quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras





DIÁLOGOS, EXPERIÊNCIAS E CONEXÕES DIASPÓRICAS NO ATLÂNTICO NEGRO

Fernando de Oliveira dos Santos

BUTLER, Kim D.; DOMINGUES, Petrônio. Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras. 1ª ed.São Paulo: Perspectiva, 2020. 360




Os temas relacionados ao período pós-abolição abarcam um campo de pesquisa que tem se consolidado vigorosamente na historiografia brasileira nas últimas décadas. Em trabalho publicado recentemente, o historiador Petrônio Domingues – um dos principais especialistas – apresentou um importante balanço acerca das novas abordagens, problemas, perspectivas teóricas e metodológicas abrangendo esse ascendente ramo da historiografia. Domingues evidenciou que – nesse amplo e diversificado campo temático – uma das principais tendências é composta pelos estudos das experiências da comunidade negra dentro de uma configuração transnacional. (DOMINGUES, 2019, p.119).



Desse modo, na esteira dessas pesquisas em desenvolvimento, a obra Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras oferece um valioso panorama das novas perspectivas analíticas. Petrônio Domingues e Kim D. Butler começaram a idealizar essa obra em conjunto, por volta de 2012, quando o historiador brasileiro realizou estágios de pós-doutoramento na Universidade de Rutgers, em Nova Jersey (Estados Unidos). A partir dos contatos no Departamento de Estudos Africanos, Domingues e a prestigiada historiadora estadunidense iniciaram uma fecunda interlocução intelectual, ensejando uma colaboração acadêmica que resultaria nessa obra recentemente publicada.



O livro possui nove capítulos e está dividido em duas partes. Os quatros primeiros foram escritos por Kim D. Butler e os outros cinco por Petrônio Domingues. Embora o fio condutor da obra seja os temas relacionados à diáspora africana, os autores escreveram os capítulos de forma independente. No que tange aos objetivos, os historiadores buscam explorar o conceito de diáspora como um aporte analítico conceitual. Dessa forma, a diáspora seria uma ferramenta teórica que subsidiaria as investigações das experiências da população negra em



“(...) diferentes contextos culturais marcados por deslocamentos dentro e entre fronteiras, reterritorializações, cruzamentos zonas de contato, fragmentação e reconstrução de identidades individuais e coletivas em sua interface glocal (local e global)” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p. 18).



Ademais, a abordagem diaspórica oferece fundamentos teóricos para analisar a história afro-brasileira, em uma perspectiva transnacional, revelando as múltiplas trocas, discursos, processos de resistência, a interlocução de ideias e projetos, envolvendo intelectuais, jornalistas, políticos, ativistas negros, entre outros.



No primeiro capítulo, Definições de Diáspora: articulação de um discurso comparativo, Butler procura dissecar o conceito de diáspora, revelando sua historicidade e a pluralidade de seus significados. A historiadora observa que, nas últimas décadas – à medida que o mundo se torna cada vez mais interconectado –, o termo diáspora tem sido, cada vez mais, apropriado por diferentes comunidades para modelar e remodelar suas identidades. Não obstante, Butler explica que, até por volta da década de 1980, a diáspora era um conceito associado quase exclusivamente à experiência judaica, a despeito de existirem outras tantas dispersões históricas, como a africana, a grega, a armênica, para citar algumas. Contudo, desde então, com o desenvolvimento das pesquisas sobre a diáspora, o conceito ganhou elasticidade, abrangendo novas acepções consoante às experiências de outros grupos (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.2).



Entretanto, a profusão e a heterogeneidade dos significados emergentes impuseram o desafio de uma conceituação que pudesse abarcar aspectos comuns das múltiplas experiências diaspóricas. Tendo em vista essa preocupação teórico-analítica, Butler sugere uma definição sucinta:



“As diásporas são um tipo dinâmico de comunidade, baseado na lógica primordial da família; diversas pessoas espalhadas por muitos lugares que, no entanto, se percebem unidas por uma ascendência comum e, em particular, conectadas a um local comum de origem” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.3).



No decorrer do primeiro capítulo, a historiadora adensa sua análise das características das diásporas, indicando, de forma matizada, as diferentes bases que configuram essas identidades imaginadas, como lugar de origem, gênero, etnia, religiosidade (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.5-6). Ainda nesse tópico, tendo como lastro a literatura hodierna, Butler apresenta uma fértil sistematização dos atributos comuns das diásporas, envolvendo aspectos como: dispersão, terra de origem, identidade coletiva e relações de múltiplas gerações (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.8-9).



