sexta-feira, 25 de junho de 2010

Ieipari: Sacrifício e Vida Social entre os Índios Arara (Caribe)


TEIXEIRA-PINTO, Márnio. 1997. Ieipari: Sacrifício e Vida Social entre os Índios Arara (Caribe). São Paulo/Curitiba: Hucitec e Anpocs/Editora UFPR. 413 pp., ilustr.

Julio Cezar Melatti
Prof. de Antropologia, UnB

O livro tem por foco uma importante cerimônia dos índios Araras, centrada em um poste, erigido no pátio, em cujo topo, até tempos recentes, se punha o crânio de um inimigo, hoje substituído por uma bola de lama. Só isso já desperta a atenção do leitor, pois, vivendo os Araras sobre o divisor que separa as águas que correm para o Iriri, afluente do Xingu, das que descem diretamente para o Amazonas (mas destas últimas retirados após lograrem o contato amistoso com os brancos), eles têm como vizinhos vários outros grupos tribais que também faziam a caça de cabeças por uma extensa área, desde o Xingu até o Madeira. Entretanto, tais grupos pertenciam ao tronco tupi, enquanto os Araras, da família caribe, constituíam talvez a única exceção.

Mas o autor opta por não comparar, permanecendo no universo dos Araras, entre os quais realizou pesquisa de campo de cerca de quatorze meses em várias etapas, distribuídas pelos anos 1987, 1988, 1992 e 1994.

Começa por uma apresentação geral da cerimônia e das condições em que é realizada. Mostra-nos como cada tipo de festa arara inclui uma festa menor e pode ser englobada por outra maior, desde aquelas festas de beber, passando para aquelas de beber e comer, para aquelas em que também se tocam instrumentos musicais, se canta e se dança, até chegar à mais inclusiva e complexa, que é a do Ieipari, o poste encimado pelo crânio do inimigo. Descreve a elaboração da bebida fermentada de tubérculos, frutas ou milho, a maneira de oferecê-la, sua relação com substâncias como leite e esperma. Examina as técnicas de caça, o contato que um xamã (todos os homens Araras são mais ou menos familiarizados com as atividades xamânicas) estabelece com um ser dono de uma espécie animal, pedindo-lhe que os dê para criá-los, abrindo a oportunidade assim para que os outros homens possam abatê-los. Descreve os instrumentos de sopro, a ordem em que tocam, os seres a que estão associadas suas músicas. Mostra como os caçadores, aguardados com a bebida fermentada, que devem retribuir com carne, entram na aldeia fingindo um ataque, uma encenação agressiva omitida na forma mais abrangente do rito, quando há o Ieipari. Expõe o tratamento do inimigo, o que lhe dizem no cântico entoado antes de matá-lo e esquartejá-lo. Além do crânio, que integra um instrumento musical antes de vir a coroar o poste ritual, outras partes do corpo lhe são retiradas, mas seu destino, talvez por lacuna na memória dos Araras atuais, é apenas esboçado: os ossos das mãos e dos pés, a pele do rosto, o escalpo, as vísceras. Descreve a ereção do poste, como os homens o descascam com pancadas e palavras agressivas, e como as mulheres o abraçam fortemente e nele esfregam sensualmente suas vulvas. A carne trazida pelos caçadores disposta em torno do poste, assim como uma panela com bebida fermentada colocada ao pé do mesmo, são como ofertas do Ieipari. E as mulheres, ao tomarem dessa bebida, dizem reveladoramente que estão bebendo um filho.

Essa apresentação inicial, que constitui o primeiro capítulo, é em si mesma autônoma, não depende do que se segue para ser compreendida. Dir-se-ia que o livro se compõe de partes que acrescentam mais sentido à apresentação inicial, mas elas próprias também autônomas.

O capítulo referente à cosmogonia e à cosmologia aponta a origem de certos elementos integrantes do rito ou aspectos da condição humana que levam à sua realização: o instrumento de sopro que a divindade principal tocava para manter a calma e a boa ordem no céu, onde a humanidade vivia de modo paradisíaco, e que hoje faz a música de fundo das festas; a eclosão de um conflito que redundou na quebra da casca do céu, obrigando a humanidade a viver sobre os seus fragmentos, misturada aos seres maléficos até então mantidos do lado de fora; o ensino da festa, destinada a trazer novos filhos, pelo bicho-preguiça, que também deu aos humanos as flautas, a tecelagem em algodão e palha e povoou a mata de animais de caça; a recusa das mulheres de continuar a aplicar as técnicas destinadas a trazer de volta à vida aqueles que morriam, como faziam antes da catástrofe, de modo que a morte se instalou definitivamente entre os humanos e serviu para que a divindade, agora transfigurada na vingativa onça preta, transformasse as partes em que se dividem os corpos dos defuntos em uma série de seres danosos; a viabilização da caça por intermédio das relações de reciprocidade entre os xamãs e os espíritos donos de animais, em que estes dão àqueles bichos para criar e por sua vez criam um certo tipo daqueles seres danosos oriundos dos mortos. Se o primeiro capítulo sublinha a ausência da vingança nas palavras que os Araras dirigem ao inimigo, o segundo não trabalha o teor da vingança que atribui ao ser supremo.

