segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A metafísica de Lukács


12/Set/98
Ricardo Musse


A nova edição brasileira do livro mais conhecido e difundido de Michael Löwy -publicado na França em 1976, traduzido nas principais línguas do Ocidente e citado na bibliografia da maior parte dos comentários às obras de Georg Lukács- traz apenas uma modificação, não inteiramente secundária, um novo título. A primeira edição, vertendo (quase) literalmente o título do original francês, chamava-se "Para uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários" (Ed. Ciências Humanas, 1979). No prefácio à nova edição, Löwy justifica tal metamorfose com uma simples frase, nem por isso menos peremptória: "Trata-se, na verdade, de um livro sobre Lukács e não de uma sociologia dos intelectuais revolucionários".
A questão do nome não é tão bizantina assim quanto parece. A oscilação do autor acerca do que seria mais importante em seu livro revela, além de uma mudança no "espírito do tempo", os problemas de estruturação da obra. Esta se compõe de três blocos bem delimitados: um esboço de uma sociologia dos intelectuais revolucionários (na metade inicial do primeiro capítulo e na conclusão), uma breve história das idéias anticapitalistas na Alemanha e na Hungria no início do século e um acompanhamento da trajetória intelectual de Lukács entre 1909 e 1929, a partir dos seus textos mais importantes.
A descontinuidade, evidente na mera enumeração dos assuntos ali tratados, não se deve apenas à tenuidade do fio que articula as diversas partes: a suposição que o exame de um caso particular daria aval a algumas generalizações acerca das causas sociais e ideológicas da passagem dos intelectuais tradicionais às fileiras do movimento operário. A heterogeneidade entre os blocos deriva basicamente da variação do método de acordo com o assunto (em última instância, por uma adequação convencional ao gênero) em cada um dos três movimentos.
A tentativa de compreensão da conversão dos intelectuais à política revolucionária, examinada em dois momentos chave, após 1917 e em torno de 1968, como o título original indica, é feita no registro sociológico, mais precisamente como um caso particular de um possível alinhamento de setores da "pequena-burguesia" com o proletariado (em situações em que a burguesia nacional desistiu de seu papel revolucionário). A análise marxista das classes, no entanto, insere-se, desde a determinação inicial do objetivo da investigação, num diálogo com a sociologia do conhecimento de Karl Mannheim e com a versão francesa dessa disciplina, capitaneada por Lucien Goldmann. Deriva daí talvez a subordinação da explicação histórica do fenômeno à busca de generalizações sociológicas, o que acarretou um envelhecimento precoce da pesquisa (admitida, no prefácio, pelo próprio Löwy), num momento em que a compreensão da trajetória dos intelectuais (agora, no movimento inverso, aderindo à grande burguesia financeira) tornou-se um ponto decisivo para a compreensão da atualidade (e não só no Brasil).
No segundo bloco -um estudo da "intelligentsia" radical na Alemanha e na Hungria nas duas primeiras décadas desse século-, a sociologia cede lugar à história das idéias. Acompanham-se aí, em breves exposições, as críticas ao capitalismo (em geral, apenas culturais) dos membros dos círculos pelos quais passou Lukács (uma lista que quase se confunde com a enumeração dos intelectuais burgueses mais importantes da época): Ferdinand Tönnies, Theodor Storm, Max Weber, Georg Simmel, Paul Ernst, Robert Michels, Ernst Toller, Ernst Bloch (na Alemanha), Esdre Ady, Ervin Szabo e Karl Mannheim (na Hungria).
