HUGH LACEY
Estratégias da ciência
10/Out/98
Alberto Cupani
Na literatura filosófica contemporânea não faltam, certamente, livros sobre a relação da ciência com os valores. No entanto, a presente obra há de despertar, creio e espero, particular interesse.
Hugh Lacey já é conhecido dos leitores brasileiros pelo seu trabalho "A Linguagem do Espaço e do Tempo" (Perspectiva, 1972). Australiano de origem e casado com brasileira, este professor universitário lecionou na USP entre 1969 e 1971, pertencendo desde então ao departamento de filosofia do Swarthmore College (Pensilvânia, EUA). Em diversas viagens, quase anuais, ao Brasil para participar de congressos ou ministrar seminários, Lacey cultivou muitas amizades e promoveu o estudo da filosofia da ciência. Por sua vez, e por própria confissão, esses laços com o Brasil tiveram um "profundo impacto" no seu pensamento, como se aprecia no presente livro, pouco comum dentro da tradição filosófica a que se vincula.
Com efeito, não é frequente que filósofos "analíticos" (se por tais entendermos aqueles cuja preocupação é a análise conceitual rigorosa) abordem o tema do condicionamento social do conhecimento científico. Na maioria dos casos, o que interessa a este tipo de pensador são as questões intrínsecas àquele conhecimento, tais como a distinção entre saber científico e pseudociência, ou a justificação lógica das explicações científicas. Até os filósofos influenciados pela perspectiva historicista de Thomas Kuhn (como no caso de L. Laudan em "Science and Values") limitam sua análise ao âmbito das idéias científicas, ou, se se preferir, à dinâmica intelectual da comunidade científica enquanto tal, deixando para a sociologia da ciência a exploração das eventuais intromissões de fatores sociais (em sentido amplo) na geração do conhecimento.
A pressuposição geral tácita dessa maneira de conceber a filosofia da ciência é a de que a influência de valores sociais (enquanto manifestação de interesses) é ilícita e injustificável. Em outras palavras, não haveria uma continuidade conceitual entre os condicionamentos sociais e a índole das teorias e explicações científicas. A essa descontinuidade aludem, de diversas maneiras, as alegações de "autonomia", "imparcialidade" e "neutralidade" da ciência.
São precisamente essas noções que Lacey submete a uma minuciosa crítica. Para tanto, o livro procede a uma análise das noções-chave de "entendimento" e de "valor". A primeira designa uma certa compreensão da realidade, variável conforme o contexto, o foco de interesse e os agentes do discurso, que inclui sempre afirmações sobre o que algo "é", sobre "por que" ele é o que é e sobre as "possibilidades" que contém. O conhecimento científico (tal como encarnado nas ciências naturais exatas) é "uma" forma de entender o mundo, que se expressa tipicamente em teorias que representam -supõe-se- o mundo tal como ele é em si.
Seguindo Kuhn, Lacey nega essa pretensão: o entendimento científico está sempre mediado pelos "paradigmas", que Lacey prefere conceber como "estratégias" cognitivas. A ciência natural moderna procede conforme a estratégia "materialista" que obedece sempre ao propósito de controle da realidade, mesmo quando parece procurar o conhecimento "por si mesmo". A vinculação do conhecimento científico com o controle se evidencia ao repararmos no papel central do experimento na ciência moderna. O experimento é a típica -e decisiva- situação de controle da natureza, a partir da qual o conhecimento estende-se, por extrapolação, aos âmbitos não sujeitos ao controle humano.
A ciência, mediante as suas teorias, explica assim a realidade, não em si mesma, mas numa específica vinculação com a prática e as intenções humanas. A atitude científica responde destarte a um "valor" social determinado, tão predominante na sociedade moderna que passa por óbvio, embora não o seja em toda sociedade.
A análise feita por Lacey da noção de "valor" (irredutível a um significado único) é muito rica, incluindo não só a sua caracterização e classificação, como também a distinção de suas formas de manifestação (expressão, articulação, incorporação etc.). Vou limitar-me aqui à distinção entre valores cognitivos e valores sociais, essencial para entender a maneira como o autor concebe a relação da ciência com as valorações.
A "imparcialidade" significa para Lacey que uma teoria científica é corretamente aceita quando os únicos valores que entram na sua apreciação são os cognitivos (adequação empírica, poder explicativo, consistência etc). Conquanto difícil, a imparcialidade é um valor legítimo para Lacey.
Isso não impede todavia que as teorias "possíveis" dentro de um tipo de "entendimento" do mundo estejam condicionadas pelos valores (sociais) próprios de uma determinada "estratégia" de pesquisa. Longe de serem "neutras", as teorias geradas pela (e nela) ciência moderna respondem a uma estratégia que as "seleciona" em função do interesse predominante de controle e "restringe" as evidências relevantes àquelas pelas quais as entidades do mundo são captadas como passíveis de controle. A "neutralidade" da ciência, se por tal se entende a pretensão de que as teorias científicas não têm compromisso com qualquer cosmovisão ("perspectiva de valor"), é falsa para Lacey.
