Percursos e reflexões da esquerda armada de outrora
Dayane Soares
SERBIN, Kenneth P.. From Revolution to Power in Brazil: How Radical Leftists Embraced Capitalism and Struggled with Leadership.Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2019.
Intensificadas as investidas repressivas do Estado, centenas de brasileiros, cuja maioria ainda na flor da juventude, optou pelas armas na luta contra a ditadura vigente no país (1964-1985). Como não nos é estranho, essa aposta, iniciada com uma série de ações guerrilheiras espaçadas, se seguiria de um punhado de sucessos, mas de uma subsequente onda repressiva e do inevitável desmantelamento dos agrupamentos de esquerda armada poucos anos após o pontapé inicial. Entre as resultantes negativas desse processo, sabe-se que a maior parte de seus quadros vivenciaria a experiência de prisão e o horror das torturas, e uma parcela seria posteriormente listada entre os nomes dos milhares de mortos e “desaparecidos” políticos sob a responsabilidade do Estado brasileiro. Os sobreviventes, porém, reconstituiriam suas vidas tomando cursos distintos. Passadas cinco décadas do massacre lançado à oposição de esquerda2 e mais de trinta anos desde o final do regime, mesmo com uma extensa literatura desenvolvida sobre o campo temático3, é certo que algumas questões ainda pairam no ar, inclusive a que indaga sobre o futuro daquela geração de revolucionários. É nesse sentido que se insere From Revolution to Power in Brazil, o mais recente livro de autoria do historiador Kenneth P. Serbin.
Atualmente docente do Departamento de História da Universidade de San Diego, Serbin atua em pesquisas nas áreas da história cultural, social e política brasileira, com ênfase no período que abarca a ditadura militar. Seus estudos, que se estendem por mais de três décadas, tiveram admiráveis frutos, entre os quais estão inclusas publicações em língua portuguesa4. Para a investigação que resulta na publicação aqui resenhada, o autor, até então reconhecido pelos estudos a respeito das relações da Igreja Católica e a Ditadura, optou por lançar luz à trajetória de uma parcela dos ex-revolucionários de esquerda de outrora, com destaque a quadros que atuaram junto à Ação Libertadora Nacional (ALN). Seu objetivo central: evidenciar e analisar seus percursos e suas reflexões após a luta armada.
Para atender a esse propósito, o corpus documental adotado para o desenvolvimento da pesquisa que resulta em From Revolution to Power foi constituído por entrevistas concedidas por dezenas de personalidades (contabilizando mais de 300 horas), por formulários por elas preenchidos e por relatórios de impressão. Entre os vinte e seis ex-militantes sobre os quais Serbin nutriu-se de informações, nove deles tiveram suas histórias de vidas ressaltadas no material final5. No que concerne a sua estrutura, o robusto livro é constituído por um prólogo - no qual o autor anuncia seus objetivos, percursos de pesquisa e os caminhos pelos quais o livro percorrerá - seguido de três partes que englobam um total de quinze capítulos nos quais o autor transita tanto pelas experiências dos personagens durante o período de suas ações junto à luta armada, quanto por suas reflexões acerca de suas atuações décadas depois; abarcando questões pertinentes aos seus desenvolvimentos profissionais, suas vidas particulares, suas tentativas de superar as consequências pessoais da ditadura e compreender suas experiências, as ações violentas experienciadas e os reflexos psicológicos delas resultantes; perpassando, também, pelos seus pontos de vista sobre revolução, violência e terrorismo.
Como resultado inicial, o livro nos permite verificar as progressivas transformações ocorridas ao longo da vida dos atores em questão. Podemos observar que uma parte significativa dos entrevistados elencados esteve, em sua juventude, envolvida nas mais notáveis ações empreendidas pelas organizações armadas - a exemplo do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick -, e posteriormente, obteve prestígio e visibilidade no âmbito de suas carreiras e atuação política, estando, em todos os casos expostos, atrelados a cargos de poder no país; atuando, por exemplo, no senado, em prefeituras, nos ministérios e, também, no empreendedorismo. Serbin nos torna evidente a atividade desses indivíduos, cada vez mais estreita ao capitalismo; sendo interessante destacar o transparecer de alguma simpatia de sua parte pelos caminhos políticos adotados por parte dos entrevistados6.
Mas, afinal, o que teria ocasionado essa mudança de rumos? Como destaca o autor, após a liquidação da luta armada no Brasil e seus lastimáveis efeitos subsequentes, os atores em questão atravessaram um processo de profunda reflexão no tocante aos usos da violência política, ao valor da democracia e das políticas em geral, e, além disso, não escaparam as influências de tendências da democracia europeia e do eurocomunismo largamente difundidas a partir da década de 1970. Somado a isso, também foram evidentes os reflexos da queda do socialismo real, em 1989, sobre toda a esquerda, e, por certo, foram igualmente significativos os distintos momentos e circunstâncias que moldaram as vidas e, consequentemente, o comportamento político daqueles que se dedicaram aos agrupamentos armados no passado; como seus acúmulos de experiências pessoais, a formação de suas famílias e a inevitável ação do tempo.