No segundo capítulo, Por que “Diáspora”? A migração do termo da experiência Judaica para a Africana e a sua utilidade universal, Butler procura reconstruir as origens da diáspora africana. A autora esmiúça vários contextos e processos históricos para evidenciar, como paulatinamente foi emergindo, um senso de comunidade entre os afrodescendentes no Mundo Atlântico entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Essa conjuntura foi marcada pelo fim do escravismo no Brasil e em países do Caribe e, também, pelo surgimento do movimento pan-africanista, no qual destacaram-se personagens como Marcus Garvey e Robert Abbot. Conforme Butler, o desenvolvimento das tecnologias de comunicação e o transporte favoreceram o intercâmbio de ideias entre comunidades negras em diferentes espaços. Os periódicos produzidos pelas associações do pan-africanismo, como o The Negro World e o Chicago Defender, passaram a circular por diferentes regiões do mundo afro-atlântico (incluindo o Brasil), ventilando projetos de expansão da cidadania plena e de resistência ao imperialismo na África (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.38).



Nesse contexto, o afloramento de sentimentos comunitários, ancorados na ancestralidade e na percepção de interesses em comuns, possibilitou a elaboração de estratégias e ações de ajuda mútua, tanto em nível local, quanto global. Segundo Butler, “Esse ‘momento da diáspora’ no mundo afro-atlântico foi transformador, foi quando se começou a se conceber e a funcionar uma comunidade da diáspora” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.41). Contudo, o termo “diáspora” só passaria a ser empregado sistematicamente no discurso de intelectuais e militantes africanistas a partir de meados da década de 1960 (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.41). Essa conjuntura assinalaria uma inflexão, pois uma distinção foi sendo gradualmente estabelecida entre o ideário pan-africanista e a diáspora. Para a historiadora



“Ao contrário do pan-africanismo, uma política de solidariedade centrada na terra ancestral, conceitualmente, a diáspora permitiu a multiplicidade de políticas possíveis entre as várias comunidades da diáspora africana” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.41).



Já no terceiro capítulo, A diversidade da Diáspora: Contribuições para o desenvolvimento da teoria política da Diáspora Africana, Butler explora a dimensão política das diásporas e suas múltiplas potencialidades. A autora demonstra como o conceito de negritude – em suas várias acepções – ajudou a cimentar uma consciência coletiva, abrangendo diversas nações e comunidades da diáspora africana em torno de projetos comuns na América. Forjado no contexto da escravidão atlântica, a negritude foi o resultado de um complexo processo de incorporação – pelos afro-americanos – de um conjunto de ideias, valores e concepções de mundo amplamente compartilhadas por vários povos e etnias na África (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.61)



Nos Estados Unidos, a negritude foi percebida como uma identidade socioétnica essencial para os afrodescendentes. Por conseguinte,



“Embora a importância e os contornos difiram significativamente de país para país, ela permaneceu, após o fim da escravidão, como uma identidade de solidariedade e uma base para políticas coletivas transnacionais” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.61).



Outro mote esmiuçado nesse tópico são as múltiplas configurações que as novas diásporas têm assumido no contexto das emigrações recentes do continente africano, bem como seus desafios e possibilidades de articulação política. Butler assinala que as diásporas hodiernas são caracterizadas por sua maior diversidade e complexidade. Isso porque, tanto os deslocamentos intercontinentais, quanto a migração interna na África, não são motivados mais apenas por circunstâncias de perseguições, guerras e pobreza. Tendo como base as pesquisas atuais, a historiadora pondera que grande parte das migrações africanas pós-coloniais foram estimuladas pelo sucesso econômico da emergente classe média, que possibilitou a esse segmento viajar e empreender (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.66). Portanto,



“A recente diáspora africana inclui profissionais e empresários qualificados, assim como os migrantes por razões econômicas e as vítimas de guerra, de instabilidade política e de tráfico” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.67).



No quarto capítulo, Diálogos Diaspóricos: A Fantasia da África e o Internacionalismo Diaspórico no Carnaval da Bahia, Butler analisa de que modo, em dois contextos distintos – o Carnaval baiano ao incorporar e reelaborar elementos simbólicos da África e de outras comunidades diaspóricas –, converteu-se essa manifestação cultural, também em movimento político. No primeiro contexto, entre a última década do século XIX e a primeira do XX, a historiadora perscruta os primórdios do Carnaval na cidade de Salvador. É explicitado como os clubes recém-criados – como o Embaixada Africana em 1895 – utilizaram referências africanas como motes para abordar questões candentes naquela conjuntura, como a luta contra a marginalização cultural e os percalços para afirmação da cidadania dos afro-baianos no pós-abolição. O segundo contexto remete às décadas de 1970 e 1980, quando Butler recupera as origens e o papel político dos blocos afro, especialmente o Ilê Aiyê, considerado o pioneiro nessa modalidade do Carnaval (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p. 95).



