sábado, 5 de junho de 2010

Cultura e identidade operária: Aspectos da Cultura da Classe Trabalhadora



Fernando Duarte Caldas
Pós-graduando em História Social, DH -FFLCH/USP


LOPES, José Sérgio Leite, Coord.. Cultura e identidade operária: Aspectos da Cultura da Classe Trabalhadora. Rio de Janeiro: Marco Zero-URFRJ, 1987, 226 p.

Para explicar como a Terra pode estar sempre imóvel e em posição estável, os geômetras imaginaram uma única condição, idealizada a partir de um conceito de um ponto fixo.

O temor de nada se encontrar como suporte do mundo, que assim poderia errar perdido em um movimento descendente e caótico, exigiu solução do espírito geométrico para livrar-se da vertigem e do pavor do Tártaro -, do "vasto abismo", onde todo sentido de direção se anula e onde a única possibilidade é a queda cega, sem fim e sem rumo.

A concepção euclidiana de ponto, como aquilo que não tem parte, o não fragmentário, indiviso, pode figurar com presteza um certo tipo de raciocínio próprio do pensamento ocidental, que ainda hoje orienta a busca incessante para se estabelecer um saber harmonioso e não temerário sobre o mundo e o que nele carrega sentido próprio: o homem.

No atual momento do pensamento contemporâneo, em que muitos pressupostos vêm sendo postos em xeque, sensações de vertigem, e euforia emergem simultaneamente diante do que aparece como representações possíveis do mundo e da ordem das coisas e as possibilidades latentes da destruição do sentido, ou de uma nova aurora.

Pode parecer que essas idéias estejam muito distantes dos problemas colocados, pela antropologia, sociologia ou pela historiografia, quando tratam de um tema específico como o da cultura operária. Contudo, a distância vai-se tornando tanto menor, quanto mais percebamos que as questões postas sobre a percepção do modo de vida e de existência de um determinado grupo ou classe social, estão ligadas ao movimento epistemológico que hoje critica e relativiza a lógica e a razão identitária.

Não é pouco sintomático o fato de, na contracorrente de um pensamento de ruptura com toda antropologia e com o humanismo filosófico -, pensamento que cultiva a convicção de que a autonomia do sujeito é uma ilusão -, surgir um enfoque antropológico de resgate da vida do sujeito, lá onde ele parecia estar "prestes a desaparecer, real ou supostamente". Não deixa de ser interessante que os trabalhos recentes de distintas áreas das Ciências Sociais, que tributam à filosofia da geração de 1960 a inspiração para o desenvolvimento de novas descobertas, retirem dessa filosofia caracterizada pelos fortes traços anti-humanistas -, que falam da "morte do homem", do "fim do homem" -, toda uma nova sensibilidade e percepção mais aguda sobre uma dimensão da vida que borbulha e brota ali mesmo onde ela se dá, revistindo-se a si mesma de sentido e significação, em sua dignidade ôntica.

Não é tampouco que não devamos levar a sério o anti-humanismo das filosofias dos anos 1960, e entendê-las como tendo uma simples função catártica que trouxesse à tona os espectros sombrios que ameaçam a cultura humanista moderna. A radicalidade desse pensamento vai muito além.

É, talvez, por tudo isso que se tornou recorrente, em alguns trabalhos de intelectuais brasileiros, expressarem seu fascínio por esse pensamento que eclodiu com muita força na França de 1968. Esse aspecto é explícito no artigo de Maria Célia Paoli e implicitamente indicado por outros autores, que assinam os Artigos reunidos no livro Cultura e Identidade Operária. Todavia, outras vertentes do pensamento parecem marcar mais profundamente a incorporação da problemática, que os autores desses Artigos assumiram. O que de alguma forma relativiza a impressão de ser a influência, daquela filosofia, hegemônica em nossos dias.

Os Artigos reunidos no livro Cultura e Identidade Operária têm correspondência, basicamente porque são estudos de temas relativos à classe trabalhadora, tomando o mundo do trabalho como enfoque temático privilegiado. Entretanto há uma pluralidade tanto do ponto de vista desses enfoques temáticos como dos métodos de trabalho.

Os Artigos de Luiz Fernando Duarte e Giralda Syferth baseiam-se em pesquisas etnográficas em grupos delimitados e contemporâneos. Essas Privilegiam a informação direta, oral ou de observação do pesquisador sobre o modo de vida e comportamentos dos grupos sociais enfocados.

