo" oferece ao leitor uma estátua mutilada, o torso de Apolo, que caberá à linguagem poética recompor. Ela fará surgir o ausente por meio de uma forma fixa, completa em si mesma -o soneto-, que irá conduzindo, passo a passo, o trabalho de construção. A primeira impressão de leitura do "Resumo de Ana", de Modesto Carone, suscita um descompasso que tem a ver com o poema de Rilke. De um lado, histórias de vidas mutiladas, marcadas pelo fracasso; de outro, uma forma construída como superfície absolutamente limpa, em que palavras limadas e escovadas não deixam transparecer em nenhum momento o resto, a limalha, o pó. Estirada ao máximo, a linguagem é montada por uma escrita exata, disciplinada, atenta aos objetos do mundo, à matéria, a tal ponto que esta parece servir de guia ao trabalho da forma.
Assim, aos poucos, vai-se clareando para o leitor o laço entre ambas -e nenhuma delas pode ser univocamente definida. Mas a atitude objetiva e distanciada desse tipo de formalização traz à tona algo que se identifica com o rigor científico, provocando estranhamento no leitor, que chega a se indagar sobre o caráter ficcional do texto. A questão é que o autor faz avançar a forma até seu limite (como alguém que corta um pedaço de madeira e a esculpe seguindo os seus veios), obedecendo ao comando da matéria. Nesse percurso, no qual a palavra procura a si mesma, atenta ao ritmo, à imagem plástica, à precisão substantiva, privilegia-se o dado, o caminho das personagens, a natureza, a cidade, e comprimem-se o sentimento, a emoção, que ficam implicados, nunca explicados, retornando com força em momentos estratégicos da narrativa. A novidade da forma -e ela é mais evidente diante de outros textos nossos contemporâneos- é que existe aí um fundo que torna relevante o que é dito.
Quando começa a primeira parte do romance (duas novelas?), o leitor toma ciência, por meio do narrador, de que a protagonista é sua avó: Ana Baldochi, nascida Godoy de Almeida. Já na segunda parte -"Ciro"-, o narrador vai se instituindo como personagem no curso do relato, ao passo que o protagonista é apresentado, desde o início, como filho de Ana e Balila Baldochi. Trata-se, pois, de uma saga familiar, narrada pelo neto e sobrinho dos protagonistas, em que se inclui, ainda que obliquamente, João Carone, marido de Lazinha, e autor da bela foto de capa do livro.
A construção do relato é difícil de classificar, pois o texto não é propriamente biográfico, embora haja um traçado biográfico dos protagonistas; nem memorialístico, ainda que o relato resulte de lembranças muito mediadas do convívio com Ana e com Ciro; não é um ensaio histórico, embora as contingências históricas que emolduram a narrativa, no período de transição do regime escravocrata para o capitalista, estejam implicadas; nem um depoimento, ainda que a história resulte algumas vezes de uma experiência partilhada com os protagonistas. Mas não se trata também de erigir um necrológio que sirva de elogio aos mortos, nem de um discurso que lamente a miudeza, o sofrimento e o fracasso das vidas vividas. Mais que isso, ao traçar um "romance familiar", a forma dá sentido e dignidade àquelas vidas, tirando-as do desenho particular em que estavam aprisionadas, para articulá-las num outro lugar, tanto em relação ao sujeito autoral, que simboliza no ato da escritura o retorno às origens, quanto no plano social, no qual os protagonistas se juntam ao batalhão dos humildes e excluídos que atravessa a história do país.
O "Resumo de Ana" (primeira parte do livro) é a história de vida de Ana Baldochi, tal como foi contada por sua filha Lazinha ao narrador. Nascida em 1887 num sítio de Itavuvu, município de Sorocaba, Ana fica órfã aos cinco anos, passa a filha de criação de Ernestina Pacheco em Sorocaba, onde permanece até os 17 anos, e muda em seguida para São Paulo, onde será empregada doméstica e depois governanta de uma família de posses. Passados oito anos, volta a Sorocaba e se casa com um antigo pretendente. Do casamento nascem três filhos: Lazinha, Ciro e Zilda. A família alcança viver com certa folga econômica, mas a crise mundial de 1929 provoca a falência do pai em 1931 -falência vivida, em outro plano, nas relações familiares, partidas desde o início. Seguem-se as desventuras de Ana, o alcoolismo e a morte, em 1933, quando tinha 45 anos de idade.
