domingo, 17 de janeiro de 2010

Superalimentados, mas subnutridos - um diagnóstico do sistema alimentar industrial*


Superalimentados, mas subnutridos - um diagnóstico do sistema alimentar industrial*


André Luiz BiancoI; Ana Carolina Ribeiro Lobo de CassianoII

IMestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política na Universidade Federal de Santa Catarina e Bolsista do CNPq e Membro do Núcleo Interdisciplinar em Sustentabilidade e Redes Agroalimentares (NISRA)
IIGraduanda em Ciências Sociais na UFSC, Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq) da Dra. Julia S. Guivant e Membro do NISRA

Os produtos alimentares têm se multiplicado nas prateleiras dos supermercados mais rapidamente do que nunca. Apesar do intenso fluxo de informação proveniente de cientistas e marqueteiros da alimentação, jornalistas e diretrizes alimentares do governo, as pessoas parecem cada vez menos capazes de responder à simples pergunta: "O que devo comer?". Em meio à proliferação crescente de livros que procuram recomendar "A" dieta para se viver mais, para se ter mais beleza, para se ser sempre magro, e muitas outras promessas, destaca-se o lançamento do livro "Em defesa da comida: um manifesto" (Rio de Janeiro, Ed. Intrínseca, 2008, p. 272), do jornalista Michael Pollan. Este livro não foge da pergunta sobre o que devemos comer, mas, ao mesmo tempo, faz um diagnóstico preciso e bem documentado dos motivos que nos levaram a essa condição de desorientação. Assim, a contribuição de Pollan navega entre orientações práticas, jornalismo documental e também contribui com informações preciosas para áreas acadêmicas.

A obra objetiva fazer uma crítica à dieta ocidental (alimentação industrializada), que minou a cultura alimentar americana, substituindo durante o século XX a "comida de verdade" por "produtos alimentares". Isto inclui a sugestão de uma percepção mais abrangente da saúde e da sua relação com a alimentação e com o ambiente. Tal temática já havia sido trabalhada pelo autor no livro "O Dilema do Onívoro" (Rio de Janeiro, Ed. Intrínseca, 2007, p. 480), considerado um dos 10 melhores do ano de 2006 pelo jornal The New York Times. Neste trabalho, resultado de cinco anos de pesquisa, Pollan analisou três cadeias alimentares: a industrial, a orgânica e aquela associada à caça e à coleta. O trabalho consistiu em esmiuçar como surgiram e como se dá o funcionamento de cada uma dessas cadeias. Enquanto "O Dilema do Onívoro" foca a questão da produção alimentar, "Em Defesa da Comida" explora os efeitos do conhecimento científico reducionista em toda a cadeia alimentar, porém com uma interface direcionada à prática de consumo. No livro "Em Defesa da Comida", sua posição é evidente já no subtítulo do livro: um manifesto (no original: An eater's manifesto). Seu objetivo principal é defender a comida e a alimentação da ciência da nutrição, da indústria alimentícia e do jornalismo (intermediário entre os cientistas e o público), e a sua argumentação é conduzida neste sentido: nas duas primeiras partes do livro, ele nos apresenta um diagnóstico do sistema alimentar ocidental atual e, na terceira, dá suas recomendações de como podemos nos alimentar da melhor forma possível dentro deste sistema - ou fugindo o máximo que podemos dele.

Esse sistema alimentar foi construído no século XX com base em uma ideologia do nutricionismo (p. 15), defendida pela indústria alimentar, que conseguiu ter poder e influência para gerar consenso em torno de três mitos: 1) o mais importante não é o alimento, mas sim o nutriente; 2) por ser este invisível e incompreensível, precisamos de especialistas para decidir o que comer; e 3) o objetivo da alimentação é promover a saúde física.

A primeira parte do livro, intitulada "a era do nutricionismo", visa entender como se chegou ao estado atual de confusão e ansiedade nutricional. Para isso, Pollan retoma o surgimento da ciência da nutrição. Desde o século XIX, a ciência procurou determinar os componentes fundamentais dos alimentos (macronutrientes: proteínas, gorduras e carboidratos) e, a partir do início do XX, passou a pesquisar os micronutrientes (vitaminas). Essas descobertas possibilitaram a cura quase imediata de doenças como escorbuto e beri-béri, legitimando a então incipiente ciência nutricional.

