segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O FIM DA CIÊNCIA

JOHN HORGAN
Busca sem fim
08/Ago/98
Henrique Fleming

Em 1957, os físicos chineses Chen Ning Yang e Tsung-Dao Lee ganharam o Prêmio Nobel de Física por uma descoberta que surpreendeu o mundo científico, relatada no artigo "Indagação Sobre a Conservação da Paridade nas Interações Fracas". Curiosamente, foi o Prêmio Nobel de Física que despertou maior interesse popular até hoje, ganhando as páginas da grande imprensa, suscitando muitos debates em todos os níveis, dando aos jovens autores da descoberta uma fama duradoura. Como explicar que assunto tão especializado, na época inteligível apenas para os físicos de partículas elementares, possa ter tido tal repercussão?
Em palavras do cotidiano, o trabalho de Lee e Yang respondia a seguinte questão. Suponhamos que exista uma civilização remota, de seres semelhantes a nós e com a qual podemos nos comunicar apenas pelo rádio. Seria possível explicar a eles qual de suas mãos (supostamente duas!) é a que chamamos de mão esquerda (nada sabemos sobre a posição de seus corações etc.)? Yang e Lee mostraram que sim: bastava, por exemplo, realizar algumas experiências com neutrinos. Ou seja, o neutrino é um "padrão de mão esquerda" que pode ser usado em qualquer lugar do mundo para estabelecer uma convenção universal de canhotismo. (Tecnicamente isso significa que o universo é orientável.)
Uma vez explicada assim, a descoberta encantou o mundo. Ora, exceto pelo foro privilegiado da física das partículas elementares, não possuía qualquer aplicação prática. Tratava-se de conhecimento novo em forma pura. A enorme repercussão da descoberta de Yang e Lee ensina tanto sobre o universo quanto sobre a natureza do espírito humano.
Recentemente, o jornalista americano John Horgan publicou o livro "O Fim da Ciência", em que prediz o fim desse tipo de descoberta realizada por Yang e Lee, de teorias e leis fundamentais. Segundo ele, resta à ciência dedicar-se "apenas" à descoberta das aplicações, mais ou menos práticas, das grandes teorias já descobertas.
Quem é esse cidadão? Com base em que, e por que, se arrisca a essa previsão? Horgan foi, por alguns anos, editor científico da revista "Scientific American", que se dedica a divulgar ao público as descobertas científicas por meio de artigos escritos pelos próprios descobridores. Como os cientistas não chegaram à fama pelos seus dotes literários, a revista dispunha dos tais editores científicos que modificavam, aqui e ali, o texto original, tornando-os, na opinião da revista, mais legíveis. Para os autores (há testemunhos escritos), eles estropiavam os textos, isto sim.
A verdade está no meio, como sempre. Horgan é apresentado, em uma página da Internet, como um ilustre jornalista americano, premiado, e que já publicou mais de 400 artigos, "alguns dos quais com mais de 4.000 palavras". Trata-se de um homem educado, de boas leituras, que dirigiu seus estudos superiores, inicialmente, à crítica literária, que veio a abandonar, desiludido, quando se convenceu de que todos os textos "são 'irônicos': eles têm múltiplos significados, nenhum dos quais definitivo". Esse significado da palavra irônico retirou-o de Northrop Frye, na obra "Anatomia da Crítica" (Cultrix). Horgan identificará, mais adiante, teorias científicas irônicas e dedicará a elas toda a sua indignação.
A inspiração para a sua escatologia da ciência vem também da sua origem literária, mais precisamente de sua admiração pelo conhecido livro de Harold Bloom, "A Angústia da Influência". Nesse livro Bloom analisa o pesado que é, para um poeta, ser forçado a se medir, todo o tempo, com luminares como Shakespeare, Dante e Milton. A tentativa de superá-los acaba por paralisá-lo. A poesia se torna impossível, acaba. O mesmo ocorreria com a ciência: a mecânica quântica, a relatividade geral, o modelo padrão das partículas elementares, na física, a teoria de Darwin, a estrutura do DNA, na biologia, são, segundo Horgan, teorias e descobertas tão extraordinárias e fundamentais que, como os grandes poetas, paralisariam a marcha da ciência ou permitiriam apenas a atividade de epígonos.
Finalmente, por que, sobre base tão frágil, escreveu um livro de mais de 350 páginas? Principalmente, creio, por estar sinceramente alarmado com a sua previsão. Horgan é um divulgador e sabe que, na sua profissão, a ciência que causa impacto é a ciência como a de Yang e Lee e a de Einstein, de resultados extremamente gerais e abstratos.
