quarta-feira, 29 de junho de 2022

Análise política em saúde: a contribuição do pensamento estratégico



João Henrique Araujo Virgens
Federico, L.. Análise política em saúde: a contribuição do pensamento estratégico. Salvador: EDUFBA, 2015.

Análise política em saúde: a contribuição do pensamento estratégico é resultado da investigação desenvolvida por Leonardo Federico – argentino, mestre em Epidemiologia, Gestão e Políticas de Saúde pela Universidade Nacional de Lanús (UNLA) – durante o curso de doutorado, realizado no ISC-UFBA, sob orientação de Jairnilson Paim. Foi tomado como objeto desse estudo parte significativa da obra de Mario Testa, pensador latino-americano, conhecido, especialmente, por sua produção crítica na área de Política, Planejamento e Gestão em Saúde. Escrita originalmente em espanhol, a tese de Federico foi traduzida e transformada em livro por Carmen Teixeira, que prefacia a obra e acrescenta notas biográficas para auxiliar o leitor a conhecer um pouco da vida e da produção intelectual de Testa. O livro conta também com posfácio elaborado por Jairnilson Paim.



Para desenvolver sua tese, Federico parte do livro Planejamento estratégico e lógica da programação (PELP) e justifica essa escolha pelo fato de representar uma “unidade de sentido” de grande densidade teórica, com contribuições diretas para pensar a ação em saúde vinculada a uma práxis transformadora que supera questões específicas do setor analisado. Após uma apresentação geral de PELP, fica explícita a preocupação em não tratar essa pesquisa como se partisse de uma estrutura autocentrada e autossuficiente e, para isso, o autor vai buscar apoio na “perspectiva hermenêutica” e em outras obras, inclusive de Testa, para responder as questões de pesquisa, em especial entender como Mario Testa construiu seu pensamento estratégico e quais aspectos merecem ser aprofundados em sua obra. Discute também o resultado de uma revisão de literatura sobre Planejamento e Gestão em Saúde na América Latina, em especial, a partir de autores que refletiram sobre a obra de Testa, e como preocupações, inicialmente metodológicas nessa área, passam a incorporar categorias como política, poder e a ação dos sujeitos. Além disso, faz comentários sobre alguns dos principais estudos que evidenciam implicações práticas e teóricas da obra de Testa.



Em relação à escolha da “perspectiva hermenêutica”, o autor justifica com base em sua intenção de compreender em profundidade a teoria do texto, da ação e da história na obra analisada. Para isso, apoia-se, especialmente em Ricoeur que trata a linguagem como acontecimento, pensa a ação humana como um quase-texto e discute a conexão destas com a teoria da história. Seu referencial teórico-metodológico também conta com aportes de Gadamer e Heidegger, bem como de autores da área da saúde como Ayres e Onocko Campos. Para a abordagem proposta, compreender “implica a inevitabilidade de sua intervenção criativa”. Ou seja, as experiências do hermeneuta em um momento histórico específico conferem atualidade e inviabilizam a neutralidade na produção.



Contudo, Federico comenta sobre a insuficiência da hermenêutica para seu estudo e a necessidade de contar com um referencial teórico que contribua para a análise e a compreensão das categorias centrais do pensamento estratégico, tais como: ação, papel do Estado, constituição de atores sociais, poder, etc. Evidencia, com isso, a raiz marxiana na concepção de Testa, em especial, ao pensar em como os atores sociais estão historicamente situados e como isso interfere em sua ação. O autor recorre, principalmente, a Giddens, Bourdieu, Gramsci, Laclau e a Mouffe. Essas escolhas podem causar estranhamento para alguns leitores, pois são autores com perspectivas teóricas divergentes em certos aspectos e esses pontos de ruptura pouco são problematizados no livro. São evidenciadas, basicamente, as contribuições de cada autor para compor os elementos de análise da obra, enquanto os pontos de divergência, que poderiam trazer importantes contribuições para a proposta dialética, são secundarizados.



