quinta-feira, 22 de abril de 2010

O longo amanhecer — ensaios sobre a formação do Brasil


FURTADO, Celso. O longo amanhecer — ensaios sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

AUTONOMIA NACIONAL E SUBDESENVOLVIMENTO: VELHAS QUESTÕES?

João Henrique dos Santos
Universidade Estadual Paulista — Assis


A obra de Celso Furtado é representativa da tradição ensaística de explicação da realidade brasileira e com certeza seu nome figura ao lado de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Antônio Cândido, entre outros; autores que procuraram pensar a gênese e o desenvolvimento da sociabilidade brasileira sob uma perspectiva sempre histórica e inovadora. De modo que não se deve furtar ao julgamento que ele mesmo faz de seu próprio percurso intelectual — muito ao gosto de Antônio Cândido — já que o autor pode dar balanço de sua vida sem cair em autocomplacência. A frase seguinte resume melhor a sua trajetória: "Pensar o Brasil foi o desafio que sempre guiou minha reflexão" (p. 69).

O longo amanhecer constitui-se num conjunto de ensaios que pretendem responder qual a margem de autonomia que resta a nós brasileiros na condução do país. A pergunta parte da constatação de que a contínua redução da autonomia nacional torna cada vez mais difícil a superação do subdesenvolvimento. Esse tema, pensado ao longo de suas obras desde 1948, por ocasião de seu doutoramento na Universidade de Paris-Sorbonne, momento em que passa a estudar o problema do planejamento nas sociedades capitalistas como forma de superação do subdesenvolvimento, é a questão que o acompanhará ao longo de sua vida, principalmente no período em que esteve na CEPAL e na SUDENE. A importância do planejamento justifica-se, uma vez que o autor acredita que o mercado não irá substituir o Estado, sobretudo nas questões sociais. De resto, a lógica do mercado constitui-se na maximização das vantagens e "perceber que o mais importante é o social foi a descoberta mais relevante de minha vida" (p. 93). É exatamente essa percepção que Furtado faz questão de lembrar que inexiste no atual governo, à medida em que se relega as soluções dos problemas sociais para o mão do mercado (leia-se: interesses transnacionais, nas palavras do próprio autor).

Nos ensaios A busca de um novo horizonte utópico e Os caminhos da reconstrução, Furtado afirma que a superação do subdesenvolvimento brasileiro passa pelo dinamismo do mercado interno. Essa opção, que não é a dos nossos atuais governantes, comprova-se pelo fato deles terem adotado uma política econômica voltada para as empresas transnacionais. A política econômica implantada pelo governo FHC baseou-se nas aplicações em fundos de capitalização de curto prazo, aproveitando-se do aumento da liquidez internacional, o que provocou maior oferta de bens de consumo internamente. Todavia, a balança comercial de positiva passou para negativa. Privilegiou-se a contenção da inflação pela alta dos juros, o que acabou gerando a redução de investimentos nos setores produtivos. Optou-se pelo endividamento externo como estratégia de combate à inflação, mas o receituário passado pelo FMI previa uma política fiscal compensatória que até hoje não vimos realizada. Vimos sim que a nova política de estabilização da inflação acabou produzindo dividendos políticos, como a reeleição de Fernando Henrique Cardoso.

Furtado assinala que a política de endividamento externo revelou-se catastrófica, o que exigiu a "ajuda" financeira dos países ricos para que o Brasil não recorresse a uma possível moratória da dívida externa, não porque politicamente esta fosse uma decisão a ser tomada, mas simplesmente porque não haveriam fundos para pagá-la. Os recursos postos à disposição acabaram agravando ainda mais o processo de endividamento externo, e adotou-se a crescente dolarização da economia, o que para o autor significa cada vez mais "compartilhar com o sistema financeiro internacional o governo do país" (p. 30).

O que fazer diante desse quadro? Furtado aponta algumas saídas, deixando claro que a solução dos problemas é de natureza política. Em primeiro lugar, deve-se reverter o processo de concentração de propriedade privada e renda nacional que estão na base dos problemas sociais brasileiros; em segundo lugar, promover a superação dos atrasos nos investimentos de desenvolvimento humano, isto é, em educação, saúde e bem-estar-social do conjunto da população brasileira; e, finalmente, a inserção do país no processo de globalização deverá se dar no setor tecnológico voltado para o desenvolvimento interno. São mudanças estruturais que somente poderão ser concretizadas pelo Estado nacional.