A história de vida da avó, como se disse, o narrador a extrai de sua mãe, Lazinha, que reluta em contar o que havia escutado de Ana, de quem foi confidente dos 8 aos 12 anos. Entre silêncios, pausas e hesitações, de "alguém que no primeiro instante se recorda e no seguinte abafa compulsivamente as imagens evocadas", a fala rugosa e carregada de emoção da mãe é "esfriada" na fala do narrador, que não lhe concede a palavra em nenhum momento. Girando em torno de uma ausência -a de Ana-, cuja vida é reconstruída pelo narrador em terceira pessoa, o texto evolui em blocos. Nestes a história de vida é interrompida pela voz do narrador em primeira pessoa, quando muda a angulação do relato, que passa a incidir no colóquio mãe-filho em torno dos percalços e dúvidas do que está sendo narrado: "Minha mãe falava sem que eu a interrompesse: as perguntas ficavam pairando no ar à espera de uma oportunidade. Ana não gostava realmente de Balila?". Repassando os lugares onde a família havia morado, a casa desmoronada, o nome da rua alterado, os bondes que não existiam mais -é a partir desses resíduos e dos flashes descontínuos da memória que as peças vão se ajustando e devolvendo à mãe uma trama organizada: "Tem interesse lembrar que minha mãe havia evocado em outras oportunidades a morte de Ana, mas a impressão era de que o episódio ganhava um relevo novo para ela na medida em que não vinha destacado da sequência de acontecimentos que o precediam e aos quais impunha o contorno de coisa fechada. Embora sensível a essa lógica era inegável que ela agora se surpreendia e que o seu estranhamento tinha a ver com o sentido da vida de Ana". Embora uma vida se feche e ganhe sentido no texto, há um resto intangível nas regiões mais íntimas da experiência que permanece intocável. Esse "gap", espécie de elo perdido que acompanha o ato criativo em geral, o narrador o incorpora, embora procure saber o máximo que pode, a ponto de condensar numa só a voz da informante, os ecos de outras vozes e a sua própria.
É justamente o lugar ambíguo ocupado por Ana depois da morte dos pais -o de filha de criação- que imprimirá à sua vida um caminho tortuoso. Remeto os leitores para o excelente ensaio de Vilma Arêas "A Idéia e a Forma: A Ficção de Modesto Carone" ( "Novos Estudos Cebrap", nº 49), em que toda a obra ficcional do autor é analisada, inclusive a primeira parte desse "Resumo de Ana". Nele, a ensaísta estuda minuciosamente, além dos aspectos estéticos da obra, as relações de trabalho no Brasil, a permanência até hoje das estruturas do passado colonial, mostrando que existe antes uma adaptação mais ou menos bem-sucedida do trabalho escravo do que sua extinção. O objetivo é entender a posição familiar e social de Ana, bem como sua trajetória, a partir desse lugar: uma escravização que inicia aos cinco anos, com roupa velha e instrução caseira, o contato com a riqueza e o estreitamento de laços com a patroa, a mimetização da etiqueta e dos hábitos culturais da família para a qual trabalha, as contradições que advêm dessa ambiguidade, e mais o casamento de conveniência, a família dividida, o desencanto com o amor, o bovarismo como válvula de escape, o alcoolismo, a tuberculose, a degradação, a morte.
Mediante um procedimento cubista que dá movimento às narrativas e permite a visibilidade a partir de múltiplos ângulos, inclusive a difícil ubiquidade de estar dentro e fora ao mesmo tempo, "Ciro" -a segunda parte do livro- ao mesmo tempo que dá continuidade à primeira, repassa o narrado em pauta dissonante e de outro ponto de vista. Por isso, embora cada uma das partes possa ser lida isoladamente, a leitura ganha com a articulação do conjunto. A prática cubista alcança resultados surpreendentes quando sobrepõe imagens e planos basculantes que mesclam passado e presente, multiplicando quadros, em que, do canto da cena, Ciro olha o narrador, incluindo-o.
A linguagem carrega consigo os lugares (e os textos) por onde passa. No romance de Modesto Carone há ecos de Flaubert, Henry James, Trakl, um certo Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto. Na face polida de sua forma, aparentada à escultura de Brancusi, está implícita uma valorização da epiderme da experiência, na qual se localizam os indícios do que acontece por baixo dela. Por essa razão não há pesquisa das essências, nem psicologia, e sim a superfície lisa que revela e alude, além de espelhar e integrar as imagens que, de fora, se refletem nela.
