segunda-feira, 17 de maio de 2010

Outsiders. Estudos de sociologia do desvio


Cristina Patriota de Moura
UnB

Becker, Howard S. 2008 [1963]. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar. 232pp.

Propor uma teoria interacionista do desvio: é este o principal objetivo de Howard S. Becker no livro Outsiders. Quarenta e cinco anos depois de sua primeira edição em língua inglesa, surge a primeira edição brasileira da já clássica obra do sociólogo norte-americano, que insiste em traçar sua genealogia a Everett Hughes, Robert Park e William Thomas, entre outros grandes nomes da Escola de Chicago.

O livro é um marco nos estudos sobre desvio, efetuando importantes deslocamentos de foco: da ideia essencializada de "crime" para o termo desvio, que supõe uma relação social; do foco no indivíduo para o foco nas relações, que produzem regras e exigem seu cumprimento; da naturalização das regras para a produção social das mesmas e os processos de imposição de rótulos sobre os que são designados como desviantes.

Ao longo dos dez capítulos do livro, Becker nos leva a conhecer usuários de maconha, músicos de casas noturnas, "quadrados" e empreendedores morais, todos esses "tipos" sendo agentes em processos que produzem carreiras, estilos de vida e visões de mundo que não deixam de ser reais por serem socialmente construídos. O mundo social, ou melhor, os mundos sociais concebidos por Becker são compostos por pessoas que, agindo juntas, com diferentes graus de comprometimento, produzem realidades que também as definem. Assim, Becker cita a máxima de W. Thomas de que "Se os homens definem situações como reais, elas são reais em suas consequências" (:12), ao mesmo tempo em que invoca George Herbert Mead e Herbert Blumer ao insistir que as pessoas agem juntas (:183).

O primeiro capítulo, que mantém o título original Outsiders, começa por um exercício de relativização das regras sociais que definem situações e comportamentos como "certos" ou "errados". Segundo Becker, regras, desvios e rótulos são sempre construídos em processos políticos, nos quais alguns grupos conseguem impor seus pontos de vista como mais legítimos que outros. O desvio, diz o autor, não é inerente aos atos ou aos indivíduos que os praticam; ele é definido ao longo de processos de julgamento que envolvem disputas em torno de objetivos de grupos específicos. "Desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele" (:27). Como as sociedades complexas são sempre compostas por diversos grupos, imposições de regras e rotulações de atos e pessoas, elas envolvem também conflitos e divergências acerca de definições: "aquele que infringe a regra pode pensar que seus juízes são outsiders" (:15).

As sociedades, no entanto, têm grupos dominantes e grupos desviantes, assim como tipos diferentes de desvio. No segundo capítulo, Becker propõe um modelo sequencial para pensar o desvio. Após classificar tipos de comportamento desviante de acordo com as percepções e o grau de publicidade dos atos, o autor reflete a respeito da adesão de indivíduos a padrões de comportamento desviantes a partir de uma perspectiva sequencial, a qual envolve não somente atos isolados e eventuais acusações, mas aprendizados específicos. Existem carreiras desviantes, que se apresentam como alternativas para carreiras convencionais. "O comportamento normal das pessoas em nossa sociedade (e provavelmente em qualquer sociedade) pode ser visto como uma série de compromissos progressivamente crescentes, com normas e instituições convencionais" (:38).

Estabelecidas as bases teóricas de sua abordagem, o autor parte para o traçado de carreiras desviantes específicas, apreendidas a partir de trabalho de campo e entrevistas com duas categorias identificadas como desviantes: usuários de maconha e músicos de casas noturnas.

No primeiro caso, trata-se de demonstrar como um comportamento, comumente explicado como decorrente de traços psicológicos individuais, tem seus significados e suas motivações socialmente configurados, e o aprendizado de técnicas e interpretações construído ao longo de carreiras. Becker insiste em que a experiência física do uso da maconha é uma experiência ambígua que só se transforma em algo prazeroso através de sequências de aprendizados: "impulsos e desejos vagos são transformados em padrões definidos de ação por meio da interpretação social de uma experiência física em si mesmo ambígua" (:51). Chegar a usar a maconha por prazer envolve uma sequência de experiências que inclui: 1. o aprendizado da técnica de fumar; 2. a identificação dos efeitos e a atribuição desses efeitos ao uso da maconha; e 3. a redefinição das sensações como prazerosas.

Para se tornar um usuário estável de maconha, é necessário, no entanto, além de sentir prazer, escapar de uma série de pressões sociais. "Minha questão básica é: qual é a sequência de eventos e experiências pela qual uma pessoa se torna capaz de levar adiante o uso da maconha, apesar dos elaborados controles sociais que funcionam para evitar tal comportamento?" (:70) A resposta é: através da crescente participação em grupos de insiders, são desenvolvidos valores e táticas específicas de aquisição do produto e justificativas morais para as suas práticas. A carreira do usuário de maconha, portanto, progride do estágio de iniciante para o de usuário ocasional e, finalmente, para o de usuário regular, podendo haver sucessos e fracassos em cada um destes estágios, sempre na companhia de outros usuários.