Uma das teses da autora é que, em ambas as conjunturas históricas, o Carnaval tornou-se uma estratégia de negociação de espaço social e liberdades, ou seja, um instrumento alternativo de reivindicação política não formalizado. Contudo, as perspectivas políticas não emergiam apenas do âmbito local, já que eram influenciadas pelas conexões estabelecidas com as diversas comunidades da diáspora no cenário Afro-Atlântico. Essas inúmeras interlocuções, em nível global, entre vários ramos da diáspora, foram consolidadas, a despeito das dificuldades no tocante ao idioma, à distância, às especificidades culturais e às disparidades de recursos econômicos. Conforme Butler,



“Os Clubes africanos da virada do século XX e os blocos afro que surgiram na década de 1970 procuraram o continente e a diáspora para contextualizar e articular suas próprias lutas” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.134).



No quinto capítulo, “O Moisés dos Pretos”: Marcus Garvey no Brasil, Petrônio Domingues avalia como as ideias e os projetos desse emblemático líder do pan-africanismo repercutiram de formas variadas e dissonantes nos jornais da imprensa brasileira. Inicialmente, o historiador apresenta um breve itinerário da trajetória social de Garvey. São recuperadas as etapas marcantes da formação de sua consciência política e racial, abrangendo desde a infância pobre até a criação, em 1914, da UNIA (Universal Negro Improvement Association), ainda na Jamaica. Em um segundo momento, Domingues aborda o contexto no qual as ideias e a popularidade de Marcus Garvey se disseminaram vertiginosamente, após sua mudança para os Estados Unidos, em 1916, e a instalação da UNIA no Harlem em Nova Yorke (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.138).



Em seguida, o historiador traz a lume como os ideais de Garvey foram interpretados nos periódicos do Brasil na década de 1920, especialmente sua proposta para retorno dos afro-americanos para a África, a “terra da promissão”. No que tange à chamada grande imprensa, notadamente no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, os projetos do líder negro foram percebidos como utópicos, radicais, mirabolantes, fantasmagóricos, para mencionar alguns adjetivos. Já na imprensa negra, as representações do jamaicano tendiam a ser positivas, embora nem todas as suas ideias fossem aprovadas, existindo também nuances de um periódico a outro. Em Campinas, o jornal O Getulino valorizou o engajamento de Garvey e sua capacidade de articular um movimento negro pujante com base em massas organizadas. Não obstante, a perspectiva internacionalista do líder jamaicano era rejeitada pelos líderes afro-campineiros (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.157).



Por outro lado, O Clarim da Alvorada, outro jornal da imprensa negra criado na capital paulista em 1924, exaltava os empreendimentos desenvolvidos por Garvey, enaltecendo seu espírito modernizador e progressista, visando à ascensão material, social e cultural do negro. No entanto, “Em contraste com o Getulino, o jornal paulistano foi mais receptivo ao internacionalismo negro de Garvey, ainda que de forma seletiva” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.157-158).



Com a mesma perspectiva teórica, no sexto capítulo, A “Vênus Negra” Josephine Baker e a Modernidade Afro-Atlântica, Domingues também analisa as repercussões divergentes nos jornais brasileiros, de outra personagem ilustre no contexto da diáspora do Mundo Atlântico. Trata-se da consagrada artista estadunidense Josephine Baker que, por meio de seus múltiplos talentos e carisma, conquistou fama e prestígio no cenário internacional. Um dos pontos mais instigantes do capítulo é quando o autor dimensiona o enorme impacto causado por Baker – especialmente em seus fãs – durante as apresentações que a dançarina realizou nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo em 1929 (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.179).



Entretanto, a dançarina negra não foi vista com simpatia por alguns segmentos afro-brasileiros, tampouco pelos jornais de maior circulação. Conforme o historiador, isso ocorreu devido ao seu comportamento vanguardista e disruptivo, sua personalidade expressiva e, principalmente, por não se orientar pelos padrões de moralidade e sexualidade vigentes. (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.181). A despeito das críticas e controvérsias, para Domingues, Baker era um ícone de mulher afrodescendente: talentosa, brilhante, genial e que teve o mérito de alcançar o auge da consagração. Por isso, “Em última instância, ela simbolizava a vitória do conjunto dos descendentes de africanos enfeixados na diáspora atlântica” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.184).



