segunda-feira, 27 de outubro de 2008

MIL ANOS DE FELICIDADE - UMA HISTÓRIA DO PARAÍSO

JEAN DELUMEAU

A tradição do reino milenar
08/Ago/98
Maria Das Graças Nascimento


Seriam as teorias modernas do progresso frutos laicizados da tradição milenarista? Ou, então, poderíamos crer que os revolucionários do século 20 já estavam prefigurados em Joaquim de Fiore, Müntzer ou Savonarola? Por mais estranho que isto nos possa parecer, estas são duas teses fundamentais do livro de Delumeau sobre o milenarismo. A expectativa dos milenaristas de uma felicidade terrestre coletiva teria criado, nas mentalidades do Ocidente, a possibilidade da formulação das doutrinas do progresso. Além disso, nas palavras do próprio Delumeau, "Marx, Mao e Pol Pot são incompreensíveis se não os reintroduzirmos no interior da linhagem quiliasta em sua versão exacerbada: a que insistia sobre a ruptura brutal necessária para a entrada na era de felicidade".
Mas retomemos as coisas do começo. O milenarismo se apresenta como uma concepção muito particular da história, segundo a qual, num futuro próximo, o Cristo voltará ao mundo para inaugurar uma época de felicidade na Terra, que durará mil anos, ao fim dos quais haverá o juízo final e o início do reino celeste. A doutrina se inspira sobretudo nas profecias do Antigo Testamento e no Apocalipse de São João. Esta era feliz, sem dor nem sofrimento, será precedida de um período de catástrofes. Mas, uma vez inaugurada, os homens não mais sofrerão durante todo o reino milenar. Trata-se de uma visão escatológica distinta daquela de matriz agostiniana. Com se sabe, para Agostinho, que combateu severamente o milenarismo, é fundamental manter a distinção entre a cidade terrestre e a de Deus, que os milenaristas tendem a confundir, e a volta de Cristo dará início de modo imediato ao juízo final e ao reino dos céus. Para a tradição quiliasta, o milênio é uma época situada exatamente entre o tempo da história e a eternidade.
Apesar da crítica de Agostinho, a tradição milenarista sobreviveu mais ou menos marginalizada, mas difundida por uma certa literatura profética clandestina, até que, por volta do século 11, ressurge com toda força, desta vez, como mostra Delumeau, aliada a um discurso contestatário contra a Igreja e os poderes estabelecidos, e mesmo a ações concretas, como o caso de Eudes de l'Étoile, do oeste da França, que chegou a organizar grupos armados para atacar prédios religiosos e se apresentava como o filho de Deus, salvador dos últimos dias e antecipador do milênio.
Mas a figura mais marcante do período é certamente Joaquim de Fiore, sobretudo tendo em vista a quantidade de pensadores milenaristas que nos anos e séculos seguintes reivindicavam a herança joaquimista. De Fiore julgava que a história dos homens estava dividida em três grandes épocas: a primeira, anterior à graça, a segunda, da graça, e a última, que estaria por chegar, era a época sem dor e sofrimento. Estes últimos tempos teriam uma perfeição puramente espiritual. Deste modo, o joaquimismo influenciou os movimentos de pobreza dos séculos 13 e 14, assim como organizações milenaristas de homens e mulheres leigos na Itália e a chamada contestação flagelante no século 13 na Alemanha. A marca destes movimentos é a crítica da riqueza da Igreja e da hierarquia religiosa, o apelo à pobreza e à purificação espiritual.
A partir do século 14, várias movimentações sociais foram de inspiração milenarista. Wyclif pregava contra a propriedade privada e a nobreza; Huss concebeu a idéia das cinco cidades eleitas e liderou conflitos armados; Bohn anunciava uma sociedade igualitária. Estes movimentos tiveram o seu ponto alto no início do século 16, com o que Delumeau chama de o grande episódio milenarista da época: a guerra dos camponeses alemães e a ocupação da cidade de Münster pelos anabatistas. Mesmo a noite de São Bartolomeu, na opinião de Delumeau, deve ser interpretada pela ótica da escatologia milenarista daqueles tempos.
