sábado, 5 de junho de 2010

A Transformação do Trabalho: a passagem do trabalho livre na região da Zona da Mata mineira, 1870-1920



Pedro Puntoni
Pós-graduando em História Econômica, DH -FFLCH/USP


Ana Lúcia Duarte Lanna, A Transformação do Trabalho: a passagem do trabalho livre na região da Zona da Mata mineira, 1870-1920. Campinas: UNICAMP/CNPQ, 1988, 124p.

O livro de Ana Lúcia Lanna A Transformação do Trabalho, atualmente professora da FAU-USP, é publicação da dissertação de mestrado defendida em 1985 na UNICAMP, sob a orientação do Prof. Fernando Novais. Faz parte da série "Teses" e foi publicado em co-edição pela Editora da UNICAMP e pelo Programa Nacional Do Centenário da Abolição da Escravatura (MinC-MCT-CNPQ) no ano de 1988. Atualmente está em sua segunda edição.

A transformação do trabalho escravo em trabalho livre na região cafeicultora da Mata mineira é o objeto de estudo do livro. A autora procura entender esta transformação no quadro mais amplo da "transição capitalista", ou seja no panorama do desenvolvimento do capitalismo nos marcos das rotações da evolução do sistema mundial: redefinição do imperialismo, fim do exclusivo colonial, revolução tecnológica, etc. O estudo da constituição de um mercado interno de mão de obra, no caso da região estudada, é, para ela, "elemento que de forma mais profunda explicita esta transição"1. Pesquisar o caso de Minas Gerais justifica-se, de início, pelo fato de ser esta uma região com desenvolvimento específico e de importância no cenário político nacional, a província mais populosa na época e com o maior plantel de escravos.

Contrariamente a Wilson Cano, Francisco Luna e Roberto Martins, a autora afirma - apoiando-se em Roberto Sienes e Alcir Lenharo - que a província de Minas Gerais, exauridas as minas de ouro e diamantes, não se caracterizou por constituir uma economia de subsistência, mas sim por se inscrever, ainda que de maneira peculiar, no sistema econômico escravista brasileiro, produzindo alimentos e gêneros para o mercado interno nacional2. A partir da década de 50 do século XIX, a região da Zona da Mata passou a produzir café iniciando o seu desenvolvimento concomitantemente com o Vale do Paraíba e reproduzindo as condições técnicas de sua produção3. Já na década de 90, a hegemonia da produção cafeeira transferiu-se da região do Vale para o oeste paulista. A Mata mineira enfrentava, então, duas ordens de dificuldades para prosseguir a expansão acelerada da lavoura: falta de capitais e estrangulamento do sistema de transporte.

Como mostra a autora, a bibliografia relativa à questão da transição do trabalho escravo para o trabalho livre centrou-se, em geral, no caso do oeste paulista, o núcleo dinâmico das transformações no país nesse momento. Nesta região a forma predominante foi a utilização do imigrante europeu, com a substituição física do negro pelo branco, dentro de um projeto de constituição de uma nação "branca"4.

No entanto, se a imigração foi a forma da transição encontrada para a província de São Paulo, não foi o único projeto existente. A proposta imigrantista venceu em São Paulo, mas a transição para o trabalho livre também se realizou no resto do país: "A abolição lenta com a incorporação do cativo ao mercado de trabalho, a imigração chinesa, o aproveitamento do trabalhador nacional e a imigração européia indicam as diferentes formas de transição discutidas naquele momento"5. Segundo a autora, a historiografia, ao estudar a transição para o trabalho livre com base na reflexão empírica sobre a realidade de São Paulo, limita-se ao exame de uma das formas dessa transição (a imigração européia) e sobrepõe dois processos de natureza distintos: a transição em geral e a sua forma específica em São Paulo. Esta limitação acaba por confundir a própria constituição do trabalho livre, comum a toda a nação, com a forma particular articulada em São Paulo ("o imigrantismo supostamente nacional"). A compreensão dessa transição nas demais regiões do país fica prejudicada, na medida em que se procura no imigrante o suposto elemento explicativo da realização da transição e, consequentemente, do sucesso ou fracasso do desenvolvimento capitalista. "No extremo, tudo se passa como se a ausência do imigrante definisse a debilidade do desenvolvimento capitalista"6.

