sábado, 9 de janeiro de 2010

As grandes ONGs ambientalistas em questão*


As grandes ONGs ambientalistas em questão*

Andréa Rabinovici

Professora da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, Campus Sorocaba, doutoranda NEPAM-UNICAMP, Diretora de Projetos da ONG Physis - Cultura & Ambiente

Antonio Carlos Diegues, docente da USP e Diretor Científico do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras (NUPAUB)1, lança o livro A Ecologia Política das Grandes ONGs Transnacionais Conservacionistas, no qual aborda tema mais do que oportuno, num momento em que as Organizações Não Governamentais (ONGs) transnacionais conservacionistas crescem em complexidade, apresentam contradições antes impensáveis, começando a ser questionadas por vários segmentos sociais. O livro contém introdução de Diegues e traduções dele de autores diversos tais como MacChapin, David B. Ottaway, Joe Stephens, Daniel Compagnon, Mariteuw Chimère-Diaw, Mark Dowie, Jim Igoe e Dan Brockington. Os alvos das críticas são as grandes ONGs conservacionistas, especialmente WWF, The Nature Conservancy (TNC) e Conservation Internacional.

As Big International Non Governamental Organizations (BINGOS) conservacionistas vêm instalando-se no Brasil desde 1970, investindo recursos financeiros, humanos e tecnológicos.

As causas às quais se dedicam e o investimento na sua imagem costumam imprimir uma aura de legitimidade, simpatia, respeito e poucas críticas. É raro serem questionadas pelos cidadãos, que, ao contrário, aplaudem suas iniciativas, apóiam-nas e as agradecem por cuidarem da sobrevivência e da segurança de todos os seres vivos. O livro de Antonio Carlos Diegues vem em ótimo momento, na medida que apresenta sérias críticas, no intuito de aprofundar o debate, de rever aspectos que precisam ser mais bem desenvolvidos, de modo a recuperar o significado da necessária mobilização para conduzir ações que visam garantir o futuro do planeta. O livro é corajoso, pois ao denunciar as ONGs, simultaneamente, desaponta os simpatizantes. A crítica é dura, e, mais do que avaliar as BINGOS em geral, são feitas críticas às grifes do ambientalismo, acima de qualquer suspeita, aquelas que divulgamos em nossos carros, camisetas, bonés... As principais críticas feitas pelos autores destacam que as BINGOS conservacionistas são pouco transparentes, e que existem lacunas no tocante à avaliação e ao controle das suas ações pelos beneficiários e pela sociedade como um todo. Também não estão abertas à participação pró-ativa de seus militantes, muitas vezes distanciando-os das ações. Se não são democráticas internamente ou com o seu público, o que propõem?

Recebem grandes somas de dinheiro que, às vezes, perdem-se na própria estrutura da grande ONG transnacional, chegando em quantidades menores do que as esperadas pelos seus atendidos. Outro aspecto apresentado pelo livro diz respeito à invenção e à aplicação de uma ciência conservacionista, criada e disseminada pelas BINGOS. Essa "ciência" em muitas situações é contrária ao que dita o conhecimento e as metodologias utilizadas por comunidades atendidas, impondo um conhecimento distinto, distante e que, para ser aplicado, depende da ONG. Assim, uma tutela imposta obriga a continuidade dos trabalhos, que passa a ser exigida pela ONG, pelo seu público alvo e pelos seus patrocinadores. Os autores deste livro sustentam que essa "ciência da conservação" é criada por pesquisadores do Norte, cabendo aos do Sul apenas a transferência de informações. Essa "ciência" trabalha com modelos que são continuamente ajustados em função de injunções e financiamentos que são mais políticos do que científicos ou sociais. Algumas das questões foram discutidas por Goldman (2001), que acusa BINGOS e especialistas de estudarem a conservação e as possíveis soluções para os problemas socioambientais dentro de uma ótica desenvolvimentista, buscando a reestruturação das capacidades e relações sociais-naturais dos países em desenvolvimento para acomodar a expansão do capital transnacional. Assim, as BINGOS seriam uma forma de dominação e imperialismo (neocolonialismo ou colonialismo ambiental). Assunto em tela na imprensa brasileira, trazido pelos autores, é a aquisição por algumas BINGOS de porções de florestas ao redor do mundo, com o incentivo às modalidades privadas de proteção da natureza. Isso se vê nos incentivos que governo e ONGs têm dado para a criação e manutenção das Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPNs). Outras questões levantadas pelos autores individualmente são:

