Políticas educativas e avaliação educacional: para uma análise sociológica da reforma educativa em Portugal
Dagmar M. L. Zibas
Fundação Carlos Chagas
Almerindo Janela Afonso
Braga: Instituto de Educação e Psicologia, Centro de Estudos em Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 1998, 421 p.
Rigoroso e instigante. Esses são os adjetivos que me parecem mais adequados para uma primeira qualificação do livro de Almerindo Janela Afonso. De fato, ao analisar os paradigmas de avaliação e as práticas avaliativas, não apenas como instrumentos básicos para a promoção da aprendizagem, porém, principalmente, como campos férteis para a introdução da democratização na escola e como mediações úteis para a compreensão dos fundamentos das reformas educativas e da trama político-social mais ampla, o autor delineia, com nitidez, um quadro teórico que dá sustentação sólida às suas teses.
Tais teses passam ao largo das explicações simplistas e dicotômicas e trazem à luz contradições e ambigüidades que caracterizam tanto o fenômeno educativo, quanto o processo macropolítico. Um exemplo nesse sentido é a análise do recente avanço do neoliberalismo e do neoconservadorismo em Portugal, avanço que, no entanto, como discutido por Afonso, tem deixado ainda espaços para um relativo incremento de políticas sociais. Na área da educação, o autor examina, detalhadamente, a elaboração dos projetos do ministério para a avaliação dos alunos do ensino básico, concluindo que as práticas induzidas pelo documento final constituíram um retrocesso político, embora o projeto contivesse, originalmente, possibilidades de expansão de direitos e elementos que poderiam contribuir para uma escola básica mais democrática.
Registrando esse entrave conservador, A. J. Afonso estuda outros aspectos das inovações educativas em Portugal – como aquelas referentes ao ensino técnico-profissional e às diretrizes para a gestão escolar – desvelando as descon-tinuidades que dão origem a decisões híbridas, de tal modo que a conformação última do sistema escolar, nos níveis não universitários, pôde ser considerada, na feliz expressão do autor, um "neoliberalismo educacional mitigado".
O exame extremamente cuidadoso e bem fundamentado de todo o processo da reforma portuguesa vem precedido da análise das reformas educativas, implementadas, nas décadas de 80 e 90, nos Estados Unidos, Inglaterra e Espanha. Essa ampliação analítica revela-se imprescindível para a melhor compreensão dos processos políticos que, a partir de países centrais, desencadearam a irresistível onda reformista dos sistemas escolares ao redor do mundo. A inclusão da Espanha – considerada, como Portugal, país semiperiférico – é muito útil para que as contradições do avanço neoliberal na educação possam ser bem caracterizadas. A conclusão de que as disposições legislativas espanholas, no que se referem à avaliação educacional, parecem caminhar no contrafluxo das influências exercidas pelos países centrais, é muito produtiva como indicação de possibilidades nacionais de resistência.
O substrato teórico, rigorosamente referido ao longo de todo o texto, é extensamente abordado no Capítulo III, que se fecha com uma importante e inovadora contribuição do autor: a interpretação da avaliação formativa como eixo fundamental na articulação entre Estado e comunidade e como procedimento que deve compor o conjunto de direitos sociais e educa-cionais característicos do Estado-Providência.
O livro é enriquecido pelo registro e análise da opinião de diferentes setores (sindicatos, partidos políticos, especialistas em educação etc.) a respeito do novo modelo de avaliação implantado. Professores de duas escolas públicas manifestaram-se sobre o tema por meio de respostas a um questionário especialmente construído e validado. Professores e outros especialistas também foram entrevistados. A distância entre a legislação e a prática escolar é analisada, ainda, pela abordagem de diversos tipos de documentos das escolas. O conjunto desses dados fecha, de maneira consistente, toda a discussão desenvolvida ao longo do texto, constituindo elucidativo apoio às elaborações teóricas.