Para o autor, esses objetivos podem ser contrários à "lógica do mercado", onde a afirmação de que um país deve se desenvolver por meio de dinamismos internos soa estranho; o que importa, contudo, é que os objetivos sejam coerentes políticamente. Incoerente, na sua visão, é que "a vitória esmagadora das idéias do FMI levou à situação que presenciamos sem corar, que é o planejamento de uma recessão de elevado custo social para curar-se de uma inflação, agravando a concentração de renda" (p. 41). No período de 1995-1998, o país sofreu um sobreendividamento de algo próximo a 100 bilhões de dólares, sem que tenha ocorrido um mínimo de crescimento econômico. Justamente neste mesmo período, com a privatização das estatais (Furtado prefere falar em internacionalização), os grupos estrangeiros passaram a assumir o controle de parte do capital fixo reprodutivo do país.

No ensaio Nova concepção do federalismo, a formação da nacionalidade brasileira, lembra o autor, deu-se em consonância com um movimento pendular entre centralismo e federalismo. O Brasil é um país de fronteiras internas móveis, logo a noção de região baseia-se em um espaço dinâmico específico, o que faz com que identidade nacional seja marcada pelas raízes regionais. As desigualdades demográficas, territoriais e econômicas podem ser superadas com a criação de um espaço de poder regional que preserve os estados atuais, mas que organize as atividades produtivas regionalmente, porque federalismo "é o conceito mais amplo que tem sido utilizado para expressar a idéia de que a organização política deve basear-se na solidariedade e na cooperação, e não na compulsão" (p. 46).

Em Formação cultural do Brasil, Furtado busca a gênese do desenvolvimento cultural brasileiro — desenvolvimento que, segundo afirma, esteve associado a duas instituições principais nos três primeiros séculos: a Coroa e a Igreja. A questão presente pode ser assim formulada: como essas instituições irão interferir (positiva ou negativamente) no processo de criação cultural?

Mensagem aos jovens economistas é o ensaio em que Celso Furtado faz menção a sua trajetória intelectual e a sua posição à frente de entidades e orgãos administrativos. Afirma que a História foi o seu primeiro campo de estudo, pensou até em tornar-se historiador e seu livro mais importante,"Formação Econômica do Brasil, revela essa vocação inicial" (p. 71).

Encerram o livro dois pequenos ensaios sobre o contexto em que se deu a construção da obra de Machado de Assis e a política econômica elaborada por Rui Barbosa no início da República.

O longo amanhecer reúne o conjunto de problemas clássicos que fazem parte da reflexão — hoje clássica — de Celso Furtado e é, sobretudo, uma crítica às atuais condições sociais do país, porque em "nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser" (p. 26).


João Henrique dos Santos é pós-graduando em História na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis, bolsista do CNPq.

FURTADO, Celso. O longo amanhecer — ensaios sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

AUTONOMIA NACIONAL E SUBDESENVOLVIMENTO: VELHAS QUESTÕES?



João Henrique dos Santos
Universidade Estadual Paulista — Assis





A obra de Celso Furtado é representativa da tradição ensaística de explicação da realidade brasileira e com certeza seu nome figura ao lado de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Antônio Cândido, entre outros; autores que procuraram pensar a gênese e o desenvolvimento da sociabilidade brasileira sob uma perspectiva sempre histórica e inovadora. De modo que não se deve furtar ao julgamento que ele mesmo faz de seu próprio percurso intelectual — muito ao gosto de Antônio Cândido — já que o autor pode dar balanço de sua vida sem cair em autocomplacência. A frase seguinte resume melhor a sua trajetória: "Pensar o Brasil foi o desafio que sempre guiou minha reflexão" (p. 69).

O longo amanhecer constitui-se num conjunto de ensaios que pretendem responder qual a margem de autonomia que resta a nós brasileiros na condução do país. A pergunta parte da constatação de que a contínua redução da autonomia nacional torna cada vez mais difícil a superação do subdesenvolvimento. Esse tema, pensado ao longo de suas obras desde 1948, por ocasião de seu doutoramento na Universidade de Paris-Sorbonne, momento em que passa a estudar o problema do planejamento nas sociedades capitalistas como forma de superação do subdesenvolvimento, é a questão que o acompanhará ao longo de sua vida, principalmente no período em que esteve na CEPAL e na SUDENE. A importância do planejamento justifica-se, uma vez que o autor acredita que o mercado não irá substituir o Estado, sobretudo nas questões sociais. De resto, a lógica do mercado constitui-se na maximização das vantagens e "perceber que o mais importante é o social foi a descoberta mais relevante de minha vida" (p. 93). É exatamente essa percepção que Furtado faz questão de lembrar que inexiste no atual governo, à medida em que se relega as soluções dos problemas sociais para o mão do mercado (leia-se: interesses transnacionais, nas palavras do próprio autor).