MacChapin, no seu capítulo "Um desafio aos conservacionistas" (bastante polêmico quando publicado na imprensa norte-americana, e que tem algumas respostas a ele registradas no livro), afirma que é comum as grandes ONGs conservacionistas negociarem territórios e biomas a proteger entre elas. Assim também competem entre si, muitas vezes perdendo financiamentos, acarretando novos conflitos nas comunidades nas quais atuam. O autor também observa o enriquecimento e o crescimento rápido das BINGOS; acusa o desaparecimento gradual das metodologias participativas, com o decorrente enfraquecimento da relação ONG/comunidade. Novos conflitos nas comunidades resultam, portanto, da não consideração das realidades locais, prevalecendo estratégias científicas na determinação da Agenda de trabalho preservacionista, muitas vezes oposta à comunitária. David B. Ottaway & Joe Stephens, em seu texto "Por dentro da TNC - Nature Conservancy: arrebata milhões. Filantropia faz ativos em parceria com corporações", falam da dificuldade em se caracterizar as ONGs conservacionistas na medida em que estas têm funcionado como grandes empresas transnacionais. Daniel Compagnon, em "Administrar democraticamente a biodiversidade graça às ONGs?", questiona a legitimidade e a representatividade das entidades, na medida em que elas se auto-denominam "guardiãs da natureza". Líderes, elas se auto-avaliam, dificilmente prestam contas efetivamente, divulgam seus feitos e repassam à mídia. A imprensa, superficial e ingênua, não tem condições de avaliar criticamente o que publica. Os pesquisadores raramente o fazem, na medida em que é comum terem ligações diversas com as ONGs. Segundo esse autor, assim como no caso dos pesquisadores, a manutenção do domínio e da influência das grandes ONGs transnacionais passa, muitas vezes, pela cooptação de funcionários públicos e de cientistas. Com apoio à pesquisa, a seminários e a treinamentos gratuitos a eles, as BINGOS veiculam conceitos e métodos próprios. Na medida em que trabalham junto aos governos e às empresas privadas, a crítica aos mesmos desfaz-se nas parcerias em projetos e programas. Nesse sentido, a ONG minimiza críticas ao governo, populariza suas ações, dilui responsabilidades e oposições às políticas oficiais. Algo muito sutil observado por Compagnon é que algumas bandeiras, não diretamente ligadas à criação de Parques, são criadas para obter apoio social a projetos preservacionistas. Projetos e ações são lançados, desviando os comunitários de seus interesses sociais, transformados em ambientais. Mariteuw Chimère-Diaw, em seu artigo "Escalas nas teorias da conservação: um outro conflito de civilizações?", faz uma reflexão sobre a necessidade de se reinventar a solidariedade e a governança global. Recomenda repensar as escalas, a desterritorialização que o trabalho das BINGOS pode acarretar. O autor afirma que, quando é invertida a relação de ação local à global, ocorre o enfraquecimento dos potenciais da atuação comunitária. As BINGOS, muitas vezes, tornam-se porta-vozes dos problemas ambientais e com isso monopolizam a formação da opinião mundial. Bentes (2005) ressalta que o nível de interferência das grandes ONGs transnacionais, nos pensamentos e processos decisórios, parece natural devido à desigualdade política internacional que lhes confere o poder de influenciar. Mark Dowie, em seu "Refugiados da Conservação", trata de milhões de pessoas levadas à marginalidade, às periferias em nome de uma suposta preservação ambiental. Essa, muitas vezes sem eficácia alguma em termos de conservação dos recursos naturais. O autor comprova, ao contrário, que, em muitos casos, populações expulsas de suas moradias, recuperam o ambiente novo, degradado, que pode ficar mais bem conservado do que dentro das Unidades de Conservação. Essa questão também já tinha sido exposta por Goldman (1998), ao problematizar teorias sobre os processos de gestão da natureza, que excluem as populações da condução dos destinos dos recursos naturais. Diegues (1998) dá exemplos de comunidades que reassumem, com sucesso, o controle dos bens comunitários com a possibilidade de grandes transformações de perspectivas, ideologia e cultura. Jim Igoe e Dan Brockington, em "Expulsão para a conservação da natureza: uma visão global", também refletem sobre os "expulsos pela conservação". Assim como Dowie, alertam para as conseqüências não estudadas da exclusão de moradores de áreas naturais. As políticas que resultam na exclusão são amplamente influenciadas pelas BINGOS, em campanhas indiretas que defendem a natureza em sua integridade.