Para Ana Lúcia, a generalização dessa "impossibilidade" do uso do elemento nacional, seja ele o ex-escravo ou o livre pobre, teria surgido na historiografia em razão da explicação do processo hegemônico: a solução imigrantista. Grosso modo, a autora divide em dois grupos esta linha de interpretação: de um lado, explicita a inadequação do ex-escravo às novas necessidades do mercado de trabalho e, de outro, destaca as impossibilidades de uso do trabalhador nacional livre como força de trabalho básica para a lavoura cafeeira7.

O livro esclarece que a forma específica da transição na Mata mineira está referenciada a um projeto que, se foi derrotado na província de São Paulo, não deixou de mostrar sua viabilidade. Analisando as atas do Congresso Agrícola de 1878, realizado no Rio de Janeiro, a autora percebe como a solução gradualista de substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre "nacional", que foi instaurado em 1871, com a lei de 28 de setembro8, passou a ser contestada nos debates pelos deputados representantes dos cafeicultores da região do oeste paulista, então a região em maior expansão. Incapacitados de conduzir a transição nos novos marcos propostos pelos paulistas - a imigração -, por dificuldades próprias de seu desenvolvimento, os plantadores do Rio de Janeiro, Espirito Santo e Minas Gerais defenderam o projeto de 1871.

Mais tarde, quando o projeto paulista fez-se vitorioso (passando a ser sustentado pelo Governo central), a transição na Zona da Mata mineira realizou-se pela incorporação dos nacionais (ex-escravos ou não).

"Esta negação da imigração como solução e braços para a lavoura não significa arcaísmo ou recusa das relações de trabalho livre. Antes demostra que a solução para a mão de obra foi encontrada internamente, com a população existente"9.

Para a autora, a razão do sucesso desta forma de transição, nas regiões que a encetaram (aqui, naturalmente, está tratando da Zona da Mata mineira), consiste principalmente no fechamento da fronteira de novas terras ainda no início dos anos 90. Segundo a autora esse fechamento:

"(...) é um dos fatores determinantes das possibilidades de organização do mercado de trabalho livre. A demanda por trabalhadores era conhecida pois a expansão da cultura estava necessariamente restrita a limites geográficos já definidos e nenhuma técnica poupadora de trabalho ou intensificadora da produção foi introduzida na cultura cafeeira"10.

Por fim, analisa (no capítulo 3) as formas concretas de organização do trabalho livre na Zona da Mata, onde três foram as relações de trabalho de expressão mais marcantes: a parceria, o assalariamento temporário e os colonos - pequenos proprietários reunidos por iniciativa governamental em núcleos de colonização. As duas primeiras formas foram as dominantes, segundo a autora.

O ponto marcante do livro é, justamente, ir além da crítica da bibliografia a nível simplesmente conceituai, não descartando sua validade in totum. A autora ressalta as formulações dessa historiografia, no sentido de que as soluções estavam atadas à forma de transição encetada na região mais dinâmica da economia nacional (o oeste paulista), e avança para a análise concreta do caso da Mata mineira, mostrando, destarte, uma via específica da transição. Há, assim, uma diversidade no processo de transição do trabalho que não foi apreendida pela historiografia, pois a solução imigrantista seria apenas uma das vias (a forma hegemônica - no sentido apontado acima) do processo mais amplo e geral, que é a transição para o trabalho livre.

A não utilização do trabalhador nacional, no caso da província de São Paulo, deveu-se às condições objetivas desse processo de transição, e não porque assim desejavam as elites, mas porque assim puderam fazer. As justificativas construídas pela classe dominante, tal como o projeto de constituição de uma nação branca, não devem ser entendidas como propulsoras da transição. Isto é, a razão para a forma de transição adotada não se encontra na razão (expressa pela classe dominante) da não utilização do nacional. O livro de Ana Lúcia nos ajuda a pensar sobre este problema. Se o ponto central do "projeto de 1871" de transformação das relações de trabalho era permitir formas de disciplinar e incutir naqueles que constituíam a força de trabalho da transição capitalista brasileira (os "naturais", é claro) a ideologia do trabalho necessária ao projeto capitalista de organização social, o problema estava colocado em termos de dominação11.