Não suficientes esses elementos, Serbin aponta para um fator-chave explicitador das transformações anteriormente evidenciadas: o pluralismo existente no seio da Ação Libertadora Nacional. A organização, ao longo de toda sua atividade, contou com a presença de democratas em suas fileiras. Conforme as palavras de Serbin - atestadas pelos trechos das entrevistas em seu trabalho -, preocupada com a “libertação nacional”, deixando o socialismo para um segundo momento, “a ALN atraiu pessoas de distintas linhas e origens políticas, incluindo nacionalistas, socialistas, comunistas, empresários e até clérigos católicos. Rejeitou dogmas marxista-leninistas e procurou construir um socialismo exclusivamente brasileiro”, e, embora, anti-imperialista e contrária às intervenções dos EUA “não expressou animosidade pelos americanos comuns”7. Tal característica é certamente significativa. Vale ainda ressaltar um ponto instigante levantado pelo autor que aponta para o fato de que por razão da maioria dos entrevistados ser oriunda da classe média brasileira e, por conseguinte, portadora de contatos com pessoas influentes em diversos campos, muitos deles usufruíram de oportunidades dessemelhantes às de tantos outros que, por motivos díspares, passaram uma parcela de suas vidas na prisão.
No que tange o campo das percepções dos entrevistados a respeito de suas escolhas políticas em tempos passados, podemos sublinhar suas reflexões em relação aos usos da violência em suas investidas revolucionárias, que, salvo raras exceções, foram por eles retratadas de modo a reafirmar o consenso de se tratar de uma necessidade posta pela conjuntura e não as considerando enquanto atos de terrorismo. Cabe, no entanto, mencionar que, conforme ilustrado no livro, apesar da mudança de rumos políticos tomados pelos entrevistados, eles reiteram a manutenção dos valores que abraçaram em sua juventude; muito embora essas afirmativas mereçam uma observação criteriosa por parte do leitor.
Dentre os méritos centrais do livro de Serbin é possível elencarmos o fato de que, ao inserir um recorte cronológico que abrange diversos momentos das vidas dos atores selecionados, incluindo suas perspectivas em momentos a posteriori a respeito de suas lutas junto às organizações armadas, traz uma contribuição original à literatura dedicada a militância de esquerda armada; até então destinada, em maior parte, ao período que abarca a atividade desses agrupamentos e às reflexões sobre seus insucessos. Além disso, o trabalho perpassa pela atuação e trajetória de alguns militantes intermediários dos agrupamentos armados aos quais faz menção. Esse aspecto é, sem dúvidas, muito relevante, tendo em vista ser predominante na bibliografia sobre o assunto abordagens que atribuem centralidade aos dirigentes dessas organizações, optando quase sempre por dispor os quadros médios em um plano de fundo. Além do mais, se o uso de uma narrativa com maior linearidade possa ser ainda verificada como um tabu entre alguns historiadores, o modelo escolhido por Serbin, marcado por sua aparição como narrador e pela presença de um perfil complexo dos atores selecionados, somado a uma cautelosa articulação de fontes, contexto histórico e percursos de pesquisa, expressa as potencialidades desse caminho em causar ao leitor uma proximidade mais profunda com o conteúdo disposto sem se afastar, porém, do indispensável rigor do ofício.
Ora, não podemos deixar de atribuir semelhante destaque seu manuseio cuidadoso das fontes; majoritariamente orais. Bem sabemos das particularidades e possíveis dificuldades atreladas aos usos dessa tipologia documental, o que, decerto, não subtrai suas potencialidades. Estudiosos, a exemplo de Michael Pollak, já apontaram para a memória enquanto um fenômeno construído sem deixar de destacar que tal característica está atrelada a qualquer documentação, de modo que: a crítica da fonte “tal como todo historiador aprende a fazer, deve (...) ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto de vista, a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita” (POLLAK, 1992, p. 209). Embora Serbin não faça um adensamento teórico sobre memória ou fontes orais, a forma com que seu conteúdo é exposto torna visível os cuidados tomados para com a constituição de seu estudo, e seus resultados apontam, mais uma vez, para o valor dessa tipologia documental para com a construção do saber histórico. Aliás, ainda sobre o valor dos materiais colhidos por Serbin, o livro foi cotejado com dezenas de imagens dentre as quais constam tanto fotografias tiradas à época do período que abarca as investidas da luta armada e a prisão dos entrevistados, quanto fotografias tiradas pelo autor à época de suas entrevistas; o que possibilita ao leitor uma sensação de contato com seu processo de pesquisa.