Obviamente, é difícil distinguir os padrões de influência nesses relacionamentos, as ações são policêntricas, as responsabilidades idem, porém, numa época em que se fala de refugiados ambientais, incluindo agora os refugiados e expulsos da ou pela conservação, há a necessidade urgente de se dar atenção às populações, caso sejam atingidas as metas traçadas para a conservação, pois se corre o risco de haver expulsões em números recordes, com danos ambientais e sociais gravíssimos.

Avolumam-se os problemas, mas não proporcionalmente à prática de se pesquisar os seus impactos, nem no tocante à conservação ambiental nem nos efeitos e riscos sociais. Os autores chamam essa prática da "ecologia da expulsão", ao mesmo tempo em que observam e questionam o silêncio total de todos sobre essa grave questão.

Ainda que ocorram as expulsões, as áreas protegidas nunca serão suficientes. A estratégia de conservar a despeito das pessoas deve ser repensada. Sem uma ampla discussão social, as ações das ONGs não podem ser classificadas como demandas sociais, nem ambientais.

Todos os autores do livro convidam a uma crítica construtiva das ONGs. A maioria dos artigos já foi publicada internacionalmente e causou impacto, recebeu respostas das BINGOS, talvez as tenha feito repensar práticas e filosofias. Essa é a idéia: provocar.

O tom da provocação, no entanto, é diferente do que se observa recentemente na imprensa, dito por militares, empresários, visando desqualificar o trabalho das ONGs.

As acusações comuns às BINGOS no Brasil referem-se à ameaça à soberania, à sua situação fiscal, ao controle de suas receitas, aos supostos entraves à sua atuação empresarial, ou desenvolvimentista, a uma legislação pouco eficaz. Não chegam nem perto das discussões travadas no livro ora apresentado e por isso a sua leitura é fundamental. Servirá para ampliar e qualificar os debates sobre o tema de forma mais reflexiva, menos ideológica.

O alerta é para não se estereotipar as ONGs, colocando-as em oposição, simplificando temas sociais e políticos complexos, e deslegitimando demandas socioambientais. Caso contrário, o debate sobre direitos será transformado em uma disputa estéril de interesses, dará margem à construção de teorias conspiratórias, que impedem o avanço de consciência, fundamental para que ocorram mudanças.

Diegues recomenda que a questão torne-se objeto de pesquisas sérias, e já existem excelentes contribuições sobre ONGs e movimentos sociais.

Este livro é um convite e um estímulo a um debate teórico relevante sobre o papel dessas ONGs conservacionistas transnacionais, especialmente as que atuam no Brasil, e sobre os seus objetivos e ações, na expectativa de que, com o processo de debate, possa haver uma reconstituição dos atores mobilizados, institucionalizados ou não, em torno da questão ambiental.



Referências bibliográficas

BENTES, R. A intervenção do ambientalismo internacional na Amazônia. Estudos Avançados, São Paulo, v. 19, n. 54, p. 225-240, 2005.
DIEGUES, A. C. Social Movements and the remaking of the Commons in the Brazilian Amazon. In: GOLDMAN, M. (Ed.). Privatizing Nature. London: Pluto Press/TNI, 1998. p. 56-74.
GOLDMAN, M. Introduction: The Political Resurgence of the Commons and Inventing the Commons. In: GOLDMAN, M. (Ed.). Privatizing Nature. London: Pluto Press/TNI, 1998. p. 01-53.
______. Inventando os comuns. In: DIEGUES, A. C.; MOREIRA, A. C. C. (Orgs.). Espaços e recursos naturais de uso comum. São Paulo: NUPAUB-USP, 2001. p. 43-78.

Notas

1 http://www.usp.br/nupaub

Autor para correspondência:
Andréa Rabinovici
Rodovia João Leme dos Santos, Km 110, SP-264
Bairro do Itinga
CEP 18052-780, Sorocaba - SP, Brasil
E-mail: andrea@ufscar.br

* DIEGUES, A. C. (Org.) A ecologia política das grandes ONGs transnacionais conservacionistas. São Paulo: NUPAUB-USP, 2008, 193 p. ISBN: 978-85-87304-08-7
Revista Ambiente e Sociedade

Nenhum comentário:

Postar um comentário