sexta-feira, 25 de junho de 2010

Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia


DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1995-1997. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34. 715 pp.

Ovídio Abreu Filho
Prof. de Antropologia, UFF


Em 1997, publicado seu quinto volume, concluía-se a edição brasileira de Mil Platôs, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que se iniciara em 1995. O intervalo entre a edição original dessa obra, que é de 1980, e a de sua tradução completa para o português não deixa de revelar as dificuldades na recepção desse livro que faz avançar o trabalho de criação de uma nova imagem do pensamento e que questiona os pressupostos dominantes na filosofia e nas ciências humanas: a crença em uma tendência natural do pensamento para a verdade, o modelo do reconhecimento e a pretensão de um fundamento.

Mil Platôs, que compartilha com O Anti-Édipo o subtítulo Capitalismo e Esquizofrenia, não é uma continuação linear das teses propostas no livro de 1972: de um volume a outro há mudança de tom e avanços da criação. Mesmo que pudéssemos imaginar que o Anti-Édipo tivesse como subtítulo "pela filosofia", nele a construção ético-filosófica se fez através de uma crítica. Mil Platôs, ao contrário, é um livro fundamentalmente positivo: não estamos mais diante de uma crítica do Édipo, e sim da construção do conceito de multiplicidade, para além da oposição do Um e do Múltiplo, e dos dualismos da consciência e do inconsciente, da natureza e da história, do corpo e da alma.

A teoria da multiplicidade efetua uma interpretação do real que conjuga uma construção ontológica e uma leitura do mundo e da sociedade que surpreende com uma nova distribuição dos seres e das coisas: não admite unidade natural, uma vez que não se apóia em nenhuma necessidade e não visa a nenhum prazer; não reconhece a falta, uma vez que não se constitui em referência a uma unidade ausente (recusando, pois, a noção de desejo como falta); e não aceita nenhuma transcendência - seja na origem, como idéia ou modelo, seja no destino, como sentido historicamente desenvolvido. A perspectiva da imanência e o conceito de multiplicidade fazem do pensamento uma atividade ética - sem modelos e finalidades transcendentes - avessa a qualquer conforto moral ou orientação histórica.

Mil Platôs é composto de quinze "platôs", conceito que, tomado de empréstimo a Bateson, designa uma estabilização intensiva e, no caso, uma multiplicidade conceitual. Pois os conceitos, para Deleuze e Guattari, devem determinar não o que é uma coisa, sua essência, mas suas circunstâncias. Explica-se, assim, que cada platô possua um título relacionado a uma data. Os títulos enunciam um campo de problemas e as datas indicam que se pretende determinar a potência e os modos de individuação de um acontecimento. Cada platô realiza um mapeamento, cujos movimentos descrevem um mesmo percurso: parte-se do interior de um ou mais estratos e de seus dualismos na direção de suas condições de possibilidade, das "máquinas abstratas" que os efetuam e os determinam como atualizações; simultaneamente, os estratos são associados aos agenciamentos de poder que lhes são anexos e primeiros; por fim, em um outro giro, o pensamento contorna as máquinas abstratas e as remete a um plano de consistência a que se acede por desestratificação: revela-se assim, nesse percurso, a heterogeneidade, a coexistência, as imbricações e a importância relativa das diferentes linhas que compõem uma multiplicidade. E ainda que a edição brasileira tenha subdividido o original em cinco volumes, percebe-se que os editores buscaram recortar o livro de acordo com uma certa unidade de problemas.

O primeiro volume contém, além do prefácio à edição italiana (onde os autores avaliam a novidade e a recepção do livro), uma apresentação da ontologia das multiplicidades. Na Introdução: Rizoma, recusa-se a idéia do pensamento como representação, sua submissão à lei da reflexão e da unificação, e apresenta-se Mil Platôs como livro-rizoma que, abolindo a tripartição entre o mundo, como campo de realidade a reproduzir, a linguagem, como instância representativa, e o sujeito, como estrutura enunciativa, é capaz de conectar-se com as multiplicidades. A escrita rizomática, que se define pela operação de subtração dos pontos de unificação do pensamento e do real, realiza um mapeamento e uma experimentação no real que contribui para o desbloqueio do movimento e para uma abertura máxima das multiplicidades sobre um plano de consistência. O platô seguinte, 1914. Um ou Vários Lobos?, consiste em uma crítica da psicanálise que aprofunda as reflexões iniciais sobre o conceito de multiplicidade. O terceiro platô, 10.000 a.C. A Geologia da Moral (Quem a Terra Pensa que É?), apresenta a ontologia como geologia das multiplicidades, constituídas por movimentos de estratificação e desestratificação que se conjugam com movimentos de territorialização e desterritorialização traçados por máquinas abstratas que operam sobre diversos planos de consistência.

O segundo volume contém dois platôs fundamentais: 20 de Novembro 1923. Postulados da Lingüística e 587 a.C. Sobre Alguns Regimes de Signos. Evitando pressupor qualquer relação de representação e de causalidade - material ou simbólica - entre os sistemas de signos e os sistemas maquínicos dos corpos, Deleuze e Guattari dissolvem os postulados de base do estruturalismo e da teoria marxista da ideologia. Atacam os pressupostos da semiologia, questionando o primado da comunicação e sustentando ser a "palavra de ordem" a função primeira da linguagem. Criticam a distinção langue/parole e destronam a independência e autonomia da langue com os conceitos de agenciamento coletivo de enunciação e regimes de signos; não admitem uma semiologia geral, negando qualquer privilégio de um regime de signos sobre os outros.