Devemos assinalar, no entanto, que para além dos pontos satisfatórios destacados, o livro possui aspectos menos positivos que merecem nossa atenção; embora não comprometam seu valor. No decurso dos capítulos, o autor leva o leitor a nutrir um intenso interesse na compreensão da trajetória das personalidades ali elencadas, porém sua opção de direcionar o foco sobre nove ex-revolucionários apesar de, conforme destacou, ter acumulado informações sobre vinte e seis militantes, pode nos provocar a sensação de alguma ausência. Não obstante o fato de sua escolha ter sido justificada enquanto forma de entregar um material mais administrável ao leitor, pode nos levar a indagar se os atores não retratados teriam seguido, em alguma medida, por trilhas distintas após seu período de atuação na militância armada, ou, ainda, se não existiriam razões mais profundas para o fato de trajetórias terem sido pouco consideradas pelo autor em detrimento das que foram priorizadas.
Outrossim, tal como já mencionamos, o livro nos apresenta uma gama de detalhes, que muito corroboram para um aprofundamento mais detido das trajetórias sobre as quais se debruça, porém, alguns deles (como os que se referem à violência no Rio de Janeiro, ao Carnaval brasileiro ou a Bossa Nova) podem fazer com que alguns leitores desejem um conteúdo mais sucinto. Em contrapartida, é preciso relembrar que para o público-alvo do livro, dada sua publicação em língua inglesa, essas informações de caráter descritivo, sobretudo as que se referem às características culturais e sociais brasileiras, tendem a ser interpretadas a partir de uma perspectiva ligeiramente distinta.
Em síntese, por meio de uma abordagem inédita na historiografia que perpassa pela luta armada e pela militância de esquerda no Brasil, Serbin, com suas qualidades e seus limites, retrata e analisa cuidadosamente as transformações experimentadas por alguns ex-revolucionários ao largo de suas vidas, atingindo com êxito o objetivo inicialmente proposto. Seu livro reconstitui interessantes aspectos quanto à mudança de táticas e estratégias de luta adotada por essas personalidades que, com o passar das décadas, optaram pela adoção da via pacífica em detrimento das armas, aproximando-se, cada qual em determinada medida, do capitalismo, contra o qual lutaram décadas atrás, acreditando na potencialidade de mudanças e melhorias a partir do interior desse sistema.
Ainda que o livro não aprofunde debates teóricos e historiográficos a respeito da temática em questão, seu ineditismo sobre o assunto, somado ao seu rigor no tratamento das fontes e sua riqueza de detalhes, o torna uma leitura incontestavelmente recomendável. From Revolution to Power in Brazil se configura, portanto, como uma contribuição significativa para o campo temático e uma leitura valiosa para todos os que em algum momento se questionaram sobre o destino da geração de revolucionários que se ergueu na década de 1960 no Brasil. Não obstante os méritos de seus resultados, o livro torna novamente evidente a possibilidade de ampliação e aprofundamento de um assunto já tão bem trabalhado pelos materiais que se debruçaram sobre a temática; fato que, como demonstrado na prática por Serbin, não descarta a possibilidade e necessidade de análises que englobem novos problemas e novas abordagens.
Referências Bibliográficas
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 1987.
MIR, Luís. A revolução impossível: a esquerda e a luta armada no Brasil. São Paulo: Best Seller, 1994.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.
REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990.
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
2
Para esse marco tomamos por referência a intensificado da repressão sobre os agrupamentos armados a partir da segunda metade do ano de 1969.
3
Exemplos de trabalhos que perpassaram pela temática, embora com outros problemas e abordagens, são: GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 1987; REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990; MIR, Luís. A revolução impossível: A esquerda e a luta armada no Brasil. São Paulo: Best Seller, 1994; RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
4
Referimo-nos aos livros Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja Católica no Brasil, traduzido por Laura Teixeira Motta e publicado pela editora Companhia das Letras em 2008, e Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura, traduzido por Carlos Eduardo Lins da Silva e publicado pela mesma editora em 2011.
5
Foram eles: Adriano Diogo; Aloysio Nunes Ferreira Filho; Arlete Diogo: professora, ativista do PT e assistente chave de Adriano Diogo; Carlos Eugênio Sarmento Coêlho da Paz; Colombo Vieira de Souza; Jessie Jane Vieira de Souza; Manoel Cyrillo de Oliveira Netto; Márcio Araújo de Lacerda; Paulo de Tarso Vannuchi.
6
Em uma das passagens de seu livro, Serbin afirma: “O Capitalismo, assim como o potencial nuclear, pode ser usado para fins construtivos ou destrutivos”. Cf. SERBIN, Kenneth P. From Revolution to Power in Brazil: How Radical Leftists Embraced Capitalism and Struggled with Leadership. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2019, p. 67. (tradução minha).
7
SERBIN, Kenneth P. From Revolution to Power in Brazil: How Radical Leftists Embraced Capitalism and Struggled with Leadership. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2019, p. 77. (tradução minha).
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