quinta-feira, 1 de abril de 2010

A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luis XIV


Peter Burke. A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luis XIV. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994, 254 pp.

Lilia K. Moritz Schwarcz
Professora do Departamento de Antropologia — USP

Dizia Montesquieu que "o esplendor que envolve o rei é parte capital de sua própria pujança". Mais do que um elogio, a consideração sintetiza particularidades da monarquia, ou mesmo, a dimensão simbólica presente em qualquer tipo de poder público e político. Com efeito, se é só a realeza que introduz o ritual em meio à sua lógica formal e no corpo da lei, pode-se dizer, porém, que não há sistema político que abra mão do aparato cênico, que se conforma tal qual um teatro; uma grande representação.

Seguindo essas pistas, Marc Bloch, em ensaio pioneiro sobre as mentalidades, datado de 1924, analisava o fenômeno do toque real — o caráter maravilhoso dos reis taumaturgos —, demonstrando como se devia atentar antes para a expectativa coletiva do milagre, do que para o milagre em si.

Norbert Elias, por outro lado, acentuou a importância da etiqueta no interior do Antigo Regime, encontrando uma lógica que nada tinha a ver com o mero adereço, ou com a idéia da existência de vogas aristocráticas luxuosas e sem sentido. Na verdade, não foram poucos os autores que, partindo de eixos e perspectivas diversas, destacaram a relevância do ritual na efetivação do poder, no caso monárquico. Autores como Starobinski, com a análise dos símbolos da realeza, Kantorovicz, com a demonstração do corpo duplo do rei, e ainda C. Geertz, que em Negara demonstrou como em Bali não existiam cisões entre realidade e representação, revelaram as potencialidades do tema e os vínculos entre lógica racional e lógica simbólica.

Na verdade, essas e outras obras têm destacado, a partir de ângulos diversos, como as vestes, os objetos, a ostentação e os rituais próprios da monarquia são parte essencial desse regime, constituem sua representação pública e, no limite, garantem sua eficácia. Como diz o dito popular "rei que é rei não perde a realeza" e se a perde — digamos assim — é cada vez menos rei.

É dessa figura pública, conscientemente construída, que trata o livro A fabricação do rei, de Peter Burke. Seu objeto formal é a famosa personagem de Luis XIV, o Rei-Sol, que reinou durante 72 anos e se transformou quase em um emblema da monarquia absoluta européia, tão marcada pelo luxo e por demonstrações de riqueza. A esse soberano atribui-se a "domesticação da nobreza" a partir da invenção, a um só tempo, da propaganda, da etiqueta e da corte. Claro que todas essas realidades existiam antes de Luis XIV, mas é com esse rei que mudam de lugar e de patamar. Os costumes são regulados, a vida fica, para esse estamento, mais pacífica e prazerosa tendo a corte como centro.

Mas Burke faz mais do que só retomar essas teses, já muito tratadas pela historiografia, sobretudo, européia. A novidade está em integrar todos esses elementos e mostrar como os monarcas foram os inventores do "marketing político" e que nesse sentido fizeram escola. No centro de sua análise está a noção de estratégia, na qual a propaganda surge como meio de assegurar a submissão ou o assentimento a um poder. Com esse monarca a glória, a vitória , o prestígio e a grandeza transformam-se em imagens suficientemente fortes para garantir a estabilidade do reino e imaginar sua permanência futura. É por isso mesmo que Burke revela-se mais preocupado com a interpretação do que com o acontecimento, procura o "mito" que envolve o rei e não tanto sua "realidade", privilegia a imagem em detrimento do homem. O resultado é um Luis XIV envolto por biógrafos, artistas, artesãos, alfaiates, escultores, cientistas, poetas, escritores e historiadores; todos unidos em torno de um só propósito: fazer do rei um exemplo, um símbolo público da glória; uma representação fiel de Deus na terra.

Elaborada tal qual um grande teatro, um teatro do Estado, a atuação do rei se transforma em performance; os seus trajes viram fantasia. Na verdade, esculpida de maneira cuidadosa, a figura do rei corresponde aos quesitos estéticos necessários à construção da "coisa pública". Saltos altos para garantir um olhar acima dos demais, perucas logo ao levantar, vestes magníficas mesmo nos locais da intimidade; enfim, trata-se de projetar a imagem de um homem público, caracterizado pela ausência de espaços privados de convivência. Tal qual um evento multimídia, o rei estará presente em todos os lugares, será cantado em verso e prosa, retratado nos afrescos e alegorias, recriado como um Deus nas estátuas e tapeçarias.

Senhor de um ritual cujo controle é por princípio impecável, o monarca transforma seu exercício diário numa grande dramatização, equilibrando-se no poder por meio da concessão alargada e programada de títulos, medalhas e privilégios. Dádivas que carregam a imagem do líder, esses rituais de consagração da monarquia acabam ajudando a cultuar e estender a própria personalidade do rei, que dessa forma paira muito acima de seus súditos.

