quinta-feira, 1 de abril de 2010

Imigração ou os paradoxos da alteridade


Abdelmalek Sayad. Imigração ou os paradoxos da alteridade.São Paulo, Edusp,1998, 299 pp.

Eva Alterman Blay
Professora Titular do Departamento de Sociologia — USP

Na última década temos visto surgir no Brasil algumas publicações sociológicas sobre a questão da imigração. País cuja população é constituída por levas imigratórias, o tema foi pouco estudado. Os trabalhos mais antigos, do começo do XIX, são ensaios que procuram influenciar a política governamental para incorporação de trabalhadores livres. No fim do século, análises demográficas e geográficas procuravam avaliar o perfil populacional e a distribuição das atividades econômicas de brasileiros e estrangeiros. Datam dessa época, fim do século XIX, estudos médicos e ensaios de cunho racial/racista que preconizavam a incorporação de imigrantes europeus para o branqueamento da população e suposta "melhoria da raça".

A imigração em massa constituiu-se em objeto sociológico e antropológico, mais de cinqüenta anos após o início do processo, com estudos sobre os italianos e libaneses. Seguiram-se estudos sobre japoneses e são raros ainda hoje aqueles sobre poloneses, americanos, gregos, franceses e outros grupos étnicos. Na década de 60 apareceram poucos estudos sistemáticos sobre os judeus.

Abdelmalek Sayad tem estudado a imigração argelina para a França. É muito oportuna a tradução da Edusp, em edição muito bem cuidada, da obra de Sayad na qual estão reunidos seus trabalhos de 1975 a 1988. Trata-se de um dos raros trabalhos que traz uma reflexão teórica sobre o processo de imigração, que Sayad define como um "processo total", isto é, que deve ser visto em face das condições que levam da emigração até as formas de inserção do imigrante no país para onde vai.

Os argelinos, como a maioria dos imigrantes, não têm condições de sobrevivência em seus países de origem. Por isso constituem a categoria de emigrantes (de lá) e se tornam imigrantes ( aqui).

O imigrante vem servir como força de trabalho e passa a constituir um "problema" para o país que o utiliza. A necessidade do mercado de trabalho é circunstancial, o "imigrante" é considerado um ser "provisório", mesmo que esta provisoriedade dure mais de trinta anos. Ele será sempre um estrangeiro, pelo menos na França colonizadora. A idéia do retorno está sempre presente nesta população argelina que mantém laços duráveis com a família, os vizinhos, a comunidade originária. A idéia de voltar está sempre presente. O elo não se rompe e as viagens de férias para a Argélia são periódicas. Mas, como no caso tão conhecido dos italianos e japoneses, ao voltar o emigrante se torna um imigrante em sua terra de origem.

Os argelinos reconstruíram, na França, uma comunidade: moram perto, visitam-se e, mais que isso, procuram exercer controle social uns sobre os outros. No grupo familiar o controle tenta ser rígido e se defronta com as novas formas de vida, trabalho e estudo. O pai tenta manter a mesma posição que tinha com relação aos filhos, controlando casamentos, estudo. As tensões são inevitáveis e as mudanças progressivas são causa de enorme sofrimento. Essas explicações surgem a partir dos relatos, histórias de vida, e outros dados coletados. É o caso, por exemplo, do "filho de uma viúva", o mais pobre dos pobres, porque criado apenas por uma mulher. Seu depoimento traduz a desesperança de não poder emigrar, única possibilidade de um futuro melhor. O universo é estreito. Só existe uma porta, a França, odiada-amada. E, no entanto, ele sabe que na França continuará tão pobre quanto na Argélia. Daí porque a pobreza na Argélia ex-colônia se contrapõe à utopia da França-rica, e faz da emigração a única saída

O método de análise de Sayad vai se explicitando ao longo das falas dos e das imigrantes ou daqueles que ficaram na Argélia. Através da história de uma família que imigrou para Paris, Sayad nos leva a entender as relações de poder do pai sobre filhos e filhas. Morar em Paris, na verdade é viver encerrado num canto da periferia, onde há mais argelinos da aldeia de origem do que nela própria. A vizinhança argelina amplia o controle social procurando preservar a religião e os comportamentos muçulmanos.

Considerando-se a recente voga de estudos sobre imigração e o uso (nem sempre correto) de histórias de vida, vale a pena examinar duas questões que Sayad coloca: 1. Qual o estatuto do estudo do imigrante para a ciência? 2. O que representa o uso das "biografias reconstruídas" necessárias para o estudo sociológico dos imigrantes?

Para respondê-las Sayad é impiedoso. Afirma que escolher o imigrante como "objeto" de estudo é escolher um "objeto social e politicamente dominado", o que pode conduzir à produção de uma ciência "pobre", "pequena". Portanto cabe ao cientista social evitar esta falácia que pode ocorrer sempre que estuda os outros grupos dominados.

Sayad desmistifica o uso das biografias, das histórias de vida, método que ele considera importante mas que não se deve tomar de forma incauta. Mostra que histórias de vida, biografias constituem uma fonte — um artifício — para superar a indigência resultante da falta de arquivos, documentos, dados sociais que permitam comparações. Além disso, não basta ao analista simplesmente explicar o significado de uma ou outra palavra mas situar a biografia no conjunto das condições históricas e sociais das quais ela emerge.

Um dos capítulos mais interessantes é o denominado "Da mensagem oral à mensagem gravada". Em face do uso do gravador, atualmente, o leitor logo imagina que no capítulo será tratado o uso desta técnica pelo pesquisador. O autor vai muito além, revela todo o processo de comunicação que se dá entre a família e o imigrante ou vice-versa. São relatadas e analisadas todas as sutilezas subjacentes ao envio de uma mensagem oral. Pois pessoas analfabetas mandam dizer o que desejam através de um mensageiro que vai para Paris. A escolha não é aleatória, depende de uma relação de confiança com aquele que vai ser o portador de algo tão íntimo e pessoal, como dizer a um filho que "estão todos bem".

A mensagem também pode ser escrita e é necessário alguém que a escreva. Os meandros da relação entre a que quer mandar uma mensagem e a pessoa que escreve é complexa. Uma carta não é apenas uma mensagem escrita, sobretudo se for uma carta de mulher. Um homem deve acompanhá-la para o encontro com aquele que vai escrever a carta. E a própria carta não pode ir desacompanhada. É necessário que junto vá também a carta de um homem, daquele que a acompanhou!

Finalmente Sayad revela como ocorre a comunicação entre aquele que ficou e o que partiu através de mensagem gravada. É comovente a descrição da mãe que coloca um gravador sobre o colo, liga-o e fala, grita, xinga, acalma-se e continua a falar para se comunicar com o filho ausente... através de uma fita cassete! O gravador é um instrumento de libertação na comunicação.

O livro é revelador de todo o trabalho criativo do autor. Ele não cita bibliografia, provavelmente porque não encontrou muito em que se apoiar na literatura sociológica.

E talvez pela delicadeza com que trata seus emigrantes, ele não aprofunda o rancor do colonizado para com o colonizador, relação esta de subordinação e exclusão para com o imigrante que vive na França, há décadas, mesmo que lá tenha nascido.

Revista de Antropologia

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