Já Maria Célia Paoli escreve um artigo sobre o proletariado a nível nacional, recortando o período 1930-1940, onde procura resgatar e construir o que entende por experiências vividas interior das relações sociais engendradas no processo mesmo de proletarização dos trabalhadores. Seu objetivo é pensar o cotidiano popular, condições de vida e trabalho, bem como práticas políticas de um determinado grupo social (os trabalhadores têxteis). É ela mesma quem diz: "o que me interessa (...), é conhecer a trajetória concretas dos trabalhadores urbanos, neste processo, no interior do tempo onde experimentaram sua proletarização" (p. 58). Maria Célia recorre às fontes de informação possíveis, e uma vez que a fala própria dos trabalhadores é uma fala silenciada e inexistem os registros e depoimentos diretos, resta ao historiador trabalhar sobre os registros existentes e assim é pela "fala do outro", que se procura levantar a história dos dominados. Trata-se de saber "até que ponto os discursos ideológicos institucionais poderiam falar para além de sua própria dominação" (p.50). Trabalhando sobre materiais que não são produzidos pelos próprios trabalhadores, a tarefa não se resume a procurar apenas "aquilo que se ocultou, mas também aquilo que diz dos grupos sociais populares".

Os Artigos de José Sérgio Leite Lopes e de Maria Rosilene Barbosa Alvim percorrem, por variantes distintas, um mesmo processo de transformação das relações de trabalho artesanais e camponesas em relações de produção capitalistas. Ambos os autores criticam uma vertente da literatura sobre a classe operária brasileira, que enfatiza o caráter rural da força de trabalho, ingressando no universo das relações industriais em regiões específicas, de forma a encontrar a explicação e a origem das relações do tipo tradicional e patrimonialistas presentes nas industrias. Os autores baseiam-se na obra de Juarez Rubens Brandão Lopes, Crise do Brasil Arcaico, para refletir sobre variantes atinentes aos interesses específicos das pesquisas desenvolvidas por cada um deles. Rosilene Alvim destaca o problema da reprodução da organização familiar e dos modelos de autoridade no processo de proletarização dos camponeses, dentro do modelo fábrica - vila operária, onde a família assume papei fulcral nas relações de dominação. O artigo de José Sérgio Leite Lopes complementa esta reflexão, sobre a mesma obra, enfatizando o caráter de heterogeneidade das relações sociais de dominação, que se foram individualizando. No caso específico do modelo fábrica-vila operária enfocado em Mundo Novo e Sobrado (municípios da Zona da Mata de Minas Gerais), as formas específicas de dominação: do capital sobre o proletariado e, portanto, das características próprias deste proletariado, levando-se em conta essa forma de dominação. Nas palavras do próprio autor – "Levar em conta essa forma específica de dominação não implica em analisá-la do ponto de vista do capital mas, ao contrário, implica em estudá-la do ponto de vista da força de trabalho, que pela sua vivência própria, dá elementos para o desvendamento das dimensões diversas e das consequências dessa dominação dobre o trabalhador", (p. 151). Conclui-se, então, que a concepção generalizadora da problematização teórica na polarização tradicional/moderna e patrimonialismo/burocracia, não é capaz de revelar o sentido mesmo de relações sociais determinadas, que emergem das formas específicas de industrialização, nem adversidade de como a industrialização foi vivida pela classe operária em contextos e situações definidas.

Colocado sinteticamente o conteúdo dos Artigos, podemos nos convencer de que eles guardam somente uma identidade relativa. E o fato de estarem reunidos em um único livro pode sugerir apenas a casualiadade que os uniu, qual seja, de terem sido apresentados no encontro "Questões sobre a Cultura Operária", promovido pela Associação Brasileira de Antropologia e realizado no Museu Nacional (UFRJ) em novembro de 1982.

É esclarecedora a introdução feita por José Sérgio Leite Lopes, ao mencionar a fonte inspiradora a esse seminário e o enfoque antropológico, que o orientou. Assim, é que se atribui essa inspiração a uma "tradição" recente da literatura sobre classe operária, que congrega estudos de historiadores sociais como Duveau, Hobsbawn e Thompson, como também estudos antropológicos de comunidades, que importam os delineamentos de uma problemática antropológica, enfatizando a prática cotidiana, as tradições, a diferenciação interna, o pensamento e a internalização subjetiva das condições materiais de existência relativas a classe trabalhadora (p.12).

