segunda-feira, 27 de outubro de 2008

OS NOVOS CÃES DE GUARDA

SERGE HALIMI
As grifes do jornalismo
14/Nov/98
Bernardo Kucinski


É curioso como a metáfora do "cão de guarda" pode ser aplicada com sentidos tão antagônicos ao mundo do jornalismo. Os americanos gostam de definir seus jornais como os cães de guarda ("watchdog") dos interesses públicos. Já Serge Halimi, em seu livro sobre a mídia francesa, analisa não uma imprensa que vigia o Estado e disseca seus segredos, mas que, ao contrário, age como braço auxiliar do governo e como força tarefa do projeto de implantação do neoliberalismo na França.
Halimi focaliza um pequeno grupo de jornalistas que ocupam posições estratégicas na mídia francesa e dão o tom de toda a cobertura jornalística. Aparecem todos os dias na televisão e várias vezes num mesmo dia em comentários de rádio. Também colaboram nos principais jornais e revistas; escrevem as críticas dos livros sobre política e suas colunas são reproduzidas em grande número de jornais do interior. Seu papel, na definição de um deles, Patrick Poire d'Arvor, o mais influente comentarista da televisão francesa, é o de transmitir "uma imagem polida do mundo".
Também temos no Brasil um pequeno grupo de jornalistas que se destacam da massa do reportariado e dão o tom da cobertura. Prefiro chamá-los de "grifes" jornalísticas, devido à forma pela qual operam no Brasil. Em geral, organizam-se como microempresas jornalísticas que mantêm contratos de prestação de serviços com jornais, emissoras de TV e de rádio. Vendem o prestígio de seu nome, uma marca, uma "grife". Suas colunas, assinadas em jornais de prestígio das grandes capitais, são reproduzidas em cidades do interior; podemos ouvi-los na CBN várias vezes por dia; à noite aparecem nos noticiários da TV. Sem deixar de se vincular de modo preferencial a um ou dois veículos também preferenciais no panorama da comunicação, trabalham em seus escritórios e não nas redações desses veículos. Alguns empregam outros jornalistas, anônimos, para fazer suas pesquisas. Mandam seus despachos por telefone ou e-mail, em geral sob uma rubrica reforçadora da grife, tipo "espaço aberto" de fulano de tal, ou "o dia na economia", de ciclano, ou "a economia passada a limpo" de beltrano.
O jornalista "grife" típico é um híbrido de jornalista e artista. Graças à notoriedade adquirida na TV, recebe cachês de artista, inclusive para aparições em convenções e ciclos de conferências de empresários. No Brasil, o mais bem sucedido membro dessa elite jornalística foi Paulo Francis, que recebia uma dos mais altos salários da mídia brasileira. Na França, segundo o relato de Halimi, parecem atuar também como intelectuais orgânicos do neoliberalismo, pois, além de seus artigos e aparições na mídia, ocupam postos chaves nos conselhos dirigentes dos meios de comunicação. Ajudam a formular as políticas neoliberais que depois irão defender na mídia. No Brasil também temos esse tipo de quadro intelectual, oriundo do jornalismo, que ajuda a formular políticas para grupos de interesses empresariais, mas eles não se confundem com as grifes jornalísticas.
Essas "grifes" tornam-se os principais formadores de opinião no processo de determinação da agenda pública de discussões desejada pelas elites dirigentes. É primeiro por intermédio deles, graças a sua influência e posição estratégica na mídia, que se definem os termos das grandes discussões. É por meio deles que se discute, por exemplo, a influência dos encargos trabalhistas no custo Brasil, em vez de se discutir a influência dos baixos salários no analfabetismo, na saúde coletiva e na criminalidade.
A esse discurso homogêneo, Halimi chama de "pensamento único". Seu livro pesquisa a construção desse discurso em algumas situações importantes da história da implantação do neoliberalismo na França, incluindo o Plano Juppé, que modificava as regras da previdência social e provocou uma greve nacional que foi recebida com espanto e indignação pelos "cães de guarda". O referendum sobre a moeda única européia, "Maastricht", foi colocado para a opinião pública, por eles, como uma necessidade histórica, uma decorrência da natureza da coisas, da mesma forma como foram colocadas para nós, no Brasil, as privatizações.
Talvez com alguma dose de exagero, Halimi chama esse grupo, na França, de truste. Para eles, diz, o Sol nunca se põe. "Desde o alvorecer, no estúdio de rádio, até a noite na televisão. Na imprensa escrita, no editorial de fluxo contínuo: no jornal cotidiano de âmbito nacional, publicação semanal, jornais diários regionais. E para completar, o livro anual matracado em todas as ondas".
Halimi dá nome aos bois. Discorre detalhadamente sobre esses 30 papas do jornalismo francês, mostra como sempre apóiam o governo e apóiam-se mutuamente. De como se auto-emulam, de como uns visitam os programas de entrevistas dos outros, de como uns elogiam os livros dos demais, para depois serem eles próprios os elogiados. Infelizmente, para o leitor não familiarizado com esses jornalistas e com o cotidiano da cena francesa, boa parte da leitura de "Os Novos Cães de Guarda" permanece enigmática.
Um membro proeminente dessa estirpe é o jornalista Alain Duhamel, que preside o comitê editorial da rádio Europe 1, escreve em "Libération", "Le Point", "L'Humanité" e alguns jornais de província. O livro acompanha uma sequência de três dias na vida de Duhamel, em que ele faz sete aparições na mídia, incluindo entrevistas, artigos e comentários.
Os interlocutores ideais das grifes jornalísticas são os "decididores", os homens que decidem, sejam do governo, sejam das grandes empresas. Temos inúmeros programas de entrevistas desse tipo hoje no Brasil, no rádio e na TV. Se são do governo, recebem das grifes um tratamento de reverência. É o "jornalismo de reverência", como diz Halimi para o caso francês. Se são empresários, a relação é de cumplicidade, como se fossem todos sócios de uma mesma empreitada neoliberal, que infelizmente precisa enfrentar a oposição dos "atrasados", dos "obscurantistas", dos "interesses corporativos". É curioso como certas qualificações, ou desqualificações dos oponentes, usam na França e no Brasil a mesma semântica.

Bernardo Kucinski é professor do departamento de jornalismo e editoração da Escola de Comunicação e Artes da USP e autor, entre outros livros, de "A Síndrome da Antena Parabólica" (Ed. Fundação Perseu Abramo).

Folha de São Paulo

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