Deste modo, vê-se que a doutrina ultrapassou fronteira nacionais e confessionais. Delumeau reconstitui os traços desta tradição, desde os primórdios do cristianismo até o início da idade moderna, com a seriedade que caracteriza todos os seus trabalhos: recurso incansável às fontes, cuidado na análise, esforço de síntese. Procura então mostrar que, a partir do século 18, ocorreu um processo de laicização da expectativa milenarista, do qual resultarão as teorias iluministas do progresso.
Em ambas as concepções, entende-se que a história se dá numa trajetória linear, ao fim da qual a humanidade encontrará a felicidade. A prova disto é que, no século 19, a perspectiva cristã se associa perfeitamente à idéia de progresso, tal como acontece com Joseph de Maistre, Lessing e Herder. Mas a tese de Delumeau vai ainda além: referindo-se ao que denomina a dimensão messiânica do socialismo, cita uma passagem famosa da marcha "Internacional Socialista" e afirma que o marxismo apenas retirou do milenarismo clássico o desfecho final previsto pelas profecias, ou seja, o juízo final.
Assim, o milenarismo é tomado como uma espécie de parâmetro de leitura que permite interpretar as principais concepções da história elaboradas no Ocidente. O autor aponta, evidentemente, diferenças entre a doutrina do milênio e as teorias do progresso e o marxismo: a primeira, de matriz cristã, afirma que ao final do tempo feliz de mil anos ocorrerá o juízo final e o início do reino dos céus pela eternidade, enquanto que os partidários do progresso da humanidade ou os socialistas ficam só com a felicidade terrestre. Além disto, o milênio, como se acreditava, ia acontecer em breve. A idéia de uma espera ou de uma preparação prolongada é estranha aos milenaristas.
Ora, assim como Delumeau se refere às doutrinas do progresso e à doutrina marxista da história como resultado de uma laicização do milenarismo cristão, creio que poderíamos nós dizer que ele, o autor, opera uma espécie de cristianização das modernas teorias da história. Pois, para além da idéia de uma felicidade terrestre futura que seria o fundo comum destas teorias, traços fundamentais as distinguem, quanto à sua própria natureza. Tanto nas teorias do progresso quanto nas concepções socialistas, estão ausentes os elementos propriamente constitutivos da concepção cristã da história.
Em outras palavras: não há, para os iluministas do progresso, nem para os marxistas, idéia de uma queda originária. Se não há queda, a construção da sociedade feliz não pode ser considerada como regeneração nem como redenção. Do mesmo modo, não há, nestas mesmas concepções, profecia em sentido estrito. A sociedade do progresso ou a sociedade comunista não são fins inexoráveis. Elas serão o resultado de uma ação precisa dos homens, seja a ação pedagógico-política dos intelectuais, no primeiro caso, seja a ação revolucionária de uma classe, no segundo, enquanto que a instauração do milênio é obra da providência divina, prevista desde o início dos tempos e portanto é algo que ocorrerá independentemente da ação humana.
Em suma, o que dá sentido à história, para o cristianismo, numa vertente milenarista ou não, é que ela é marcada por um acontecimento originário, a queda, por um outro fundamental, que é a redenção, e por um termo inalterável, o juízo final. Estes elementos, constitutivos da teologia cristã da história, são eles mesmos extra-históricos. Transportá-los para o interior das doutrinas modernas da história pode nos dar a impressão confortadora de uma continuidade na história das idéias sobre o futuro da humanidade. Mas certamente pode nos levar a deixar de prestar atenção à diferença principal entre estas vertentes, do ponto de vista mesmo da causalidade histórica: pois é constitutivamente diferente dizer que o motor da história é a providência divina e dizer que são os homens mesmos que fazem a história, mesmo que não saibam que o fazem.
Maria das Graças S. Nascimento é professora do departamento de filosofia da USP e autora de "Voltaire - A Razão Militante" (Moderna).

Folha de São Paulo

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