Aqui já se manifesta a preocupação de Löwy com a recorrência romântica, tema que se tornará uma das preocupações centrais da sua obra subsequente (veja, por exemplo, "Revolta e Melancolia - O Romantismo na Contramão da Modernidade", Vozes, 1995). Por romantismo, ele entende não a escola literária do século 19, mas "o grande movimento de protesto contra a civilização capitalista/industrial moderna", geralmente feito em nome de valores do passado, numa linhagem que se estende de Jean-Jacques Rousseau ao surrealismo, denunciando as "desolações da modernidade burguesa: desencantamento do mundo, mecanização, reificação, quantificação, dissolução da comunidade humana". Em "A Evolução Política de Lukács", Löwy ainda tomava a trajetória do pensador húngaro e, de certo modo, do próprio Marx como uma passagem do anticapitalismo romântico para a tradição oposta, iluminista e democrática. Posteriormente tendeu a relativizar cada vez mais (e até mesmo a inverter) esse juízo, como deixa claro em "Romantismo e Messianismo" (Perspetiva/Edusp, 1990).
Ao renomear seu livro privilegiando a descrição do itinerário de Lukács, Michael Löwy não deixa de fazer justiça à superioridade do terceiro bloco, já reconhecida aliás pela recepção internacional do livro. Trata-se de uma apresentação, bem amarrada e executada, da obra de Lukács desde "A História da Evolução do Drama Moderno" (1909) até as "Teses de Blum" (1928), passando pelos consagrados "A Alma e as Formas" (1910), "A Teoria do Romance" (1916) e "História e Consciência de Classe" (1923). Nessa parte, o modelo já não é mais a sociologia do conhecimento, nem a história das idéias, mas a tradicional exposição da trajetória intelectual de um pensador importante. O mérito do livro, aqui, reside na riqueza de informações, no domínio e no manejo de conhecimentos de diversas áreas e também na clareza, isto é, na facilidade de Löwy em destacar e explicar o que há de mais importante e decisivo em obras geralmente pouco acessíveis (para não dizer quase herméticas) ao leitor não especializado. Trata-se, em suma, de uma aplicação bem realizada dos valores próprios da visão educacional do iluminismo.
Para o leitor que busque mais que uma exposição sintética da obra do pensador húngaro, o livro, apesar de instigante, não deixa de ser decepcionante. A trajetória de Lukács é reconstituída, em grande medida, tomando por base o caminho traçado por ele próprio em uma série de esboços autobiográficos, recapitulações, revisões da sua evolução, "autocríticas", depoimentos e entrevistas. O problemático aqui não é só a ingenuidade de Löwy em se fiar numa reconstrução geralmente orientada por objetivos políticos imediatos (e feita, em larga medida, sob a pressão do stalinismo), mas principalmente a recusa do preceito materialista de que cabe antes investigar a motivação histórica do agente do que tentar compreendê-lo pela justificativa da ação (em geral, fruto de uma "ilusão").
A desconsideração pela história econômica do capitalismo e também, de certo modo, pela história das lutas de classes (num período em que o embate entre burguesia e proletariado ainda ditava os rumos da humanidade), conduziu Löwy ao paradoxo de tentar explicar a evolução política de um ativista e intelectual marxista exclusivamente pelos seus textos. Isso, além de configurar uma rendição metodológica ao idealismo (em grande medida, matriz de histórias das idéias convencionais), significa uma recaída na suposição metafísica (rejeitada por Marx, Nietzsche e Freud) que a ação e a orientação de Lukács esteve impulsionada apenas por adesões intelectuais. Essa deficiência do método de Löwy fica patente, por exemplo, na sua análise política de "História e Consciência de Classe". A tese de que se trata de um livro "leninista" ignora tanto os artigos que reivindicam explicitamente o legado de Rosa Luxemburg quanto o teor das críticas a Bernstein e a Kautsky (mas também a Engels), manifestações inequívocas de que nesse momento Lukács preferia pensar por conta própria.
Mas nem sempre Löwy se equivoca. Sua análise da trajetória de Lukács após 1929 (eis aí outra deficiência do título atual), ao deixar de lado a análise pormenorizada de textos e concentrar-se nas linhas mestras do debate político é, no mínimo, brilhante.

Ricardo Musse é professor de filosofia na Unesp.

Folha de São Paulo

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