No sétimo capítulo, Como se fosse Bumerangue: Frente Negra Brasileira no Circuito Transatlântico, Domingues problematiza o modo como o Chicago Defender – o principal jornal da imprensa negra estadunidense – interpretou as estratégias, projetos e ações da mais relevante associação negra brasileira da primeira metade do século XX. Uma de suas preocupações foi refutar teses que identificam o movimento negro brasileiro – especialmente na década de 1930 – como mero receptor e reprodutor passivo das retóricas raciais, estratégias e conteúdos ideológicos forjados pelo movimento congênere dos Estados Unidos. Para tanto, Domingues destrincha as conexões e os intercâmbios entre o jornal Chicago Defender e a Frente Negra Brasileira, demonstrando que os dois movimentos se influenciaram mutuamente. Tendo como quadro panorâmico o circuito da diáspora afro-atlântica, o historiador aplica a metáfora do bumerangue para evidenciar que



“(...) informações, articulações, projetos ideológicos, sonhos, fé e esperança de ativistas e organizações afro-diaspóricas transitavam, e mesmo giravam, com idas e voltas, em movimentos multilaterais em vias de mão dupla” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.216).



Outro aspecto esmiuçado nesse capítulo diz respeito à maneira apologética e laudatória pela qual o periódico estadunidense divulgava, em seu país, os projetos, conquistas e iniciativas da Frente Negra Brasileira. Em que pese as ações realizadas no campo cultural, educacional e político, o Chicago Defender superestimou as proezas da associação afro-brasileira. Domingues apresenta duas hipóteses para essa tendência. A primeira, em linhas gerais, postula que o periódico estadunidense, ao disseminar e enaltecer demasiadamente as façanhas da Frente Negra Brasileira, estaria valorizando a si próprio, angariando um certo capital simbólico. Isso porque, na visão dos membros do Chicago Defender, a entidade brasileira teria sido fundada sob os auspícios e inspiração de Robert S. Abbot, principal editor do jornal estadunidense (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p. 208).



Entretanto, para Domingues, há uma explicação mais satisfatória quando essa tendência é analisada por outro ângulo. As ações, estratégias e conquistas da Frente Negra Brasileira reverberavam em todo o mundo afro-atlântico, engendrando repercussões e influenciado movimentos em escala transnacional. Daí origina-se seu prestígio diante dos seus “coirmãos” afroamericanos, tanto que o Chicago Defender considerava a Frente Negra Brasileira a maior organização do gênero da América do Sul (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p. 208).



No oitavo capítulo, “Em Defesa da Humanidade”: A Associação Cultural do Negro na Arena do “Black Internacionalism”, Domingues analisa a trajetória de outra importante associação negra paulista em sua interface, com a diáspora africana. A Associação Cultural do Negro (ACN) foi idealizada por José de Assis Borba e José Correia Leite, dois militantes que possuíam vasta experiência e participação no associativismo afro-paulista nas décadas anteriores. Os dois amigos, ao se encontrarem fortuitamente na Pauliceia, iniciaram uma reflexão sobre a falta de representatividade dos negros na história de São Paulo, tendo em vista o modo como as autoridades paulistanas organizavam os preparativos do quarto centenário de São Paulo. Para ambos, a invisibilidade atribuída aos afro-paulistas ocorria por conta da ausência de uma associação que pudesse exigir maior participação simbólica da comunidade negra na referida celebração. Foi neste contexto em que outros adeptos foram se integrando ao movimento, por meio de conversas e debates, culminando na fundação da Associação Cultural do Negro em 28 de dezembro de 1954 (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.218).



Conforme Domingues, desde então, a ACN, em pouco tempo, tornou-se a mais importante associação afro-paulista das décadas de 1950 e 1960, embora sua existência oficial tenha se estendido até julho de 1976. Ao longo de sua trajetória, uma das principais características da militância da ACN foi o enorme engajamento dos seus associados no combate ao racismo e na luta pela igualdade de direitos, tanto no âmbito nacional, quanto no circuito da diáspora afro-atlântica. Na arena transnacional, assumiu um posicionamento ativo em processos históricos de envergadura, como no apoio aos afro-americanos na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, na crítica contundente ao apartheid na África do Sul, incentivando os processos de descolonização do continente africano, entre outras iniciativas.