Em um mergulho específico na teoria do texto e em sua correlação com a teoria da ação em PELP, Federico descreve, inicialmente, como está estruturado o texto e problematiza como as questões do setor saúde precisam ser tratadas em interação com o social. Afinal, mudanças radicais na sociedade não poderiam ser alcançadas a partir de propostas setoriais e, sem transformações mais amplas, alguns problemas específicos do setor ficam sem solução. Por isso, categorias como poder, política e estratégia se tornam basilares no pensamento de Testa e são discutidas tanto a partir de sua relação com a história, quanto do potencial de ação dos atores sociais, diante de uma preocupação central: pensar se na América Latina as organizações têm conseguido influenciar a agenda do Estado e impactar na história. Assim, é aprofundado o debate do processo de constituição de sujeitos individuais e coletivos e como este sofre interferência das formas de organização – discute em especial as burocráticas e as criativas – por conta das diferentes condições para realização do trabalho. A esse respeito é importante citar a problematização de como a incorporação tecnológica em saúde impacta nos processos de trabalho e, portanto, na ideologização dos sujeitos e em como estes passam a agir no mundo. O autor evidencia assim a necessidade de analisar essas relações a partir de uma concepção aprofundada do político e não apenas das práticas sanitárias, bem como de pensar uma perspectiva de cultura que passa a ser tratada como um problema estratégico. Na discussão da lógica da programação são aprofundadas análises sobre os conceitos operacionais, mas com a constante preocupação em demonstrar a relação com as categorias analíticas e como essa compreensão dialética tem impactos na práxis sociossanitária.



Ao refletir sobre a passagem da teoria da ação para a da história, Federico revisita o postulado da coerência para discutir a “perspectiva sócio-histórica” de Testa com apoio de textos mais recentes do autor e de outros que se utilizaram desse aporte. Discute como se dá a interação entre os vértices político (papel do Estado e propósitos de governo), ciência (teoria e método) e história (história e organização) em países capitalistas, subdesenvolvidos e dependentes (CSD). Além disso, aborda como o processo de constituição de atores sociais e de desenvolvimento de atitude e aptidão críticas influenciam no potencial das organizações de modificar as relações de determinação e condicionamento entre esses vértices. Um outro aspecto relevante é a concepção de que as decisões são tomadas pelo Estado e como elas estão diretamente relacionadas com os papéis adotados por ele: articulação da classe dominante, desarticulação da classe dominada e/ou a garantia da reprodução da classe dominada.



O autor retoma Ricoeur para defender a tese do “caráter processual-relacional da obra de Testa” como fundamento para “sua proposta de ação política”. Identifica relações entre os tipos de poder analisados por Testa (administrativo, técnico e político) e a discussão de capitais feita por Bourdieu. Evidencia, também, relações entre esses autores no debate da racionalidade na ação dos sujeitos, já que para ele o caráter estratégico não está relacionado com ações com fins precisamente estabelecidos ou “prescrições acabadas” e reforça, em diversos momentos, que a proposta de Testa está fincada na ideia de desencadear processos transformadores.



Federico faz, por fim, uma discussão da atualidade do pensamento estratégico e evidencia divergências entre Testa e Giddens, em especial, no que se refere ao potencial das organizações em contribuir com elementos emancipadores frente aos modos de dominação. Giddens é criticado, principalmente, com apoio de Mouffe, por conta da postura consensualista que levaria a uma perspectiva pós-política. Porém, ao pensar na vinculação da obra de Testa com a abordagem marxiana, é importante refletir ainda sobre os distanciamentos e aproximações entre PELP e a postura pós-marxista adotada por Mouffe.



Para concluir, cito a contribuição complementar trazida no posfácio escrito por Paim. Nele são apresentados os principais enfoques teórico-metodológicos a partir dos quais têm sido analisadas políticas de saúde e as produções críticas de Testa e Matus são destacadas como contraponto às abordagens baseadas em referenciais norte-americanos e europeus. Assim, é discutida a necessidade de buscar elementos para uma análise política em saúde, pensando a situação latino-americana, e não a mera análise de políticas específicas com uso de teorias desenvolvidas a partir de realidades muito distintas da nossa e introduzidas nas pesquisas em saúde brasileiras, em alguns casos, sem a devida problematização.



Se a saúde coletiva pretende pensar (e contribuir para) a ação presente, em especial a transformadora, é importante ter clareza que análises históricas precisam se conectar com análises da situação atual. O mesmo ocorre com análises parciais, diante da necessidade de compreensão de aspectos da totalidade. Não é questão de discutir isoladamente a melhor abordagem, mas problematizar dialeticamente a produção teórica em saúde, em especial, em momentos que podem ser de recorrentes rupturas políticas reacionárias, processo que pode estar em curso no Brasil. Assim, a obra de Federico, contribui de maneira significativa para possibilitar ao leitor brasileiro uma (re)aproximação com essa dimensão mais ampla que se propõe a pensar o político na saúde e reafirma a importância da reflexão dialética para a análise de cada situação, alicerçada na indispensável conexão entre o setor saúde e a totalidade social.

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