Nos ensaios A busca de um novo horizonte utópico e Os caminhos da reconstrução, Furtado afirma que a superação do subdesenvolvimento brasileiro passa pelo dinamismo do mercado interno. Essa opção, que não é a dos nossos atuais governantes, comprova-se pelo fato deles terem adotado uma política econômica voltada para as empresas transnacionais. A política econômica implantada pelo governo FHC baseou-se nas aplicações em fundos de capitalização de curto prazo, aproveitando-se do aumento da liquidez internacional, o que provocou maior oferta de bens de consumo internamente. Todavia, a balança comercial de positiva passou para negativa. Privilegiou-se a contenção da inflação pela alta dos juros, o que acabou gerando a redução de investimentos nos setores produtivos. Optou-se pelo endividamento externo como estratégia de combate à inflação, mas o receituário passado pelo FMI previa uma política fiscal compensatória que até hoje não vimos realizada. Vimos sim que a nova política de estabilização da inflação acabou produzindo dividendos políticos, como a reeleição de Fernando Henrique Cardoso.

Furtado assinala que a política de endividamento externo revelou-se catastrófica, o que exigiu a "ajuda" financeira dos países ricos para que o Brasil não recorresse a uma possível moratória da dívida externa, não porque politicamente esta fosse uma decisão a ser tomada, mas simplesmente porque não haveriam fundos para pagá-la. Os recursos postos à disposição acabaram agravando ainda mais o processo de endividamento externo, e adotou-se a crescente dolarização da economia, o que para o autor significa cada vez mais "compartilhar com o sistema financeiro internacional o governo do país" (p. 30).

O que fazer diante desse quadro? Furtado aponta algumas saídas, deixando claro que a solução dos problemas é de natureza política. Em primeiro lugar, deve-se reverter o processo de concentração de propriedade privada e renda nacional que estão na base dos problemas sociais brasileiros; em segundo lugar, promover a superação dos atrasos nos investimentos de desenvolvimento humano, isto é, em educação, saúde e bem-estar-social do conjunto da população brasileira; e, finalmente, a inserção do país no processo de globalização deverá se dar no setor tecnológico voltado para o desenvolvimento interno. São mudanças estruturais que somente poderão ser concretizadas pelo Estado nacional.

Para o autor, esses objetivos podem ser contrários à "lógica do mercado", onde a afirmação de que um país deve se desenvolver por meio de dinamismos internos soa estranho; o que importa, contudo, é que os objetivos sejam coerentes políticamente. Incoerente, na sua visão, é que "a vitória esmagadora das idéias do FMI levou à situação que presenciamos sem corar, que é o planejamento de uma recessão de elevado custo social para curar-se de uma inflação, agravando a concentração de renda" (p. 41). No período de 1995-1998, o país sofreu um sobreendividamento de algo próximo a 100 bilhões de dólares, sem que tenha ocorrido um mínimo de crescimento econômico. Justamente neste mesmo período, com a privatização das estatais (Furtado prefere falar em internacionalização), os grupos estrangeiros passaram a assumir o controle de parte do capital fixo reprodutivo do país.

No ensaio Nova concepção do federalismo, a formação da nacionalidade brasileira, lembra o autor, deu-se em consonância com um movimento pendular entre centralismo e federalismo. O Brasil é um país de fronteiras internas móveis, logo a noção de região baseia-se em um espaço dinâmico específico, o que faz com que identidade nacional seja marcada pelas raízes regionais. As desigualdades demográficas, territoriais e econômicas podem ser superadas com a criação de um espaço de poder regional que preserve os estados atuais, mas que organize as atividades produtivas regionalmente, porque federalismo "é o conceito mais amplo que tem sido utilizado para expressar a idéia de que a organização política deve basear-se na solidariedade e na cooperação, e não na compulsão" (p. 46).

Em Formação cultural do Brasil, Furtado busca a gênese do desenvolvimento cultural brasileiro — desenvolvimento que, segundo afirma, esteve associado a duas instituições principais nos três primeiros séculos: a Coroa e a Igreja. A questão presente pode ser assim formulada: como essas instituições irão interferir (positiva ou negativamente) no processo de criação cultural?

Mensagem aos jovens economistas é o ensaio em que Celso Furtado faz menção a sua trajetória intelectual e a sua posição à frente de entidades e orgãos administrativos. Afirma que a História foi o seu primeiro campo de estudo, pensou até em tornar-se historiador e seu livro mais importante,"Formação Econômica do Brasil, revela essa vocação inicial" (p. 71).

Encerram o livro dois pequenos ensaios sobre o contexto em que se deu a construção da obra de Machado de Assis e a política econômica elaborada por Rui Barbosa no início da República.

O longo amanhecer reúne o conjunto de problemas clássicos que fazem parte da reflexão — hoje clássica — de Celso Furtado e é, sobretudo, uma crítica às atuais condições sociais do país, porque em "nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser" (p. 26).

João Henrique dos Santos é pós-graduando em História na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis, bolsista do CNPq.

Revista de Sociologia e Política

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