A produção dessa vertente de estudos sobre a classe operária dá-se a partir da década de cinquenta, como literatura que segue a "contracorrente da hegemônia literária do pós-guerra sobre o emburguesamento da classe operária européia e americana", nota Leite Lopes; acrescenta ainda que nos países subdesenvolvidos essa vertente hegemônica centrou-se nas variantes de uma literatura sociológica, que enfatizou a origem rural do operariado, caracterizando sua inadaptaçào à sociedade moderna e os efeitos de emburguesamento precoce, e dos aspectos impeditivos de uma consciência de classe (p.13).

Nota-se que os autores dos Artigos movem-se então no campo das problemáticas propostas por aquele enfoque antropológico, ao incorporarem as questões relativas à heterogeneidade, à especificidade e à diferenciação interna, indicando desse modo o acolhimento de estudos que conferiram novo estatuto analítico à experiência vivida das condições materiais de existência e ao simbólico como suporte da reprodução social e do conflito de classes.

Maria Célia, por exemplo, incorpora a idéia do "fazer-se da classe", para interpretar como se dá o trajeto da história e da própria vida dos dominados. Essa expressão, cunhada por Thompson, é avaliada por ela nos seguintes termos: "Quando se pensa em cotidiano popular, condições de vida e trabalho, entendimento de mundo, práticas políticas não estruturadas, parece-me que se reintroduz o simbólico no centro do trabalho das ciências sociais - o simbólico como representação e significado, em um sentido muito próximo à designação antropológica do termo. Ao redescobrir a história concreta dos dominados, o marxismo, hoje, revalida a noção de experiência vivida das condições reais de existência, como suporte da reprodução e da luta de classes - e com isso, não apenas enterra uma noção de ideologia como sistema cristalizado de idéias, como a reintroduz na forma de representações culturais com significado real" (p.57).

A reintrodução do simbólico e o redimensionamento da categoria cultura no centro dos trabalhos das ciências sociais recupera outro ou outros sentidos da história dos dominados. Os estudos sobre cultura operária ganham assim importância relevante para a inteligibilidade da força histórica de diferentes ideologias e o seu papel de promover em contextos concretos o reconhecimento, a submissão e a obediência como também a revolta e a resistência dos dominados (p.57).

É sob esse aspecto que o trabalho de Maria Célia consegue demarcar posições com relação à literatura sobre classe operária brasileira. E um dos pontos fundamentais que se deve reter, é o que diz respeito à valorização analítica das experiências fabris. As referências sociológicas relativas à experiência fabril dos trabalhadores geralmente denotam sua fragilidade em articular questões políticas e sociais mais gerais. O espaço da fábrica é caracterizado como "espaço do desamparo e da fraqueza dos operários brasileiros". Incapazes de transcender o espaço fabril e transpor aquilo que se considera "mero nível" da luta econômica para uma consciência política de classe que articule sua organização e lutas reivindicatórias com os grandes temas da política - a questão do Estado e a luta pelo poder -, os trabalhadores mostram-se sem lastro para executar sua tarefa histórica. Sendo assim, esse tipo de interpretação deixa de entender o que, aos olhos de Maria Célia, parece fundamental. Isto é, que foi no nível das lutas econômicas que os trabalhadores, em uma determinada época de sua proletarização, conseguiram visualizar e vivenciar seu próprio espaço político. Sendo elas mesmas a base de articulação do movimento. "Pois é nesse nível que emerge a experiência cotidiana crucial dos trabalhadores como classe" (p. 61).

Existe um cotidiano concreto de uma classe expresso em uma prática política, que especifica o próprio significado das experiências comuns e do reconhecimento mútuo. Essa luta, seja em que nível se coloque, está sempre propondo aos dominados a interpretação de sua própria dominação.

Os Artigos de Luiz Fernando Duarte e de Giralda Seyferth, trabalhando sobre materiais etnográficos sobre pescadores de Jurujuba e dos colonos-operários do Vale do Itajaí, respectivamente, também sugerem pontos críticos que os diferenciam daquela literatura sobre classe operária já consagrada na produção brasileira. E como assinala Leite Lopes: "um desses pontos (...) é o estudo não somente da heterogeneidade e da diferenciação da classe operária, mas do esforço analítico investido em suas parcelas menos modernas do ponto de vista da evolução das forças produtivas e que se utilizam (...) de formas não capitalistas de produção para sua reprodução social" (p. 15). Ambos os trabalhos apresentam "situações-limites" referentes a padrões diferenciais de resistência ou de acomodação à dominação. Tanto os pescadores de Jurujuba, como os colonos-operários de Brusque, no Vale do Itajaí, demonstram como se geram as especificidades das formas de resistência, a um ritmo, ou uma intensidade de proletarização, que não tem correspondência imediata nos padrões tradicionais de organização.

