quinta-feira, 22 de abril de 2010

Natureza, Ciência e Estética em Alexander von Humboldt


Eloi Martins Senhoras

Doutorando pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Campinas/SP - Brasil, eloi@ige.unicamp.br

RICOTTA, Lúcia. Natureza, Ciência e Estética em Alexander von Humboldt. Rio de Janeiro: Editora Muad: 2003, 213 p.

O livro "Natureza, Ciência e Estética em Alexander von Humboldt" contextualiza a obra de Humboldt em um momento histórico em que a maioria das ciências naturais ainda não haviam se autonomizado e por isso suas contribuições residem justamente em uma concepção de ciência holística que está associada à experiência estética e que busca em sua coerência interna se libertar de uma linguagem codificada e acessível apenas para especialistas.

A unidade entre orgânico e inorgânico na visão de um Cosmos Universal e o papel da arte e da ciência ao sintetizarem o Absoluto na obra de Alexander von Humboldt tornaram-no em um filósofo natural que modernamente é reconhecido nos campos da geografia, biologia, botânica, além das contribuições para a história da América Espanhola.

Humboldt busca associar o sentido total da realidade por meio de uma apreensão reflexiva que é fruto da conjugação investigativa entre a experiência científica com conteúdo genérico e quantitativo e a experiência estética do singular e qualitativo.

O surgimento desta concepção holística de absorção e reapropriação da realidade é resgatada por Lúcia Ricotta em seu livro a partir de uma arqueologia do contexto de origem e diálogo que Humboldt estabeleceu no período romântico junto às influências de Goethe e Schelling que absorvem a sensibilidade clássica greco-romano.

Em um primeiro plano, o desafio humboldtiano de uma ciência romântica é descrita a partir de uma síntese de hibridação do projeto humanístico de Goethe quando absorve a concepção de totalidade da experiência do prazer e do conhecimento transfigurada no movimento de saída e retorno a si. Trata-se de uma ambiciosa missão conduzida pela razão e pela imaginação no sentido de tornar o mundo passível de conhecimento.

Em um segundo plano é demonstrado que a influência de Schelling acontece em função de um sistema ético de pesquisa e de uma noção de ciência cuja finalidade e representação se apóiam na capacidade reflexiva de produção e especulação da linguagem cujo papel é necessário para dar flexibilidade e vivacidade ao projeto científico-artístico-filosófico de Humboldt que quer penetrar na totalidade dinâmica da realidade.

A proposta humboldtiana transcendente do conhecimento científico marca sua importância para a apreensão da crise ambiental atual, pois ela parte de um esforço empírico que rejeita a linearidade, o determinismo, a neutralidade e a autonomia da ciência em razão da dualidade que sintetiza sua obra enquanto estudo científico realizado segundo método empírico e experiência estética de qualificação da singularidade da realidade.

A centralidade epistemológica da obra humboldtiana reside em um projeto de ciência que converge os campos da especulação filosófica e da comunicação estética, o que demonstra que Schelling foi ainda mais importante para Humboldt que Goethe por legar uma epistemologia científica de razão prática que é fundida pela experiência estética.

Segundo Ricotta, nas duas obras sínteses de Humboldt, Quadros da Natureza e o Cosmo, há a construção de um olhar científico sobre o fenômeno natural que em última instância converte determinada realidade físico-espacial em linguagem estética, paisagística, onde o romantismo alemão representa na formação dos conceitos e da metodologia científica reflexiva de Humboldt um caminho diverso do empreendido pelo racionalismo na ciência da natureza.

O olhar empírico do conhecimento científico não é menos importante que a experiência estética, mas antes ambos constituem um continuum em que as finalidades científica e literária desempenham uma comunicação resultante da intima comunhão do homem com a natureza.

Embora arte e ciência sejam campos distintos da ação humana, não há como separá-las, pois ambas têm valores de projetos humanos em Humboldt que, antes de mais nada, é um cientista preocupado com a forma de tratamento da linguagem e seu efeito.

Esta apreensão reflexiva faz convergir a totalidade entre o objeto e o sujeito, pois a ciência e a poesia juntas são capazes de proporcionar uma reinterpretação da comunhão intima do homem com a natureza à medida que os processos de pensar da ciência e intuir da estética presentes na linguagem do pensamento filosófico-natural buscam uma interminável fusão entre o espírito e a natureza.