Vejam o espetacular sucesso do livro de Stephen Hawking, "Uma Breve História do Tempo", em que o autor impõe, em certo ponto, regras de funcionamento ao próprio Deus. A motivação secundária está, com todas as letras, no livro, nos agradecimentos. "Sou grato ao meu agente (...) por me ajudar a transformar uma idéia amorfa numa proposta vendável." Não me oponho a que seja vendável. Dostoievski escrevia para pagar as dívidas do jogo e Paulo Francis dizia que só um louco escreve sem ser por dinheiro. Porém, e esta é a chave de minha crítica, a idéia continua amorfa.
O crescimento da ciência se dá tanto pela expansão (criação de novas teorias, mais abrangentes) quanto pelo detalhamento (exploração das consequências das teorias vigentes). Que a expansão algum dia cesse em algumas das áreas da ciência é de se esperar, por várias razões. A dificuldade de financiar essa expansão é a primeira e já afeta algumas áreas, como a física das partículas elementares. A educação dos pesquisadores é a segunda. Novas teorias (a experiência mostra) não dispensam o estudo daquelas que as precederam. Logo, há cada vez mais coisas a estudar para se chegar à fronteira onde se dá, efetivamente, a pesquisa. A alternativa, a especialização, é um paliativo, não uma solução. Levando-se ainda em consideração que a pesquisa inovadora é predominantemente feita por jovens, vê-se a magnitude do problema.
No campo da física, porém, as descobertas mais bonitas e relevantes feitas recentemente não estão ligadas à expansão, mas ao detalhamento. Por exemplo, o estudo dos sistemas que estão na região em que a física clássica começa a falhar e a física quântica começa a ser indispensável. São os sistemas mesoscópicos, e o estudo deles está levando a resultados de enorme valor prático e conceitual.
Esses, porém, não são os problemas da ciência, para Horgan. Para ele a ciência carrega inevitavelmente a semente de sua morte, e essa semente é o seu sucesso: é a teoria de Bloom transportada à ciência. Como método para comprovar a sua tese, apresenta várias entrevistas com cientistas de renome, em sua maioria (segundo Horgan) apoiando a sua tese; alguns são contrários ou mesmo veementemente contrários. Sua idéia original, diz o autor, era deixar que o leitor tomasse sua própria decisão. No fim, resolveu deixar sempre bem clara a sua posição e o conseguiu, às vezes com alguma truculência.
Nas entrevistas acontece de se perceber que o autor não está à altura do entrevistado. Isso é claro, por exemplo, na entrevista com o grande físico estatístico Kadanoff. Diz este que a tarefa mais importante da ciência é demonstrar a existência de leis naturais e que, uma vez isto feito, está feito; fazê-lo de novo não constitui progresso nessa empreitada. Horgan considera então Kadanoff como um apoiador de sua tese. No entanto, são coisas inteiramente diferentes! Em nenhum momento diz Kadanoff que não haverá a descoberta de leis mais sofisticadas e abrangentes do que as que temos hoje. Apenas que a descoberta de que a natureza obedece a leis já foi feita. E possivelmente considere que essa descoberta foi feita por Isaac Newton!
O melhor exemplo dos abusos de Horgan está na entrevista com Edward Witten, um dos líderes da física teórica contemporânea. Witten é um físico de partículas elementares e o principal motor da teoria das supercordas. Esta propõe um progresso essencial para a física da microestrutura da matéria, para lá do famoso modelo padrão (que é o que temos de melhor hoje em dia). A teoria das supercordas padece do seguinte problema: as experiências cruciais para testá-la (e distingui-la do modelo padrão) não podem ser atualmente feitas, tal o porte do equipamento necessário para realizá-las. Ou seja, não sabemos se essa estrutura matemática é física. Vou usar o nome de "pré-teoria" para ela e suas congêneres. Antes de seu primeiro teste experimental, a teoria geral da relatividade, por exemplo, era também uma pré-teoria.