No caso dos colonos-operários de Brusque essa forma de resistência envolve todo um conjunto de representações que constituem a identidade própria desse grupo e cuja a característica fundamental é a sua ligação com a terra. A ênfase dada à propriedade da terra incide na percepção, por parte desse grupo, das razões de escolha do trabalho assalariado e da valorização da atividade agrícola, entre outras, mostrando que, pelo menos no plano ideológico, a atividade assalariada na indústria é compreendida como acessória ou suplementar, mesmo quando os seus salários se coastituem na parte mais relevante para a subsistência. Isso indica por um lado os elementos de reação e resistência à proletarização de forma submissa, como, ao mesmo tempo reflete o esforço em manter-se a identidade de um grupo integrado ao meio camponês, que por isso permitiu a reprodução de parte do campesinato dessa região.

Quanto aos pescadores de Jurujuba, Luiz Fernando Duarte apresenta formas próprias desse grupo em articular sua identidade. Em dois dos Artigos apresentados no livro, o autor chega a empolgar-nos com a sensibilidade com que descreve o universo de significações com o qual se representam as condições específicas de existência e o modo de vida desse grupo de pescadores, num determinado momento de sua proletarização e da ameaça da disrupção de uma ordem social, que tecia os elos tradicionais de identidade dessa comunidade de pescadores. Sob as ameaças das forças de modernização e das relações de produção capitalistas, a representação desse processo é vivida e é preenchida por um conjunto de referências a uma tradição, que garantia determinadas condições de reprodução social dessa comunidade de pesca. Sob essa perspectiva o autor interpreta num primeiro artigo a referência de trabalhadores aos cemitérios de escravos, amarrando simbolicamente identidades em um tempo e em um espaço, que religa condições específicas de dominação e de condições de vida e de trabalho. Atribuí-se assim ao passado de escravos e de suor do trabalho a função de uma imagem de identidade, pela qual o presente, através dela, possa falar, reconhecendo-se assim os sinais de legitimidade de uma problematização atual (p.50).

Seria inútil, para nossos fins aqui, abordar todas as nuanças das problematizações e da especificidade de cada objeto das análises desenvolvidas nesses Artigos, pois cada um deles carrega complexidades próprias de natureza teórica e metodológica. Contudo, cabe destacar que a despeito das dificuldades de se organizar e sistematizar trabalhos de áreas distintas das Ciências Sociais, trabalhos antropológicos, de ciências políticas, historiográficos e sociológicos, resulta daí, também, uma importante rede de inter-conexões que pode ampliar os horizontes de todos os interessados. Quanto mais, diga-se, no que diz respeito a um assunto tão caro aos historiadores, particularmente, que podem extrair de trabalhos etnográficos - e o inverso também procede -, como os que estão reunidos em Cultura e Identidade Operária, importantes efeitos heurísticos, enriquecendo-se assim os horizontes de pesquisa a se realizarem sobre os modos de existência social e política dos trabalhadores.

Concluindo, não podemos exarcebar nosso espírito geométrico na explicação da experiência histórica. Não há ponto fixo onde se possa estabilizar as formas históricas. Enquanto a razão modelar, identitária, procura a fixação abstrata de formas históricas como a classe, o estado, etc., como elementos pontuais de suporte de sentido para toda história; a experiência vivida impõe, a cada momento, a possibilidade de uma nova representação, de uma nova significação das condições de existência, de uma nova ou velha prática política e social. Enfim, a experiência vivida, heterogênea, específica, fragmentada, está sempre a mover o mundo das representações e o mundo real. Talvez a idéia da queda no "vasto abismo", antes de nos causar vertigem ou náusea, deva nos dar alento e esperança, ao reconhecermos, que as diferenças e a heterogeneidade não instauram o caos e a impossibilidade do pensamento, mas sim que revigora o eterno indeterminado e as múltiplas possibilidades do conhecimento.

Revista de História - USP

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