Exemplo radical do exercício e da manipulação simbólica do poder, a realeza evidencia, com sua etiqueta, a importância do ritual na construção da imagem pública. A monarquia é, nesse sentido, um bom pretexto para a discussão dos vínculos entre política e manipulação do imaginário simbólico, ou mesmo para a verificação de como política se faz com a lógica da "razão prática", mas também, com a força de persuasão da "razão simbólica". Afinal, foi Pascal quem concluiu que "as cordas que atribuem o respeito a este ou àquele em particular, são as cordas da imaginação". Prática de alguma forma datada, o ritual suntuoso da monarquia deixa ainda mais evidente como a propaganda e a política mantiveram sempre relações de profunda e estreita afinidade. Mas nada como terminar com uma boa provocação. Resta refletir acerca não só da lógica desses processos abertamente manipulados, mas sobre a releitura desse mesma publicitação da imagem do governante. Se Peter Burke equaciona e descreve, de forma detalhada, os mecanismos conscientes de construção da figura do rei, escapa-lhe a compreensão da dimensão mais sacralizada dessa representação, que dialoga não só com o contexto imediato, mas também reitera uma viagem mais longa, rumo à "longa duração".

Nesse itinerário escapa a intencionalidade e fica a reelaboração de códigos, valores e, sobretudo, cosmologias, como diz Marshall Sahlins a respeito do encontro entre havaianos e ingleses no contexto colonial. Assim como o Capitão Cook não morria, apenas, como um viajante ocidental, mas como "um lôno burguês"; também na releitura de Luis XIV são muitas as possibilidades de interpretação. Se a leitura sob o viés da elite permite prever a glorificação do monarca e a dimensão política da manipulação da nobreza, seria possível, porém, analisar com mais cuidado como o imaginário pode ser objeto de controle, mas de que maneira, muitas vezes esse, simplesmente, lhe escapa.

Na obra de Burke as visões da corte acerca da monarquia estão todas presentes e retratadas, mas não se nota qual é a fonte em que se nutre esse mesmo imaginário. Afinal, quando uma propaganda é, de fato, eficiente, ela faz sentido para aqueles que a criam, mas, também, para os elementos que se constituem em seu foco virtual. Estamos falando do imaginário popular que surge como "produto e produção" nesse processo de invenção do rei? Dessa maneira, se é possível ver, sob essa fresta, o uso estratégico da realeza, passam ao largo, nesse livro, os mecanismos que revelam como se mantém e se aguça a leitura divina do corpo do rei. Nesse caso as respostas não estarão, com certeza, restritas ao circuito da corte.

Nesse sentido, é bom que se diga, uma certa áurea encobre a figura do monarca; de qualquer monarca. Figura destacada em sua representação, o soberano é, normalmente, definido, por seu "corpo duplo". O primeiro deles é mortal e, assim sendo, assemelha-se ao de todos os seus súditos: sofre com as vicissitudes das tristezas, vícios e alegrias comuns à humanidade. O segundo, sacralizado, representa o corpo divino do rei, aquele que justamente se separa dos demais; o que não morre jamais. Assim, como se podem notar os usos políticos dessa figura, tal verificação não dá conta do "outro corpo do rei", objeto de uma leitura popular alimentada para além do contexto mais imediato da elite e do estamento da nobreza.

Não se manipula no vazio e quando isso ocorre é a própria manipulação que tende a sobrar como uma fala sem lugar. Local do exercício do maravilhoso, a monarquia sempre associou, em momentos diferentes, olhares mais sincrônicos a leituras diacrônicas. Não se faz "propaganda" só no presente; ou melhor, vai-se ao passado buscar matéria para o presente. Mas essa é mesmo uma longa discussão. Quem sabe valha a pena voltar à velha definição de F. Boas, que afirmou ser "o olho que vê, o órgão da tradição". Se a lógica da publicidade é centrada no jogo da "emissão", que é sempre unívoca, engana-se aquele que acredita que a "recepção" é, pelo mesmo motivo, previsível e uniforme. Novas perguntas recortam universos distintos, quando percebemos que, de alguma maneira, somos todos um pouco "míopes culturais". As culturas impõem grades de leitura que revelam como os homens não são papéis em branco, que respondem sempre de forma previsível e idêntica.

O terreno do imaginário e das mentalidades é, pois, um local que não se define apenas pela via da análise política e intencional. Nada como recorrer à noção estrutural de símbolo, que não se limita a uma leitura realista e imediata, mas busca uma eficácia que é sempre relativa. "Significar é estabelecer relações", diz Claude Lévi-Strauss, como a alertar que nesse processo alteram-se razões mais imediatas, com lógicas "que falam — mesmo — entre si".

Revista de Antropologia

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