Alguns episódios e ações ajudam a corroborar esse envolvimento da Associação Cultural do Negro no cenário internacional. Em 1957, quando se irrompiam diversos conflitos raciais nos Estados Unidos, provocados pela luta pelos direitos civis, a ACN remeteu uma carta ao governador do Arkansas, Orval Faubus, criticando-o pela truculência contra os negros que participavam das mobilizações. Nessa mesma ocasião, outra missiva foi endereçada a Dwight Eisenhower, quando o então presidente dos EUA teria sido saudado por posicionar-se, com veemência, contra aos atos violentos sofridos pelos negros (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.230).



Já em 1961, a ACN tomou uma atitude análoga ao encaminhar a John Kennedy outra carta, desta vez, enaltecendo o presidente por se opor ao regime segregacionista Jim Crown e, também, pela criação da Comissão para a Igualdade de Oportunidade no Emprego. Segundo Domingues, nessa conjuntura em que Kennedy passava a ser visto, inclusive no cenário internacional, como um aliado dos afro-americanos na luta pelos direitos civis, emergia-se, pela primeira vez, o termo affirmative action (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.230).



A inserção da Associação Cultural do Negro no circuito da diáspora afro-atlântica, ainda, é evidenciada em outros processos históricos relevantes. No dia 21 de março de 1960, em Joanesburgo, a maior cidade da África do Sul, houve um importante protesto contra uma medida que obrigava os negros a utilizarem cartões de identidade, circunscrevendo os lugares onde podiam transitar. A mobilização reuniu cerca de 20 mil manifestantes e, a despeito de ser pacífica, foi combatida com requintes de crueldade pelo Exército, que atirou sem piedade contra a multidão no bairro de Shaperville. Como resultado, 67 pessoas morreram e mais de 186 foram feridas. Esse fato causou enorme impacto na comunidade negra e mesmo na opinião pública internacional. Indignados, os membros da ACN convocaram um ato público em solidariedade às vítimas do Massacre de Shaperville. O protesto ocorreu em 25 de abril, na Associação Paulista de Imprensa, reunindo diversos segmentos da sociedade, como autoridades políticas e militares, entidades negras, grupos artísticos, lideranças sindicais e estudantis (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.232).



Nesse evento memorável, no qual vários oradores discursaram, além da condenação pública do massacre em Joanesburgo, também, foi manifestado apoio às comunidades negras de São Tomé, Angola e Moçambique, as quais lutavam pela independência contra Portugal. Não obstante, talvez, o mais significativo resultado dessa reunião foi o Manifesto, redigido ao final dos trabalhos, no qual os assinantes pressionavam o Governo brasileiro a romper relações diplomáticas com a África do Sul, por violar as Convenções internacionais (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.232).



Desse modo, no circuito da diáspora afro-atlântica, essas e outras ações implementadas pela ACN atestam que



“A associação buscou ficar em sintonia com tudo o que transcorria na vida do negro, em âmbito local e global, e, quando necessário, posicionou-se em defesa dele” (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.242).



No último capítulo do livro, Agenciar Raça, Reinventar a Nação: O movimento das reparações no Brasil, o historiador traz à tona a importância desse movimento no processo de luta por direitos da população negra, tendo como pano de fundo o cenário transatlântico. Domingues assevera que as reivindicações por políticas compensatórias no Brasil, embora tenham emergido com vigor apenas na década de 1990, já estavam entre as bandeiras do movimento negro brasileiro, pelo menos desde a década anterior. Essa luta foi inspirada na experiência estadunidense, pois o debate acerca das ações afirmativas nesse país vinha ocorrendo desde meados da década de 1960 (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.265).



Outra tese defendida pelo historiador é que o Movimento pelas Reparações dos afro-brasileiros, que se institucionalizou e se fortaleceu na década de 1990, manteve-se concatenado e inspirando-se nos fluxos de ideias, discursos, estratégias e lutas de outros movimentos no circuito transatlântico da diáspora negra (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.245). Além disso, apesar de o Movimento pelas Reparações não ter conquistado as indenizações exigidas, esse processo acumulado de lutas e experiências permitiram redefinir o racismo como problema público e, assim, abrir caminho para as atuais políticas de ações afirmativas (BLUTER; DOMINGUES, 2020, p.245).



Dessa forma, tendo em vista o que foi apresentado nessa sinopse, essa obra torna-se fundamental para os estudiosos e pesquisadores da história da escravidão, do pós-abolição e do movimento negro no Brasil contemporâneo. Esses são alguns dos motivos dentre tantos outros, porque a diáspora oferece um valioso aparato conceitual para se investigar as experiências da população afro-brasileira em uma perspectiva que abrange as múltiplas e intricadas conexões no plano global e local.

Referências bibliográfica
DOMINGUES, Petrônio. Protagonismo negro em São Paulo: História e Historiografia. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019.

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