A vingança ou sua ausência no conflito com o inimigo poderia ter sido um dos temas de discussão no terceiro capítulo, que se limita ao contato entre os Araras e os brancos. Não tenta reconstituir as relações dos Araras com outras etnias indígenas, a não ser com os Caiapós, mas estes apenas enquanto participantes das frentes de atração. Chama a atenção para o fato de os brancos não se contarem entre as vítimas cujas cabeças serviam de centro ao rito arara, até o momento em que a construção da Transamazônica pressionou fortemente pelo estabelecimento do contato. Que etnias indígenas teriam sido alvo das incursões araras, que motivos os moviam contra elas, ou, ao contrário, que razões os faziam limitar-se à defensiva são perguntas que talvez o autor não tenha feito ou, se as fez, das respostas não tirou proveito.

No quarto capítulo examina a coexistência de uma classificação horizontal dos termos de parentesco, aplicada aos membros da própria unidade residencial, com uma oblíqua, referente às relações com outras unidades. Mostra como o oferecimento ritual da bebida fermentada, que se faz entre a irmã (ou o marido dela) e o irmão, moradores de casas diferentes, é coerente com a classificação oblíqua. Observa também que um homem, ao dar sua irmã em casamento, pode reivindicar em troca a filha daquele que a recebeu, que não precisa necessariamente ser filha dessa ou de outra irmã. E ainda, quando uma mulher, dentre aquelas a que pode, pelo jogo das trocas, aspirar a ter como esposa, se casa com outro homem, este último passa a lhe dever uma irmã ou filha. Em outras palavras, uma esposa reivindicada que se torna cônjuge de outro gera dívida como se fosse uma irmã a este cedida. Sem dúvida, tudo isso é muito convincente e feito com maestria, apesar de as trocas de mulheres examinadas nos casos concretos mais parecerem deduções das genealogias do que descrições feitas a partir de depoimentos dos Araras. Mas, tendo em vista o rito que constitui o tema do livro, este capítulo talvez fosse o lugar de examinar também certas relações, como a dos amigos de guerra, que, ao sacrificarem juntos um inimigo, trocavam entre si temporariamente as esposas. Se, tal como a dos amigos de caça (recrutados entre os afins reais do mesmo grupo residencial), essa parceria tinha como protótipo genealógico a relação MB/ZS, mas escolhidos em outros grupos residenciais, no passado grupos locais distintos, ela poderia ter sido mais um motivo para o autor examinar a guerra como um fator de articulação entre os vários grupos locais. Quem guardava o crânio do inimigo e o usava como instrumento musical? Quem guardava os ossos dos membros, a pele da face, o escalpo? Como se fazia a circulação desses troféus? Que importância teriam eles nos ritos de passagem relativos à idade? São questões que poderiam ter sido exploradas neste capítulo.

O quinto capítulo, na verdade, abrange dois. Sua parte inicial (:305-343) trata da relação entre os modos de dar, as coisas dadas e as relações sociais envolvidas, de um lado, e os valores morais, de outro. A classificação das formas de dar bens e prestar serviços mostra-se sobremodo complexa, a ponto de mal poder ser ilustrada pela clássica esfera que combina os diferentes tipos de troca com a distância social, desde o núcleo da reciprocidade generalizada característica dos parentes próximos até a capa mais externa da reciprocidade negativa associada aos inimigos. Além disso, no caso dos Araras, esse gradiente é distorcido pelos ideais de generosidade, gentileza, solidariedade, de maneira que a representação gráfica escolhida pelo autor lembra os esquemas demonstrativos da influência do Sol e da Lua nas marés oceânicas (:337).

Na segunda metade do capítulo (:343-385), o autor retoma o grande rito anteriormente descrito e o analisa segundo três seqüências paralelas: a sucessão de festas, a das músicas, que já apresentara anteriormente, e a ordem das fases (marcadas por tarefas ou deslocamentos dos participantes). Uma incursão na teoria da linguagem de Hjelmslev não nos parece ter trazido novas luzes para a compreensão do rito. Por outro lado, neste capítulo e na conclusão que o segue, a idéia de "sacrifício", presente no título do livro, é tratada de modo demasiado sumário; Hubert e Mauss não são convocados, nem mesmo aquele que os seguiu no exame do mais discutido dos ritos de tratamento dos inimigos em nosso continente, Florestan Fernandes.

Tal como a classificação das bebidas de acordo com a altura das partes dos vegetais das quais são produzidas (:62) ou tal como o poste Ieipari, centro do grande rito, poderíamos dizer que a interpretação desenvolvida no livro passa do mais substancioso para o mais etéreo à medida que se desloca da base para o topo. Muito de mistério ainda paira sobre a cabeça do inimigo. Mas, certamente, o Autor continuará a busca de mais sentido com a elaboração de outros trabalhos.

Não obstante, o livro constitui uma excelente contribuição à etnologia indígena, tanto que a participação da Anpocs na sua publicação vem a ser o prêmio que essa instituição lhe concedeu como a melhor tese de doutorado de 1995. Curiosamente, não há nenhuma referência ao prêmio no volume.


Revista Mana

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