O que pode atrair um físico para uma pré-teoria? No caso de Einstein havia, pelo menos, dois fatores: era uma generalização mais ou menos inevitável da relatividade restrita e resolvia o problema da igualdade entre a massa inercial e a massa gravitacional. No caso de Witten, ele mesmo explica claramente a Horgan que o que o ligou inexoravelmente à teoria das cordas foi perceber que nela a interação gravitacional era uma consequência inevitável das outras interações. Esse é um dos temas centrais da física: a busca da unificação das várias interações. E aqui a gravitação aparecia sem mesmo ter sido convidada! O difícil é explicar como um físico poderia ficar indiferente a esse pequeno milagre.
A existência de uma pré-teoria é um sinal de vida, uma objeção clara à existência de uma paralisia da capacidade criativa no domínio do abstrato. Propõe idéias novas, novos caminhos. Pesquisas de Witten prévias às supercordas, mas igualmente pré-teóricas, levaram-no a resolver problemas tão importantes na matemática, que lhe foi concedida a medalha Fields, o maior dos prêmios a que um matemático pode aspirar, até então jamais outorgada a um físico. Uma riqueza em pré-teorias não invalida diretamente a tese de Horgan, mas mostra que o pilar no qual ela assenta está rachado: não há paralisia detectável em consequência do sucesso das teorias atuais.
Compreensivelmente Horgan investe contra as pré-teorias, que ele chama de "ciência irônica". São rotuladas de física irônica a teoria das supercordas, o modelo inflacionário do universo, a cosmologia quântica. Não concede a Witten o direito de se dedicar à teoria das supercordas. Usa argumentos perigosos: ninguém conseguiu me explicar o que é, efetivamente, uma supercorda... Pode-se entender a sua fúria: deixara a crítica literária por causa da ironia; tornara-se um empirista radical. Seus inimigos são, agora, as pré-teorias.
Seu relato da entrevista com Witten pode ser resumido assim: Witten é feio (tem um queixo enorme), arrogante e, o que Horgan imagina ser um insulto, aquilo que fez na matemática é mais importante do que o que fez na física. No final da entrevista, Witten, para lhe explicar o que considera a inevitabilidade das supercordas, imagina uma outra civilização e as diferentes maneiras pelas quais poderiam chegar às supercordas. É um recurso didático comum entre físicos. Eu mesmo o usei, nesta resenha, para explicar a descoberta de Yang e Lee. Pois bem, no sumário do livro encontra-se o item: "Edward Witten fala sobre supercordas e alienígenas"!
O leitor terá notado que eu não gostei do livro. No entanto, ele tem suas virtudes: apresenta os cientistas como gente normal, com os defeitos comuns, na proporção usual, salvo talvez a vaidade. Várias histórias são deliciosas, sobretudo a do cheque de Gell-Mann.
Murray Gell-Mann é um dos monstros sagrados da física das partículas elementares. Entre outras coisas, inventou os quarks, que julgamos ser os constituintes dos prótons e dos neutrons, ou seja, da matéria que pesa. Durante mais de uma década dominou a cena nessa área da física, quase como um oráculo (que difundia suas profecias, porém, em linguagem muito clara e precisa). Tornou-se um nome popular após a publicação de seu livro de divulgação "O Quark e o Jaguar" (Rocco), que versa sobre a área da ciência denominada "complexidade" (cujo fim também está incluído no "Diktat" horganiano). Após a entrevista, Horgan o acompanha ao aeroporto e aí Gell-Mann descobre que chegará ao seu destino sem dinheiro para o táxi. Horgan dá-lhe 50 dólares em troca de um cheque. Gell-Mann se afasta, retorna sobre seus passos e lhe diz: "Pense bem antes de descontar esse cheque: minha assinatura pode vir a valer bem mais do que 50 dólares". Nesse caso creio que a narrativa seja fiel. Gell-Mann é assim mesmo.
Há muita informação no livro e uns poucos erros que só irritarão os especialistas.
Embora eu tenha me atido à física, Horgan tem o mesmo a dizer sobre todas as ciências e até sobre a filosofia da ciência. Esta é outra objeção comumente feita à sua tese: como é possível que todas as ciências tenham chegado simultaneamente ao fim, se tiveram histórias e cronologias tão diferentes? Mas a opinião final deve ser a do leitor.
O volume é bonito, a tipografia é de qualidade. Ótima lista de referências, que estende a utilidade do texto. Quanto à tese de Horgan, ninguém sabe se é verdadeira. E não é nem mesmo muito relevante, pois o progresso da ciência provém de lugares inesperados, não necessariamente da chamada "big science".


Henrique Fleming é professor do Instituto de Física da USP.

Folha de São Paulo

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