E, quanto à "autonomia", no sentido de acreditar que as agendas da comunidade científica se orientem exclusivamente pelo interesse de produzir teorias imparciais, embora não implausível, é duvidosa, na medida em que uma porção cada vez maior da pesquisa se dedica à busca da explicação ("imparcial") de fenômenos que interessam a instituições não científicas.
Em resumo, os valores sociais não podem intervir na determinação da "validade" do conhecimento (papel que cabe aos valores cognitivos), porém eles intervêm na determinação "teórica e prática" do "tipo de ciência" que (socialmente) se quer. A ciência é, assim, imparcial, às vezes autônoma, mas nunca neutra. A distinção entre valores cognitivos e sociais é crucial para o argumento de Lacey (que elabora sua posição em diálogo com teóricos como E. Mcmullin e H. Longino, entre outros). Se se exagera o papel dos primeiros, tende-se a conceber equivocadamente a ciência como completamente desinteressada. Quando se descuida a distinção daqueles valores com relação aos sociais, não apenas se apaga a distinção entre ciência e ideologia, como se torna inexplicável o sucesso cognitivo e prático da primeira.
As teses anteriores permitem a Lacey propor uma sustentação teórica para as críticas da ciência moderna que, apontando seu compromisso com os valores da sociedade liberal capitalista, reivindicam a necessidade de um novo tipo de ciência a serviço da transformação social. Esta é sem dúvida a parte mais original do livro (capítulos seis a oito), em que o autor argumenta convincentemente em favor da tese de que formas alternativas de teoria científica, igualmente "imparciais" (vale dizer, válidas e eficazes), requerem práticas sociais não permitidas pelo modelo social vigente. Examinando criticamente idéias de R. Bhaskar, Lacey defende a importância de preservar e estimular práticas socioculturais alternativas (por exemplo, as populares na América Latina) como germe de uma ciência socialmente emancipadora.
Particularmente valiosa parece-me sua opinião de que o impasse representado pela circunstância de que uma ciência "nova" requer práticas que atualmente não são possíveis ou implicam riscos pode ser quebrado pela decisão de fomentar as práticas, forçosamente limitadas, que manifestam valores alternativos desejados, avaliando-as constantemente.
Os comentários anteriores não esgotam os assuntos deste importante livro, surgido da reunião de artigos previamente publicados, a maioria em inglês. Cabe um alerta aos tradutores: no capítulo final, um erro na simbologia dificulta compreender uma parte da argumentação. No conjunto, trata-se de uma edição bem cuidada e atraente.
Alberto Cupani é professor do departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina.
Folha de São Paulo
Estratégias da ciência
10/Out/98
Alberto Cupani
Na literatura filosófica contemporânea não faltam, certamente, livros sobre a relação da ciência com os valores. No entanto, a presente obra há de despertar, creio e espero, particular interesse.
Hugh Lacey já é conhecido dos leitores brasileiros pelo seu trabalho "A Linguagem do Espaço e do Tempo" (Perspectiva, 1972). Australiano de origem e casado com brasileira, este professor universitário lecionou na USP entre 1969 e 1971, pertencendo desde então ao departamento de filosofia do Swarthmore College (Pensilvânia, EUA). Em diversas viagens, quase anuais, ao Brasil para participar de congressos ou ministrar seminários, Lacey cultivou muitas amizades e promoveu o estudo da filosofia da ciência. Por sua vez, e por própria confissão, esses laços com o Brasil tiveram um "profundo impacto" no seu pensamento, como se aprecia no presente livro, pouco comum dentro da tradição filosófica a que se vincula.
Com efeito, não é frequente que filósofos "analíticos" (se por tais entendermos aqueles cuja preocupação é a análise conceitual rigorosa) abordem o tema do condicionamento social do conhecimento científico. Na maioria dos casos, o que interessa a este tipo de pensador são as questões intrínsecas àquele conhecimento, tais como a distinção entre saber científico e pseudociência, ou a justificação lógica das explicações científicas. Até os filósofos influenciados pela perspectiva historicista de Thomas Kuhn (como no caso de L. Laudan em "Science and Values") limitam sua análise ao âmbito das idéias científicas, ou, se se preferir, à dinâmica intelectual da comunidade científica enquanto tal, deixando para a sociologia da ciência a exploração das eventuais intromissões de fatores sociais (em sentido amplo) na geração do conhecimento.
A pressuposição geral tácita dessa maneira de conceber a filosofia da ciência é a de que a influência de valores sociais (enquanto manifestação de interesses) é ilícita e injustificável. Em outras palavras, não haveria uma continuidade conceitual entre os condicionamentos sociais e a índole das teorias e explicações científicas. A essa descontinuidade aludem, de diversas maneiras, as alegações de "autonomia", "imparcialidade" e "neutralidade" da ciência.
São precisamente essas noções que Lacey submete a uma minuciosa crítica. Para tanto, o livro procede a uma análise das noções-chave de "entendimento" e de "valor". A primeira designa uma certa compreensão da realidade, variável conforme o contexto, o foco de interesse e os agentes do discurso, que inclui sempre afirmações sobre o que algo "é", sobre "por que" ele é o que é e sobre as "possibilidades" que contém. O conhecimento científico (tal como encarnado nas ciências naturais exatas) é "uma" forma de entender o mundo, que se expressa tipicamente em teorias que representam -supõe-se- o mundo tal como ele é em si.