Figura quase secundária na primeira parte, Ciro ocupa uma posição específica no quadro familiar: "Negligenciado por Ana, a quem se sentia ligado, e preterido por Lazinha, que se apegara a Zilda, ele ficou a sós com o pai, que de fato o preferia". Sua vida no entanto se resume de certo modo à de seus pais: falido como o pai, acabará seus dias como vendedor ambulante de aguardente barata, abastecendo os bares que visitava na infância com a mãe, vivendo, assim, da mesma bebida que havia contribuído para matá-la. Criança chorona, é Ciro quem, desde muito novo, traz a bebida dos bares para a mãe; é ele também quem acompanha mais de perto seu declínio, seguindo-a quando caminha pelas ruas alterada pelo álcool.
A morte da mãe separa os irmãos para sempre e Ciro ficará trabalhando com o pai, que o alfabetizará. Marcado pelas dificuldades da vida material, por dissabores amorosos, só o casamento com Anita dará alguma estabilidade à sua vida, embora ele acabe isolado dentro da própria família, composta pelo casal e seis filhas, que trilham o destino de trabalho compulsório da avó, iludidas porém com uma vida de prestígio, promessa não cumprida pelo pai. Ciro morre do coração em 1990, aos 65 anos, selando -se tomada como referência a data de nascimento de Ana- cem anos de infortúnio e drama social, vincados pela sucessão de governos e reviravoltas políticas.
O leitor de "Ciro" que não leu "Resumo de Ana" não sabe quem é o narrador de timbre e matiz supostamente flaubertianos que conta a história, agora entremeada por interrupções nas quais o ponto de encontro entre mãe e filho, unidos na tarefa de desencavar uma história, na primeira novela, é preenchido pela descrição minuciosa da cidade -suas ruas e edifícios, a estação de trem, as praças, os bairros e os bondes. As transformações vão se tornando perceptíveis por um lance jogado pela matéria e imaginado pela memória. Esse espaço, entretanto, não funciona como suporte de percursos e discursos. Pelo contrário, é o movimento dirigido e o ponto de vista que produzem o espaço como campo de experiência, emprestando à cidade o poder de gerar sentidos: "O bar já não existe e a rua foi incorporada à zona de pedestres (...) A rua Treze de Maio está asfaltada e continua silenciosa (...) Até hoje a praça Frei Baraúna é dominada pelo fórum velho e pelo obelisco". É assim, no miúdo, que o narrador de "Ciro" vai objetivando seu laço de pertinência com o narrado, além de, em algumas passagens, contar explicitamente seus breves e intermitentes encontros com o personagem.
O último deles é o enterro do tio, no qual o sobrinho é um dos que conduzem o caixão. Desse modo o narrador sofre um giro, mostrando-se, na verdade, antiflaubertiano, embora consiga, com sua habilidade de equilibrista, estar dentro e fora do relato, ou estar dentro estando fora. A relação entre sobrinho e tio é de atenção e simpatia. Mais que isso, há uma afinidade entre os dois que passa pela escrita. O gosto e o capricho com que Ciro trabalha na gráfica, o interesse pela leitura e a desenvoltura para escrever são dados que antecipam a informação do narrador de que Ciro alimentava a intenção de se tornar escritor e imprimir um livro de memórias. Já no último encontro entre eles, na praça Dr. Artur Fajardo, quando o sobrinho narra para o tio o drama histórico da cidade -a Revolução Liberal de 1842, de que a praça é um cenário-, Ciro acompanha a história com interesse e comenta que "um dos prejuízos que sentia por não ter podido estudar é que não conhecia o único lugar onde havia vivido". Munido desse conhecimento, o sobrinho contará a história que o tio não alcançou contar e juntará os vários relatos partidos sobre a avó para dar-lhes o acabamento da forma estética. É nela, só nela, que algo se reconcilia, para potencializar ao máximo os conflitos, as emoções e os sentidos decantados a partir dessas "marcas do real".
"Resumo de Ana", na radicalidade de sua lei formal, inaugura, a meu ver, uma outra dicção -capaz de resumir uma sinfonia romântica a um minuto, como diria Anton Webern- tanto na ficção de Modesto Carone, como no âmbito de nossa literatura.

Berta Waldman é professora do departamento de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas.

Folha de São Paulo

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