O terceiro volume congrega platôs essenciais para a compreensão da micropolítica e da esquizoanálise. 28 de Novembro de 1947. Como Criar para Si um Corpo sem Órgãos retoma e desenvolve o conceito de "corpo sem órgãos" proposto em O Anti-Édipo, conceito que permite pensar o desejo como processo que produz o campo de imanência de seus agenciamentos e não na dependência da idéia do corpo como origem das necessidades e lugar dos prazeres. Criar, selecionar e articular os corpos sem órgãos plenos, eis o programa da esquizoanálise. O platô Ano Zero. Rostidade faz o mapa de uma semiótica mista, que combina significância e subjetivação, encarados como procedimentos de comparação e apropriação que asseguram uma política de inclusão diferencial que ignora a alteridade e que define, segundo os autores, o racismo europeu. Os platôs 1874. Três Novelas ou "O que se Passou?" e 1933. Micropolítica e Segmentaridade, ensinam que o real é feito de linhas, isto é, de movimentos heterogêneos que operam segmentações (binárias, circulares e lineares), duras ou flexíveis, constituindo dimensões molares ou moleculares, e fugas criadoras, tudo em perpétua coexistência e interpenetração. A diferença de natureza dos planos molares e moleculares - que remetem a sistemas de referência distintos, linhas sobrecodificadas de segmentos e fluxos mutantes - não impede, pelo contrário, sua pressuposição recíproca. Os autores propõem uma visão original sobre o que denominam centros de poder, definidos por suas operações de conversão dos fluxos moleculares em segmentos molares, e sobre o Estado, pensado como agenciamento de reterritorialização ou movimento de sobrecodificação que organiza a ressonância dos centros de poder.

O quarto volume reúne dois platôs (1730. Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível e 1837. Acerca do Ritornelo) dedicados a contornar a visão mimética da natureza, que se sustenta em uma ontologia onde o ser se diz de modo análogo segundo suas distribuições categoriais. Contrapõem a univocidade à equivocidade e analogia do ser, afirmando-o como potência de diferenciação irredutível às idéias de modelo e de imitação. Como pensar, então, os entes concretos e suas relações? Os autores respondem que os entes são diferenças e suas relações devires, afetos ou modificações, que devem ser pensados independentemente das idéias de forma, função, espécie e gênero. O conceito de devir acompanha o abandono das concepções substancialistas e da perspectiva "hilemorfista" da individuação (simples encontro de forma e matéria), para pensar os corpos como singularidades e seus devires como processos irredutíveis às sobrecodificações do organismo, do significante e do sujeito. Nesse sentido, os devires são moleculares e minoritários; imperceptíveis (anorgânicos), indiscerníveis (assignificantes) e impessoais (assubjetivos). Nesse universo de intensidades, o conceito de "ritornelo" enfrenta o problema da consistência ou da consolidação de agenciamentos de heterogêneos, permitindo pensar a arte fora de qualquer modelo mimético.

O quinto e último volume encontra sua unidade em uma filosofia política que postula um conjunto de teses críticas às concepções racionalista e liberal, bem como ao marxismo. Três dos platôs aí reunidos (1227. Tratado de Nomadologia: A Máquina de Guerra; 7000 a.C. Aparelho de Captura; 1440. O Liso e o Estriado) deslocam a questão política do direito e da liberdade civil para o problema do domínio dos fluxos. Deleuze e Guattari afirmam, contra o racionalismo liberal, que o direito é impotente para controlar o Estado, uma vez que lhe é interior e representa uma forma específica de violência; contra o marxismo, questionam a dialética (a idéia de que uma sociedade se define por um modo de produção e por suas contradições), o evolucionismo e toda idéia de progresso histórico. O problema político é recolocado a partir da distinção entre dois grandes tipos de agenciamentos, que diferem em natureza mas que se pressupõem e que são coextensivos a toda a história humana: a máquina de guerra e o aparelho de Estado. A criação desses conceitos, a análise de suas transformações e de suas relações, e a distinção de duas modalidades de temporalização e de espacialização configuram novas direções para a compreensão das sociedades: não defini-las por suas contradições, mas por suas linhas de fuga; considerar não as classes e sim as minorias como potências revolucionárias; definir as máquinas de guerra não pela guerra, mas, antes, por um certo modo de ocupar e de inventar novos blocos espaço-temporais.

Finalmente, a Conclusão: Regras Concretas e Máquinas Abstratas retoma, na forma de um léxico, os principais conceitos desse livro, cuja atualidade está, não apenas no rigor de suas análises, mas, sobretudo, na sua potência de resistência às forças que buscam limitar o pensamento a uma reiteração das exigências do mercado ou de supostas necessidades históricas. Nesse sentido, Mil Platôs procura instigar - ao mesmo tempo que neles se apóia - movimentos que tentam escapar do controle dos axiomas capitalistas e das "necessidades" postuladas pela moderna teleologia liberal, bem como do niilismo que, ao contrário do que se gosta de imaginar, é imanente aos ideais de "progresso" embutidos nesses axiomas e nessa teleologia.

Revista Mana

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