Para os pesquisadores brasileiros, a obra de Afonso é desafiadora em diversos sentidos. A identificação de semelhanças e diferenças entre os processos de reforma no Brasil e em Portugal é um exercício inevitável e extremamente estimulante. Por exemplo, a identificação de fatores externos como condicionantes da formulação de políticas educativas portuguesas remete-nos, imediatamente, à conhecida influência do Banco Mundial na introdução de inovações no sistema educacional no Brasil. Ou seja, o exemplo português confirma que a atuação econômica do banco é orientada principalmente pelos objetivos políticos dos países centrais, pois, se tal atuação já se fez sentir em Portugal, em época de instabilidade política, sabemos que ela é constante e profunda no Brasil, em vista de nossa muito maior dependência de capitais internacionais e da fragilidade de nossa participação como cidadãos nos rumos das políticas públicas.
Outros aspectos pontuais aproximam os desdobramentos das reformas em Portugal e no Brasil. Um exemplo é a crítica à concessão desordenada de alvarás de funcionamento a escolas superiores privadas portuguesas, crítica essa que poderia referir-se, sem alterações, à realidade brasileira.
Os arautos da privatização, tanto no Brasil como em Portugal, usam os mesmos argumentos simplistas para a defesa da introdução das leis do mercado na educação. Nos dois países, os privatistas ignoram os resultados perversos de alguns modelos, como o chileno, a respeito do qual um insuspeito assessor do Banco Mundial admite que o festejado sucesso da privatização refere-se mais à diminuição dos investimentos públicos do que à melhoria da qualidade do ensino1.
A dicotomia aprovação/reprovação – ponto nevrálgico da avaliação e examinada detalhadamente por Afonso em relação à nova normatização – é outro aspecto de interesse para a comparação aqui desenvolvida. Em Portugal, a legislação abriu espaço para que a reprovação possa ser evitada pelo reforço educativo. No entanto, muitos professores têm simplificado o processo, aprovando diretamente alunos com rendimento insuficiente. Institui-se, então, o que o autor chama de "passagem automática praticada", embora não decretada, ou seja, não prevista na legislação. Para o exame da realidade brasileira, é útil a veemente argumentação do autor sobre a perversidade da prática da "passagem automática", sem que o aluno domine os conteúdos mínimos necessários, tornando a defasagem irrecuperável a médio prazo. No Brasil, onde, como se sabe, as condições de trabalho dos professores são muito inferiores àquelas oferecidas em Portugal, o processo de "passagem automática", em algumas regiões, tem sido induzido pelas administrações centrais, que estabelecem apenas um simulacro de reforço educativo ao final do ano letivo e exigem – explicitamente ou não – que seja efetivada a promoção. Embora se saiba que a repetência apenas prejudica a auto-estima, impedindo o progresso do aluno, o seu antídoto não pode ser a passagem automática. É verdade que, se generalizada, em pouco tempo tal tipo de promoção melhorará sensivelmente as estatísticas educacionais brasileiras. Por outro lado, o prejuízo aos alunos, principalmente aos mais pobres – privados de um reforço educacional que efetivamente eleve seu rendimento escolar –, estará diluído no conjunto das injustiças sociais do país.
Em resumo, pode-se afirmar que o texto aqui resenhado, ao examinar, com extremo cuidado teórico-analítico, a reforma educativa em Portugal, é uma leitura imprescindível não só aos pesquisadores daquele país, mas também aos especialistas do Brasil, interessados em alargar suas análises sobre o acelerado processo de mudanças educacionais atualmente em curso neste lado do Atlântico. Além disso, as muito breves e iniciais comparações – que puderam ser feitas, nos limites deste espaço, a partir da leitura do trabalho de A. J. Afonso – parecem atestar que o livro pode ser um eficiente incentivo para um maior intercâmbio entre pesquisadores portugueses e brasileiros.
Resenha publicada originalmente na Revista Portuguesa de Educação, v.1, n.12, 1999
1 CROUCH, L. A. Educación Secundária en Europa y América Latina: perspectiva de futuro. Espanha, 1995. [Trabalho apresentado no Seminário Internacional. Cuenca. Es.]
Revista Cadernos de Pesquisa
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