Seguindo Kuhn, Lacey nega essa pretensão: o entendimento científico está sempre mediado pelos "paradigmas", que Lacey prefere conceber como "estratégias" cognitivas. A ciência natural moderna procede conforme a estratégia "materialista" que obedece sempre ao propósito de controle da realidade, mesmo quando parece procurar o conhecimento "por si mesmo". A vinculação do conhecimento científico com o controle se evidencia ao repararmos no papel central do experimento na ciência moderna. O experimento é a típica -e decisiva- situação de controle da natureza, a partir da qual o conhecimento estende-se, por extrapolação, aos âmbitos não sujeitos ao controle humano.
A ciência, mediante as suas teorias, explica assim a realidade, não em si mesma, mas numa específica vinculação com a prática e as intenções humanas. A atitude científica responde destarte a um "valor" social determinado, tão predominante na sociedade moderna que passa por óbvio, embora não o seja em toda sociedade.
A análise feita por Lacey da noção de "valor" (irredutível a um significado único) é muito rica, incluindo não só a sua caracterização e classificação, como também a distinção de suas formas de manifestação (expressão, articulação, incorporação etc.). Vou limitar-me aqui à distinção entre valores cognitivos e valores sociais, essencial para entender a maneira como o autor concebe a relação da ciência com as valorações.
A "imparcialidade" significa para Lacey que uma teoria científica é corretamente aceita quando os únicos valores que entram na sua apreciação são os cognitivos (adequação empírica, poder explicativo, consistência etc). Conquanto difícil, a imparcialidade é um valor legítimo para Lacey.
Isso não impede todavia que as teorias "possíveis" dentro de um tipo de "entendimento" do mundo estejam condicionadas pelos valores (sociais) próprios de uma determinada "estratégia" de pesquisa. Longe de serem "neutras", as teorias geradas pela (e nela) ciência moderna respondem a uma estratégia que as "seleciona" em função do interesse predominante de controle e "restringe" as evidências relevantes àquelas pelas quais as entidades do mundo são captadas como passíveis de controle. A "neutralidade" da ciência, se por tal se entende a pretensão de que as teorias científicas não têm compromisso com qualquer cosmovisão ("perspectiva de valor"), é falsa para Lacey.
E, quanto à "autonomia", no sentido de acreditar que as agendas da comunidade científica se orientem exclusivamente pelo interesse de produzir teorias imparciais, embora não implausível, é duvidosa, na medida em que uma porção cada vez maior da pesquisa se dedica à busca da explicação ("imparcial") de fenômenos que interessam a instituições não científicas.
Em resumo, os valores sociais não podem intervir na determinação da "validade" do conhecimento (papel que cabe aos valores cognitivos), porém eles intervêm na determinação "teórica e prática" do "tipo de ciência" que (socialmente) se quer. A ciência é, assim, imparcial, às vezes autônoma, mas nunca neutra. A distinção entre valores cognitivos e sociais é crucial para o argumento de Lacey (que elabora sua posição em diálogo com teóricos como E. Mcmullin e H. Longino, entre outros). Se se exagera o papel dos primeiros, tende-se a conceber equivocadamente a ciência como completamente desinteressada. Quando se descuida a distinção daqueles valores com relação aos sociais, não apenas se apaga a distinção entre ciência e ideologia, como se torna inexplicável o sucesso cognitivo e prático da primeira.
As teses anteriores permitem a Lacey propor uma sustentação teórica para as críticas da ciência moderna que, apontando seu compromisso com os valores da sociedade liberal capitalista, reivindicam a necessidade de um novo tipo de ciência a serviço da transformação social. Esta é sem dúvida a parte mais original do livro (capítulos seis a oito), em que o autor argumenta convincentemente em favor da tese de que formas alternativas de teoria científica, igualmente "imparciais" (vale dizer, válidas e eficazes), requerem práticas sociais não permitidas pelo modelo social vigente. Examinando criticamente idéias de R. Bhaskar, Lacey defende a importância de preservar e estimular práticas socioculturais alternativas (por exemplo, as populares na América Latina) como germe de uma ciência socialmente emancipadora.
Particularmente valiosa parece-me sua opinião de que o impasse representado pela circunstância de que uma ciência "nova" requer práticas que atualmente não são possíveis ou implicam riscos pode ser quebrado pela decisão de fomentar as práticas, forçosamente limitadas, que manifestam valores alternativos desejados, avaliando-as constantemente.
Os comentários anteriores não esgotam os assuntos deste importante livro, surgido da reunião de artigos previamente publicados, a maioria em inglês. Cabe um alerta aos tradutores: no capítulo final, um erro na simbologia dificulta compreender uma parte da argumentação. No conjunto, trata-se de uma edição bem cuidada e atraente.
Alberto Cupani é professor do departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina.
Folha de São Paulo
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