Ricotta descreve a formação de uma imagem mental advinda da apreciação reflexiva intitulada de cosmovisão por Humbold, que é oriunda de uma substituição do estado de desunião entre o Céu e a Terra por uma direção paralela que especializa o olhar primeiro para cima e depois para baixo, e portanto, indicando uma inversão da perspectiva egocêntrica do homem ao identificar o absoluto enquanto interação genérica em que o espírito humano está imerso junto aos fenômenos físicos no tempo e no espaço.

Não existe portanto uma descrição puramente científica de caráter empírico ou uma experiência puramente estética de caráter sensorial e intuitivo na perspectiva analítica de Humboldt, mas tão somente uma impressão total que é exposta pela linguagem ao exercer o papel de compensação ou união entre as relações da ciência e da imaginação.

O esforço suis generis de Humboldt, revelado por Ricotta, reside na construção de uma ciência por meio da descrição de dados coletados que é compensada por meio de imagens e símbolos de uma experiência estética, ou em outras palavras, há a construção de uma ciência que depende e valoriza a imaginação e o caráter intuitivo para comunicar plenamente os fenômenos da natureza.

Segunda a autora, o tratamento estético dos dados puramente físicos que Humboldt inclui em suas obras recupera a contextualização maior dos fenômenos, o que torna o esforço da linguagem literária em uma compensação às limitações da ciência ao trazer uma percepção intuitiva da natureza.

Enquanto a ciência racionaliza a natureza e a transforma em dados quantitativos a partir de um processo de fracionamento da totalidade real, o tratamento estético busca recuperar os aspectos sensíveis e qualitativos da totalidade.

Na gênese da Geografia Moderna em Humboldt teve relevância, portanto, a apreensão da ciência a partir da recuperação de suas qualificações metafísicas demonstrando que as descrições e esboços pitorescos não são simples instrumentos de pesquisa científica, mas antes representam uma metodologia peculiar de filosofia da natureza que têm fortes influencias do movimento romântico alemão.

A despeito da rica contribuição sobre a obra humboldtina trazida por Lúcia Ricotta, a autora ao longo de seu rico livro em detalhes, pelas próprias influências de sua formação literária, acaba por ser induzida pelas próprias convicções românticas contextualizadas, o que a leva a centralizar as influências de Humboldt em Goethe e Schelling vis-à-vis a subestimação da importância da filosofia de Kant, embora não restem dúvidas sobre a centralidade do tripé Kant-Goethe-Schelling na obra humboldtiana, em especial na gênese da Geografia Moderna.

A obra apresentada sobre a concepção de Natureza, Ciência e Estética no pensamento de Alexander von Humboldt é de grande utilidade contemporânea, pois em um momento de surgimento de um mundo moderno sob as luzes da razão este intelectual não acreditava em uma ciência autônoma, auto-regulada ou contida em si, pois segundo sua compreensão, o processo cognitivo da humanidade só avançaria quando o intelecto e sensibilidade atuassem indissoluvelmente unidos para apreender a totalidade da realidade.

A pergunta que se coloca após alguns séculos, baseados na crença determinista e autônoma da ciência e da tecnologia enquanto engendradora da modernidade, é até que ponto os ideais da modernidade iluminados pela razão aconteceram?

Se transformações aconteceram, de fato, os resultados dos ideais da modernidade têm criado justamente um processo contínuo inverso às propostas iniciais de progresso humano, dadas as condições atuais de aumento das desigualdades, da exploração e a irracionalidade, que culminam em uma crise social e ambiental mundial.

Esse cenário desastroso da humanidade se esboça pela crença determinista e autônoma da ciência e da tecnologia, que ao invés de ampliarem as possibilidades humanas, alienam os indivíduos dentro um quadro instrumental, onde os valores críticos estão ausentes.

Se hoje existem movimentos autoidentificados com uma visão pós-modernista, que rejeitam a linearidade, o determinismo, a neutralidade e a autonomia da ciência e da tecnologia, cabe a eles resgatarem o valor da arte, do elemento estético, a possibilidade de uma realização plena da humanidade pelas vias do gosto, pelo papel da forma, pela dinâmica própria dos princípios reflexivos, tais como exercidos na vida intelectual de Alexander Humboldt.

Revista Sociedade e Natureza

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