A partir dos anos 1950, difundiu-se a "hipótese lipídica" - isto é, a gordura e o colesterol oriundos principalmente de carnes e laticínios são responsáveis pelo aumento de doenças do coração -, que passou a influenciar decisões políticas. Pollan demonstra isso exemplificando o que aconteceu na Comissão Superior do Senado dos EUA para Nutrição e Necessidades Humanas. A Comissão organizou um documento contendo recomendações alimentares que foram orientadas por essa hipótese, mas ele teve que ser reformulado às pressas por conta de lobbies de indústrias de carne e laticínios que não gostaram do conteúdo. Substituiu-se a recomendação "reduza o consumo de carne" por "escolha carnes que reduzam o consumo de gorduras saturadas".

O efeito mais importante disso foi a mudança na linguagem: deixou-se de falar em alimentos e passou-se a falar em nutrientes. A "língua alimentar oficial" - falada em termos como poliinsaturado, colesterol, monoinsaturado, carboidrato, fibra, polifenóis, aminoácidos, flavonóis, etc. - logo passou a fazer parte "do espaço cultural previamente ocupado pelo material tangível, antes conhecido como comida" (p. 33).

O reflexo do nutricionismo no mercado é a eliminação da distinção entre natural e processado: mesmo um alimento altamente processado pode ser considerado "mais saudável" se possuir as quantidades apropriadas de nutrientes. O princípio nutricionista operacional é a capacidade científica de determinar a equivalência nutricional entre quaisquer alimentos, assim tornando-os substituíveis. Enquanto os alimentos naturais sobem e descem de acordo com o que é convencionado pela ciência da nutrição, os alimentos processados podem ser continuamente reformulados pela indústria.

Como Pollan evidencia, a "hipótese lipídica" é exemplo da instabilidade, controvérsia e incerteza dentro da ciência da nutrição, como um paradigma desta ciência. Os cientistas têm reconhecido que, já no princípio da formulação dessa hipótese, os fundamentos eram insuficientes. Apesar do esforço nas últimas décadas para a redução do consumo de gordura, os problemas de saúde relacionados não diminuíram. Deixa-se de consumir gorduras, mas se consome mais carboidratos.

Segundo Pollan, "o resultado de trinta anos de conselhos nutricionais fez as pessoas mais gordas, mais doentes e mais mal nutridas" (p. 95). A segunda parte do livro discute este aspecto: a relação entre a dieta ocidental e as doenças de nossa civilização. O autor aponta que hoje se sabe que um conjunto de doenças, chamadas de ocidentais (obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, hipertensão e tipos de câncer ligados à dieta), aparece quando um povo abandona a sua dieta e adota a dieta ocidental. Pollan apresenta estudos das primeiras décadas do século XX que já identificavam essa relação. Cita, por exemplo, estudos de médicos europeus e americanos que trabalharam com populações nativas em diversos lugares do mundo e notaram os malefícios da "dieta industrializada". Entretanto, as críticas que fizeram à "civilização industrial" não sobreviveram à Segunda Guerra Mundial. Durante a guerra, as pessoas dependiam da indústria para sobreviver, o que a consolidou e contribuiu para que os estudos desses médicos fossem, em sua maioria, esquecidos.

A dieta ocidental como conhecemos hoje se constituiu de mudanças radicais nos alimentos e em nossas relações alimentares ao longo dos últimos 150 anos (p. 121). Pollan apresenta cinco transformações fundamentais:

I) Dos integrais aos refinados: os grãos de cereais vêm sendo refinados desde a Revolução Industrial e passaram a ter mais prestígio por conta da imagem, higiene e durabilidade. Além disso, facilitavam o comércio por não estarem presos às amarras de tempo e lugar;

II) Da complexidade à simplicidade: em cada nível, do solo ao prato, a industrialização alimentar envolveu um processo de simplificação química e biológica (p. 129);

III) Da qualidade à quantidade: com a industrialização dos alimentos se produz muito mais calorias, mas com menor valor nutritivo. Como resultado da superprodução, o preço cai, possibilitando que as pessoas comam mais, porém com menos qualidade;

IV) De folhas a sementes: os grãos passaram a compor a maior parte dos alimentos industrializados. Além disso, a superprodução de grãos simplifica a paisagem agrícola, reduzindo a disponibilidade de uma variedade maior de alimentos;

V) Da cultura à ciência do alimento: com a era da alimentação moderna, a orientação sobre o que se deve comer deslocou-se da cultura étnica e regional para a ciência nutricional.