Os músicos de casas noturnas também desenvolvem rotinas desviantes e se percebem como diferentes. "Embora suas atividades estejam formalmente dentro da lei, sua cultura e o modo de vida são suficientemente extravagantes e não-convencionais para que sejam rotulados de outsiders pelos membros mais convencionais da comunidade" (:89). Tendo sido ele mesmo um músico de casa noturna, Becker procura entender esta atividade como uma ocupação que, como outras ocupações estudadas por pesquisadores como Everett Hughes, desenvolve culturas ou subculturas próprias, aqui entendidas como "uma organização de entendimentos comuns aceitos por um grupo" (:90).

Assim, o autor nos apresenta um universo onde há diferenciações entre músicos de jazz e músicos comerciais, e relações ambivalentes entre os músicos e seus públicos "quadrados". Se, por um lado, há a valorização da originalidade e da liberdade do músico de jazz, por outro, uma carreira bem-sucedida envolve uma série de compromissos e a participação em redes de relações pessoais com outros músicos que compõem "panelinhas", nas quais o desempenho individual não deixa de ser um elemento importante. A participação em "panelinhas" de jazz ou em "panelinhas" comerciais é fonte de conflitos e, em meio a eles, os músicos desenvolvem suas carreiras. "As 'panelinhas' compostas por jazzmen não oferecem nada a seus integrantes além do prestígio de manterem a integridade artística; as 'panelas' comerciais fornecem segurança, mobilidade, renda e prestígio social" (:119). As escolhas de adesão são feitas sempre em relação a outras instâncias sociais, como cônjuges, família de origem e o próprio público ouvinte.

Após traçar as carreiras de músicos e usuários de maconha, com ênfase no desenvolvimento de práticas, valores e identidades, o autor volta a sua atenção, no capítulo sete, para os processos de imposição de regras. As regras não funcionam automaticamente, elas precisam ser impostas, e a imposição é sempre um empreendimento que depende de interesses e iniciativas de atores no sentido de tornar pública a infração. Interessado nos empreendedores e nas circunstâncias em que regras são feitas e impostas, o autor narra o processo que culminou com a lei de tributação da maconha nos EUA. Valores dominantes, como o autocontrole, a aversão ao êxtase e até mesmo o humanitarismo, foram traduzidos em regras específicas, contando com a iniciativa empreendedora da Agência Federal de Narcóticos. "A iniciativa da agência produzira uma nova regra, cuja imposição subsequente ajudaria a criar uma nova classe de outsiders – os usuários de maconha" (:151).

As pessoas que apresentam iniciativas no sentido de criar novas classes de outsiders são denominadas empreendedores morais. São esses os "reformadores cruzados", por exemplo, que acreditam na sacralidade de suas missões, apesar de muitas vezes contarem com a concordância daqueles que pretendem "salvar". Mas os cruzados recorrem a especialistas, como psiquiatras ou advogados, que têm seus próprios interesses em jogo. Uma cruzada bem-sucedida tem como possíveis consequências não somente a criação de um novo conjunto de regras, mas a criação de novas agências, que institucionalizam o empreendimento e, finalmente, podem agir por meio de uma força policial.

Os impositores profissionais, por sua vez, estão menos interessados na justificativa da regra do que na manutenção de sua profissão, o que gera um ciclo paradoxal: ao mesmo tempo em que devem mostrar a sua eficácia, o fim do problema significaria o fim de sua razão de existência. Assim, profissionais escolhem em quais casos deverão agir, exercendo suas próprias escolhas. Conclui então o autor: "Cumpre ver o desvio, e os outsiders que personificam a concepção abstrata, como uma consequência de um processo de interação entre pessoas, algumas das quais, a serviço de seus próprios interesses, fazem e impõem regras que apanham outras – que, a serviço de seus próprios interesses, cometeram atos rotulados de desviantes" (:168).

Becker termina o texto original com um apelo à pesquisa de campo e ao estudo aprofundado dos grupos, sejam eles os desviantes ou os empreendedores morais. Argumentando que os estudos sobre desvio apresentam muito mais teorias do que fatos, ele chama a atenção para a necessidade de se conhecerem as práticas desviantes e os pontos de vista de seus praticantes. Quanto ao comportamento desviante em si, "Cumpre vê-lo como um tipo de comportamento que alguns reprovam e outros valorizam, estudando os processos pelos quais cada uma das perspectivas é construída e conservada. Talvez a melhor garantia contra qualquer dos dois extremos seja o contato estreito com as pessoas que estudamos" (:178).

No décimo capítulo do livro, escrito em 1971, Becker reitera a necessidade de relativizar os julgamentos morais, e reforça a perspectiva de que estudar o empreendedorismo moral é também uma maneira de estudar as formas de poder na sociedade. Criticando a denominação de sua proposta de "teoria da rotulação", recoloca sua perspectiva como "uma teoria interacionista do desvio" (:182) e insiste em que os julgamentos éticos não devam ser protegidos de testes empíricos.

Revista Mana

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