A internalização da disciplina burguesa, ou do "tempo burguês", pelos trabalhadores tornava-se necessidade crucial. Em outras palavras, a questão era a possibilidade de condicionar a nova força de trabalho em um espaço de dominação recém inaugurado, Havia, em suma, um pré-requisito ao projeto gradualista que era a necessidade de um "período de tempo longo" para a incorporação do então ex-escravo aos ditames do trabalho livre. Isto quer dizer que a solução gradualista - como já indica sua própria nominação - pressupunha um tempo longo de efetivação (tempo de constituição de uma mão de obra adaptada às novas formas de dominação), coisa que o "oeste paulista", digamos assim, era incapaz de "compreender" -, uma vez que vivia um momento de desenvolvimento acelerado da lavoura e portanto de uma demanda inadiável de mão de obra12. Como se vê, as expressões ideológicas dos diversos projetos para a transição ganham significado e viabilidade no devir, em conformidade com as suas condições proprias.

Por outro lado, não podemos deixar de notar que, na crítica à sobreposição que faz a historiografia do processo paulista com a transição mais geral, a tese esbarra no perigo de identificar as soluções dessa historiografia13 como tradução do ideário dos imigrantistas. Identificação esta um pouco apressada, pois, como alertou Ciro Cardoso, o problema situa-se alhures:

"A história específica do surgimento da 'escola sociológica de São Paulo mostra serem as posições centrais da mesma comuns a uma tendência historiográfica pancontinental de fins da década seguinte, que seria extremamente difícil atribuir ao ideário dos políticos imigrantistas de São Paulo"14.

Certamente, A Transformação do Trabalho de Ana Lúcia é importante contribuição ao conhecimento dos processos fundamentais da constituição do Brasil moderno. Enquadra-se, portanto, numa ampla corrente da historiografia que tenta conduzir a pesquisa em história dentro de articulações maiores, isto é, tendo sempre em vista uma visão do conjunto e, portanto, um projeto. É de monografias como esta, profissionais, que a reconstituição da realidade do processo da transição do trabalho escravo para o livre depende.


1 LANNA, Ana Lúcia Duarte,A Transformação do Trabalho, p.14..
2 Ibidem., p.25-28., LUNA, Francisco V. e CANO, Wilson, Economia escravista em Minas Gerais. In: Cadernos IFCH/UNICAMP, v. 10, Campinas, 1983; CANO, Wilson Padrões diferenciados das principais regiões cafeeiras (1850/1920). Anais do XII Encontro Nacional de Economia. São Paulo, 1984, p. 461-480; MARTINS, Roberto. Growing in Silence: the slave economy of nineteenth-century in Minas Gerais, Brazil. Tese de doutoramento, Vanderbilt University, 1980, mimeo.; MARTINS, Roberto. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego a escravidão numa economia não exportadora. Estudos Econômicos, São Paulo, IPE, v. 13, n.1, 1983; SLENES, Robert. Os Múltiplos de Porcos e Diamantes: a economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Cadernos IFCH/UNICAMP, v. 17, Campinas, 1985; LENHARO, Alcir. As Tropas da Moderação, São Paulo: Símbolo, 1979.
3 LANNA, Ana Lúcia. Ob. cit., p.34.
4 Ibidem., p.45.
5 Ibidem., p.46.
6 Ibidem., p.47.
7 Ibidem., p.48.
8 Nos termos de Ademir Gebara, em seu O Mercado de Trabalho Livre no Brasil (1871-1888). São Paulo: Brasiliense, 1986.
9 LANNA, Ana Lúcia. Ob.cit., p. 107.
10 Ibidem., p.36.
11 Ibidem., p.51-52. A autora esta fazendo referência a tese de GEBARA, Ademir. Ob. cit.
12 LANNA, Ana Lúcia. Ob, cit., p.51-55.
13 Refere-se precisamente a chamada "escola paulista de sociologia", cf. FERNANDES, Florestan e BASTIDE, Roger. Brancos e Negros em São Paulo. São Paulo: Nacional, 1959; FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: FFLCH/USP, 1964; CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. 2a.ed.. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: DIFEL, 1966; IANNI, Otávio, Metamorfoses dos Escravos (apogeu e crise da escravatura no Brasil meridional). São Paulo: DIFEL, 1962.
14 Escravidão e Abolição no Brasil, Rio de Janeiro, 1988, p.101.


Revista de História - USP

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