Essas mudanças tiveram consequências para a saúde humana, para as práticas sociais e para o ambiente. O argumento da simplificação está presente nas cinco transformações. A simplificação da paisagem agrícola tem reflexos diretos na dieta humana. Os seres humanos são onívoros, necessitando de aproximadamente cem compostos químicos e elementos diferentes para uma boa saúde. No entanto, milho, soja, trigo e arroz processados compõem a maior parte da dieta ocidental.

Além dessa pequena variedade, o refino moderno retira dos alimentos nutrientes e outros elementos importantes para a nutrição humana, o que faz crescer a incidência de doenças causadas por deficiências. Mesmo com a estratégia de adição de nutrientes por parte da indústria, os alimentos refinados não contêm o mesmo valor nutricional que os integrais. E, ao mesmo tempo em que perdemos elementos fundamentais para a dieta, aumentamos o consumo de calorias: podemos estar superalimentados, mas subnutridos - e, ainda assim, não necessariamente saciados.

Outra perda grave para a saúde humana é a redução no consumo de folhas a favor do elevado consumo de grãos. Deixamos de consumir elementos essenciais (ou seja, que nosso corpo não pode produzir por si só), por exemplo, os ácidos graxos ômega-3. Além das consequências ambientais e biológicas, a mudança na cultura alimentar causou desorientação e ansiedade nas decisões de consumo alimentar, pois elas são baseadas em ciências cujo conhecimento é constantemente revisto e está sujeito a falhas.

Frente ao quadro apresentado sobre o sistema alimentar moderno, Pollan faz sugestões para orientar as escolhas, a fim de priorizar a história, a cultura e a tradição. As doze propostas tratam de ações que envolvem a produção, a compra, o preparo e as circunstâncias de consumo. O autor sugere que a alimentação seja entendida como mais do que meramente "nutrir-se", ligando-a às possíveis consequências de nossas decisões de consumo no que diz respeito a questões éticas, ambientais, culturais e à própria saúde individual. Por exemplo, deveríamos evitar produtos que nossos avôs não reconheceriam como comida ou que contenham mais de três ingredientes cujos nomes não conseguimos pronunciar. Ao mesmo tempo, ele procura esclarecer que não pretende um retorno a um contexto pré-moderno, que negue completamente a sociedade industrial.

O trabalho de Pollan é interessante tanto para leituras acadêmicas como extra-acadêmicas, trazendo contribuições significativas para diversas áreas da Sociologia. Para a Sociologia do Conhecimento e da Ciência contribui com uma análise histórica e sociológica do nutricionismo, que demonstra como o conhecimento é construído, legitimado e questionado em uma determinada comunidade científica; como uma hipótese (como a lipídica) pode ser mantida por décadas, apesar de não possuir evidências suficientes. Para a Sociologia Ambiental, traz como contribuição a análise das transformações recentes nas cadeias produtivas e as suas implicações para o ambiente. Em "O Dilema do Onívoro", ele acompanhou, por exemplo, o percurso do milho na cadeia industrial desde a produção até seu consumo final. A produção de alguns hectares de milho começa com a extração de petróleo, necessário para tornar utilizável o nitrogênio não reativo encontrado na natureza, que, por sua vez, será utilizado na fabricação de fertilizantes artificiais. Aliando-se isto à manipulação dos cruzamentos genéticos, é possível aumentar a produção de milho por hectare, cujo excedente torna-se tão barato que é usado de alimento para animais ruminantes, e assim por diante.

Além disso, Pollan pode contribuir para os interessados em Sociologia Política, ao demonstrar como a produção alimentar e a produção dos conhecimentos científicos estão entrelaçadas com questões políticas.
* Em defesa da comida. Michael Pollan. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008
Autor para correspondência:
André Luiz Bianco
Universidade Federal de Santa Catarina
Universidade Federal de Santa Catarina e Bolsista do CNPq e Membro do Núcleo Interdisciplinar em Sustentabilidade e Redes Agroalimentares (NISRA)
e-mail: amdreluiz@gmail.com

Revista Ambiente e Sociedade - UNICAMP

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